Ian é essa multidão

(Crédito: Michel Cortez)
Ian Ramil lançou seu álbum de estreia em show no Theatro São Pedro (Crédito: Michel Cortez)

“Quero perder um pouco de foco/ no meu escuro o risco é teu”, esse trecho da música Cabeça de Painel que abriu o show do músico Ian Ramil na noite desta quarta-feira (28) no Theatro São Pedro, de certa forma, é uma boa pista para entender o seu álbum de estreia intitulado Ian. Ao prometer abrir o seu porão, “que é o lugar onde eu falo um monte”, como diz a letra, conhecemos o que estava para vir na apresentação que começou às 21h. A música é uma mistura de diferentes gêneros, partes cantadas em outra língua (inglês), contradições e jogos de conceitos nas letras, incertezas, certo absurdo, experimentos nos arranjos –  tudo isso fazendo muito sentido. E, assim, é o álbum todo e, assim, foi o restante show. Ao não se limitar a um estilo e abraçar diferentes influências, Ian Ramil transita muito bem em diversos focos, abrindo diferentes porões.

E não foi uma trajetória curta até chegar aos palcos do São Pedro. Apesar de ser um lançamento, a maioria das canções já vinham sendo concebidas há pelo menos quatro anos, como revelou em recente entrevista ao Jornal do Comercio de Porto Alegre, sendo que muitas delas também mudaram até chegar ao formato que compõem o álbum de estreia. Talvez isso ajude a explicar a diversidade de temas e estilos. Entre as parcerias que se destacam estão as com os integrantes da Apanhador Só, escritas com Alexandre Kumpinski e Felipe Zancanaro, guitarrista que também acompanha a turnê.

Antes das cortinas abrirem, um inusitado e bacana aviso: é permitido manter o celular ligado para gravar e tirar fotos do show. Inclusive, pediram até para passar o contato para a produção depois. Não era, então, uma apresentação sisuda. Ao contrário: desde o começo parecia um encontro de amigos, festerê que começou com a já citada Cabeça de Painel e seguiu com Pelicano, uma das músicas mais ritmadas do show. Na apresentação, a maioria das canções ganhou uma roupagem diferente, extrapolando o álbum, graças à bela banda que está em turnê com Ian. Composta pelo já citado Felipe Zancanaro nas guitarras, Martin Estevez na bateria, Guilherme Ceron no baixo, Jaime Freiberger no trompete, Julio Rizzo no trombone e Pedro Dom variando entre o teclado, clarinete e pandeiro.

A próxima foi Transe, para mim uma das melhores letras do álbum, que consegue criar inusitadas imagens a partir de oposições aparentemente sem lógica (“Eu fiz que nem ouvi/ quem ouve muito enxerga mal”) ganhou uma vida nova principalmente graças aos excelentes metais, e ao solo de trombone de Julio Rizzo. Na canção seguinte, Ian precisou afinar o cuatro, instrumento muito comum na música latina, e interagiu com a plateia, explicando a origem de Over and Over, composta em parceria com um amigo pelo antigo e saudoso MSN . A baladinha com inspiração folk foi a primeira canção totalmente em inglês do show e me lembrou Little Joy – e isso é algo bom.

(Crédito: Michel Cortez)
A banda que excursiona com Ian Ramil fez bonito na apresentação (Crédito: Michel Cortez)

A mais experimental Rota, composta em parceria com Alexandre Kumpinski, que, por sua vez, foram inspirados pelo poema de Karina Ramil, mostra o certo diálogo com a família, mais pela influência artística – ainda que ele esteja seguindo a própria rota “sem que possa controlar”. Os assovios e efeitos de pedal deixam a música ainda mais intimista. Em seguida, outra parceria com a Apanhador, a conhecida Nescafé ganha uma densidade muito maior com Ian, ao evocar uma das músicas mais atmosféricas dos Beatles, She’so Heavy, do Abbey Road.

