Em Ponte dos Espiões, Spielberg expõe a hipocrisia da Guerra Fria

Spielberg celebra ideais de justiça em trama situada na Guerra Fria. (Crédito: 20th Century Fox).

Ponte dos Espiões (Bridge of Spies, EUA, 2015)

Direção: Steven Spielberg

Roteiro: Matt Charman, Ethan Coen e Joel Coen

Com: Tom Hanks, Mark Rylance, Amy Ryan, Austin Stowell, Sebastian Koch, Eve Hewson, Domenick Lombardozzi, Alan Alda, Jesse Plemons, Dakin Matthews, Nadja Bobyleva, Peter McRobbie, Will Rogers, Billy Magnussen.

Se há uma palavra que não pode ser associada com as temáticas da filmografia de Steven Spielberg, esta é “cinismo” – exceção feita apenas ao pessimista (e excepcional) Munique, lançado discretamente há 10 anos. É sempre possível, na obra do veterano cineasta, perceber lados morais claros que tornam a torcida e o apoio do espectador algo quase inevitável. Pode ser chamado de simplismo, mas o fato é que, embora por vezes escorregue num excesso de melodrama, Spielberg sabe filmar esse tipo de obra com uma classe formal inegável. Em Ponte dos Espiões, o diretor segue uma espécie de linha Frank Capra, trazendo um protagonista em oposição a uma estrutura indiferente – adicionando mais um exemplar sólido ao seu invejável currículo.

(Crédito: 20th Centuty Fox)
(Crédito: 20th Centuty Fox)

Inspirado num caso ocorrido durante a Guerra Fria, Ponte dos Espiões acompanha James Donovan (Hanks), advogado de uma seguradora que é convidado pelo governo americano a representar a defesa de Rudolf Abel (Rylance), acusado de ser espião soviético. Mesmo enfrentando uma intensa reprovação pública, Donovan insiste que Abel seja mantido vivo – um apelo que se revela proverbial quando os russos capturam o piloto americano Francis Gary Powers (Stowell), derrubado de um avião de reconhecimento. É então que o advogado recebe a tarefa de negociar uma troca de prisioneiros com a União Soviética, mas a situação se complica quando um estudante americano é preso na Alemanha Oriental e Donovan resolve tentar sua libertação.

Pode parecer uma clássica abordagem “americano salva o dia”, mas ficar nessa análise é algo superficial. Spielberg evita aqui o típico maniqueísmo da Guerra Fria “ianque bom, comuna mau”. Aliás, boa parte da primeira hora de projeção foca-se na paranoia macarthista que assolou os Estados Unidos com força excepcional entre os anos 1950 e início dos 60, na qual a menor suspeita de comunismo era sinônimo de crime patriótico – na prática, forçando um esvaziamento no debate político em função de posições irredutíveis. Inteligente, Donovan percebe que tal oposição é contraproducente, sendo íntegro o bastante ao recusar a sugestão de que a defesa de Abel é uma mera formalidade para suavizar uma condenação sumária, fazendo o possível para garantir ao réu um julgamento de verdade – o que não significa negar a posição de Abel como inimigo, a cuja lealdade Donovan não consegue deixar de admirar. Ao expor sutilmente a hipocrisia que cerca a situação de Abel, Spielberg acaba fazendo não só uma eloquente defesa da isonomia jurídica como também critica a lógica dicotômica que norteou a Guerra Fria.

Boa parte da eficiência dessa dinâmica vem da ótima performance de Mark Rylance, que dá ao estoicismo de Abel um caráter ironicamente divertido : capturado pela nação inimiga, ele demonstra uma inata compreensão do que rege a disputa geopolítica, o que pode custar sua vida mesmo que seja devolvido (“O chefe nem sempre tem razão, mas é sempre o chefe”), mas isso não o impede de se manter firme em sua posição, nem de admirar a persistência de Donovan – uma química em cena que remete um pouco à de Liam Neeson e Ben Kingsley em A Lista de Schindler. Por sua vez, Tom Hanks mostra-se uma escolha natural para James Donovan: tendo construído sua carreira majoritariamente em personagens simpáticos, o ator convence naturalmente da honestidade e bom caráter do advogado – e não é difícil imaginar James Stewart (eternizado como o “homem comum” de Capra) num papel similar em outros tempos.

(Crédito: 20th Century Fox)
(Crédito: 20th Century Fox)

Com roteiro de Matt Charman e dos irmãos Coen, é evitado, aqui, um problema que prejudicou o bom Lincoln: embora estabeleça Donovan como um típico homem de família, a narrativa a deixa em segundo plano por reconhecer que a prioridade que o define como personagem é sua atuação naquela delicada crise internacional. Assim, ao invés da constante quebra de ritmo vista em seu trabalho anterior (onde boa parte das cenas com Sally Field e Joseph Gordon-Levitt poderia ser descartada sem grande prejuízo), Spielberg conduz a trama com foco e disciplina: desde o início, o clima de desconfiança é estabelecido em uma caminhada de Abel, quando este é seguido por um agente da CIA que, por sua vez, também traz reforços para garantir o cumprimento da tarefa. Além disso, as sequências envolvendo a família do personagem de Hanks servem mais para estabelecer de forma mais direta o clima de paranoia e os riscos aos quais todos são expostos do que para funcionar como motor sentimentalista – uma falha recorrente do diretor que, aqui, se mostra bem mais contida. Da mesma forma, as complicações envolvendo a negociação entre americanos, russos e alemães orientais (e a tensão entre os dois últimos) é exposta de modo a funcionarem de forma clara, mas sem recorrer a estereótipos datados (e a direção de arte merece aplausos em sua reconstituição de Berlim que, anos depois da derrota, ainda trazia uma quantidade considerável de escombros).

Contando com uma belíssima fotografia de Janusz Kaminski (parceiro de Spielberg desde A Lista de Schindler), Ponte dos Espiões é mais um ótimo êxito na carreira de seu diretor. Seu híbrido entre drama jurídico e espionagem sóbria (regado com toques precisos de humor) o traz num momento confortável dentro das características de sua obra, resultando numa das misturas mais orgânicas e bem-acabadas de suas tendências mais sérias e do cinema de entretenimento que o mantém em destaque há tantos anos.

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