Jorge Furtado dirige melodrama morno em Real Beleza

Vladimir Brichta e Adriana Esteves protagonizam o sexto longa-metragem de Jorge Furtado. (Crédito Fábio Rebelo)
Vladimir Brichta e Adriana Esteves protagonizam o sexto longa-metragem de Jorge Furtado. (Crédito: Fábio Rebelo)

Real Beleza (Real Beleza, BRA, 2015)

Direção: Jorge Furtado

Roteiro: Jorge Furtado

Elenco: Vladimir Brichta, Adriana Esteves, Vitória Strada, Francisco Cuoco, Thiago Prade, Isadora Pillar, Samuel Reginatto e Elisa Volpatto.

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TEXTO Priscila Mengue

Em um banheiro úmido, sujo e cheio de velharias, João (Vladimir Brichta) traga um cigarro. De certa forma, o decadente ambiente lhe traz algum alento, o esconde das insatisfações, enquanto ele deposita em seus lábios o único prazer que lhe resta. Depois de um breve momento de alívio, o protagonista de Real Beleza retorna à sessão de fotos que realiza em um antigo prédio. Só de adentrar o ambiente de trabalho, contudo, suas frustrações voltam a brotar, culminando na agressão física de uma modelo.

Sexto longa-metragem de Jorge Furtado, o filme acompanha um personagem abalado profissional e emocionalmente. Até então um dos mais renomados em sua profissão, João está no fundo do poço. Ele decide viajar pelo interior gaúcho como olheiro, onde entrevista centenas de garotas, mas vê em apenas uma o potencial para se tornar uma grande top model: Maria (Vitória Strada), de 16 anos. Para tanto, precisa enfrentar a relutância da família da garota.

A “real beleza” citada no título da obra não se refere, todavia, apenas ao fulgor estético valorizado pelo universo da moda, mas também àquele despertado pela paixão. Se na abertura do filme há imagens sobrepostas pela espiral de Fibonacci, sequência matemática ligada à ideia de proporção, a trama responde que a beleza não é lógica, mas subjetiva, guiada pela intuição daquele que a almeja. Como João fala em determinado momento, ele não sabe o que procura, mas tem certeza que identificará quando encontrar. Ele encontra, não na modelo que pretende agenciar e sim na mãe desta, Anita (Adriana Esteves), com quem se envolve sexual e emocionalmente.

Francisco Cuoco interpreta um pai relutante em permitir a carreira de modelo da filha (Vitória Strada) Crédito Fábio Rebelo
Francisco Cuoco interpreta um pai relutante em permitir a carreira de modelo da filha (Crédito Fábio Rebelo)

Nesse contexto, surge o antagonista, Pedro (Francisco Cuoco), que não está disposto a abrir mão nem da companhia da filha nem da esposa. Velho, adoentado e cego, Pedro é o oposto de João, de modo que ambos travam uma espécie de embate, em que um simboliza o conhecimento e o outro, a beleza. À sua maneira, cada um defende a permanência do que crê, seja da alma, seja do corpo, das letras ou da imagem. A discussão, contudo, não ganha grande desenvolvimento, estabelecendo-se, principalmente, em citações a cânones como Cartier-Bresson, Fernando Pessoa, Borges e Guimarães Rosa – autor da frase que resume a proposta do filme: “a gente só sabe bem aquilo que não entende”. A relação do pai de Anita com o protagonista lembra, aliás, a mesma dinâmica realizada por Brichta em A Coleção Invisível (de Bernard Attal, de 2012), em que o personagem do ator conhece um velho colecionador cego que tem a arte como maior paixão.

Real Beleza, por vezes, aproxima-se do drama romântico As Pontes de Madison (1995), dirigido por Clint Eastwood. Em comum, ambas as obras retratam o envolvimento de um fotógrafo com uma dona de casa interiorana enquanto o marido desta viaja com a família. A grande diferença é que o filme norte-americano é centrado na perspectiva da mulher, enquanto o de Furtado gira quase completamente em torno da figura masculina. Mais do que isso, embora a personagem de Adriana emule aparente timidez e resignação (a ponto de, inicialmente, sequer olhar para o protagonista), seu comportamento recatado é ambíguo, situação ressaltada pela música-tema do filme, dentre outros aspectos.

Ao comparar com outras obras de mesmo diretor, é difícil não interpretar as atitudes da personagem como detentoras de segundas intenções. Afinal, grande parte dos trabalhos de Furtado está repleta de mulheres manipuladoras que colocam os homens em situações pouco racionais, como Roza, de Houve uma Vez Dois Verões, Soraya, de Meu Tio Matou um Cara, e Sílvia, de O Homem que Copiava, dentre outras. Na produção, o despertar romântico do personagem funciona com um momento quase catártico, que o estabelece de volta aos eixos profissionais e emocionais, o que fica exemplificado na mudança de postura de João, agora mais simpático e receptivo, ao ponto de aceitar fotografar uma garota “sem suficientes atributos” para ser modelo.

Cenas com o assistente Wilson dão humor à trama (Crédito Fábio Rebelo)
Cenas com o assistente Wilson dão humor à trama (Crédito Fábio Rebelo)

A citada cena é, aliás, um dos momentos de alívio cômico da trama. Mais conhecido pelos trabalhos de humor, em Real Beleza, Furtado reserva a comédia quase exclusivamente aos personagens de Wilson (assistente de João) e da aspirante a modelo Guacira. A obra, em si, estabelece-se como um melodrama, transitando entre o suspense, o romance e o drama puro. Construída de modo a focar-se no fotógrafo, abre pouco espaço para o desenvolvimento dos demais personagens, de modo que todos têm uma função definida para impactar o protagonista de alguma forma. Não é à toa, portanto, que este tenha pontos de vistas expostos por uma narração em off e câmeras subjetivas. Desse modo, por vezes, o desenvolvimento é prejudicado diante de resoluções fáceis, em que expectativas construídas são resolvidas sem grandes percalços – um recurso talvez mais aceito na comédia em que o “naturalismo” da história poderia ser menos valorizado.

A beleza retratada e discutida se encontra explícita também nas paisagens da Serra Gaúcha e na maturidade de Adriana, que se despe diante das câmeras. Com pouca maquiagem e até com as marcas do sutiã à mostra, ela expõe uma real beleza, fora das idealizações e fetichização de meninas quase pré-púberes. De certa forma, Real Beleza defende que a estética não tem padrões. Mas enquanto o discurso segue esse caminho, a câmera mostra dezenas de garotas sendo entrevistadas, praticamente todas brancas, de traços europeus. Não deixa de ser interessante, contudo, que a montagem crie um mosaico de meninas tão distintas e semelhantes entre si. Em determinado momento, uma das mais jovens entoa “Vapor Barato”, de Waly Salomão e Jards Macalé gravada por Gal Costa, canção que simboliza, de certa forma, as angústias a serem transgredidas pelo protagonista.

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