A primeira participação especial da noite aconteceu com a música seguinte, Entre o Cume e o Pé. O músico Lorenzo Flach assumiu a guitarra, enquanto Felipe Zancanaro foi para o violão e Ian no cuatro.  Com um belo trabalho por parte da cozinha da banda (baixo e bateria), a letra evoca Jorge Ben Jor ao trazer explicitamente a referência a Jorge da Capadócia (“Armas de fogo/ O meu corpo não alcançarão”), mas é o modo despojado como Ian a canta que chama a atenção, sendo uma das mais divertidas da apresentação, principalmente no trecho final com as vozes replicadas bizarramente em diálogo do cantor e de Felipe. No bloco dos convidados, Gutcha Ramil foi a próxima ao entrar sorrateiramente durante a apresentação de Ímã Ralo e trazendo um belo acompanhamento de violino a essa canção tão crua . Ela continuou no violino e Flach voltou para assumir o cuatro para a próxima música que, para mim, é uma das melhores do álbum: Seis Patinhos. A canção traz mais uma ótima letra evocando um tipo de pássaro, dessa vez patos. Com uma pitada de surrealismo, a música lembra uma cantiga, talvez graças à escalada do cuatro, com a harmonia de Lucy in Sky with Diamonds, e traz o refrão mais inusitado de todos (Quá, quá, quá).

Pedro Dom, até então no teclado, mostra toda a sua habilidade no clarinete abrindo Mas não (que não consta no álbum Ian)com um excelente solo, e Ian sem nenhum instrumento começa a cantar a música, que também é parceria com Alexandre Kumpiski, já gravada pelo Apanhador Só. Também foi uma boa oportunidade para os integrantes da banda mostrarem virtuosismo, afinal, se você tem qualidade qual o problema de se exibir um pouco? A próxima foi a excelentemente saudosa Suvenir que começou com Ian no cuatro sozinho, em clima íntimo com a plateia. A letra é toda evocativa, montando um cartão postal de memórias com lugares de Porto Alegre (“eu vou olhar pra ti e me lembrar/ redenção, tristeza, tudo no meu bom fim”).

(Crédito: Michel Cortez)
Muitas das músicas de Ian Ramil são  compostas em parceria (Crédito: Michel Cortez)

Encaminhando a apresentação para o final, Ian anunciou que a próxima música, Rita-Cassete (também não presente no álbum) era uma composição em parceria com o baixista Guilherme Ceron. A música cheia de distorção, mixagem e sobreposições de instrumentos emendou a ótima Segue o Bloco, mais uma música que traz a oposição de ideias para criar boas imagens (“Segue o bloco/Essa multidão sou eu”). E outro belo trabalho dos metais, com destaque para o solo de trompete de Jaime Freiberger e o pandeiro de Pedro Dom, marcando a passagem do bloco (há som ambiente em trechos da música). Depois tivemos Zero e Um, que começa com uma espécie de beatbox, mais uma música com vocais cantados e versados, mudando de pegada ao longo do seu andamento. E para fechar o show, Hamburguer, a última música do álbum e a segunda cantada inteiramente em inglês na apresentação. Ian dedica a canção a três amigos, o que faz a plateia ficar ainda mais empolgada – a música também, afinal é um rockzinho com influência country dos mais agitados.

Um show sem bis não é um bom show, e é claro que a apresentação de Ian Ramil no Theatro São Pedro teve o retorno pós-show. Na volta, tocaram duas músicas que Ian compôs logo depois de ter terminado de gravar o álbum. A Devagarinho, música das mais suaves e quase que dedilhada toda no violão, e Coquetel Molotov, já bem mais agitada e, perdoem o trocadilho, explosiva. Duas composições bem diferentes, o que só deixa ainda mais evidente a pluralidade e o passeio por entre estilos que Ian Ramil apresenta nesse seu trabalho de estreia. A turnê ainda passará pelo Rio de Janeiro em julho e depois avança para a Colômbia, Uruguai e Peru. Mais informações e inclusive o próprio álbum estão disponíveis lá no site oficial do músico.

Confira a galeria de imagens do show, clicando na foto poderá vê-la em alta resolução:

O Crédito de todas as fotos é do Michel Cortez.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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