El Mapa de Todos: cada vez mais fazendo jus ao nome

Quando o El Mapa de Todos surgiu, em Brasília, em 2008, a ideia de integrar os países latinos-americanos por meio de um festival de música parecia pouco mais que uma utopia. Naquela época (e é estranho falar “naquela época” para mencionar um período tão recente, mas que parece distante pelo tanto que o mundo mudou nesse intervalo de sete anos), a resistência ao trabalho de artistas que não viessem do eixo Europa-Estados Unidos era um desafio a ser vencido.

Não que ainda não seja. Porém, é inegável que o abismo que separava os brasileiros de seus vizinhos diminuiu. O acesso à informação, cada vez mais amplo, tem sua parcela de mérito nesse processo: de 2011 – ano em que o festival se estabeleceu em Porto Alegre – para cá, as formas de distribuição e consumo da música vêm evoluindo a uma velocidade às vezes até difícil de acompanhar. Dentro desse contexto, pode-se perceber a formação de um público com mais opções, menos preconceituoso e aberto a culturas diferentes.

Prova disso foi o sexto El Mapa, realizado entre os dias 12 e 14 de novembro. Com uma edição enxugada em relação ao ano passado, o festival voltou ao seu formato tradicional de três dias, recebendo, provavelmente, o público mais heterogêneo desde que foi criado. No cast, a diversidade também imperou. Se antes a tendência era de mais artistas ligados ao rock, agora uma gama maior de estilos foi contemplada, fazendo jus ao nome do evento.

Uma mudança significativa ocorrida em 2015 foi a realização de todos os shows em teatros, uma proposta que, segundo o organizador do festival, Fernando Rosa, objetivou atrair um público realmente interessado apenas em música. Porém, levando em conta a reação que algumas atrações provocaram na plateia (alguém falou em Onda Vaga?), fica claro que reservar uma das datas para um espaço menos formal é algo a ser considerado novamente.

Feitas essas observações, vamos a uma breve avaliação sobre o que rolou no El Mapa de Todos deste ano, dia a dia, como já é tradição aqui no Nonada. Ah, e também confere o nosso álbum no Facebook com mais fotos, clicando aqui.

 

Primeiro dia

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Peruanos do Vieja Skina contagiaram o público com seu naipe de metais (Crédito: Ismael Fonseca)

Pelo segundo ano consecutivo, o festival teve uma noite com duas atrações no Theatro São Pedro. E elas eram bem distintas: primeiro, o ska dos peruanos do Vieja Skina; depois, o resgate da Jovem Guarda por Lafayette & Os Tremendões.

Com nove músicos na formação, sendo cinco somente no naipe de metais, o Vieja Skina conseguiu levantar a plateia desde o início. Em matéria de empolgação, o grupo roubou a cena na quinta-feira, fazendo o público, formado majoritariamente por pessoas mais velhas, dançar ao som de seu ska instrumental.

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Os Tremendões referenciam Lafayette em homenagem à Jovem Guarda (Crédito: Ismael Fonseca)

Sem a mesma verve dançante, a atração que encerrou a noite acabou arrancando outro tipo de emoção da plateia. O grupo-tributo criado por Gabriel Thomaz (líder dos Autoramas) encheu o São Pedro de nostalgia a cada acorde tocado no órgão Hammond B-3 por Lafayette, responsável pelo som dos teclados em inúmeros hits da Jovem Guarda. Honrados em tocar ao lado da “lenda”, como faziam questão de ressaltar, Gabriel e cia. emendaram cerca de 20 clássicos do rock brasileiro dos anos 50 e 60, como “Pare o Casamento”, “Negro Gato”, “É Proibido Fumar” e “Vem Quente que Eu Estou Fervendo”. O show ainda teve uma canja de Diego Medina, ex-Video Hits, em “Se Você Pensa”, “Amada Amante” e “O Portão”. Teve tempo também para algumas faixas do álbum de inéditas A Nova Guarda de Lafayette & Os Tremendões, como “Deixa que Eu Deixo”, uma grudenta guitarrada paraense com dueto vocal de Gabriel e Érika Martins, sua esposa e parceira de Autoramas. Inexplicavelmente, uma grande parcela do público deixou o teatro antes do fim.

 

Segundo dia

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Milongas Extremas agradou com sua sonoridade punk nos violões (Crédito: Rafael Casagrande)

Os ingressos para os shows no Salão de Atos da Ufrgs se esgotaram poucos dias após terem sido colocados à venda. Com a inédita inclusão de Vitor Ramil no cast, isso não chegou a ser uma surpresa. Surpresa foi constatar que não foi ele o responsável pela lotação do espaço na sexta-feira, e sim uma trupe de jovens músicos argentinos. Mais uma vez, alguém falou em Onda Vaga?

Coube ao quarteto uruguaio Milongas Extremas a abertura da noite. Poderia dizer que é difícil definir o estilo dos rapazes, mas o nome do grupo sintetiza perfeitamente o que se vê no palco: milongas tocadas com uma energia quase punk, por quatro violões que, em alguns momentos, soam como guitarras. Há solos dobrados que em alguns momentos chegam a remeter a… Iron Maiden! No entanto, as referências são outras, como ficou evidenciado na entusiasmada versão de “De no olvidar”, de Alfredo Zitarrosa. O incrível desfecho, com “Autorretrato”, cover da banda espanhola Extremoduro, contou com um sax, único instrumento a dividir espaço com os violões e as vozes do talentoso quarteto.

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Vitor Ramil em show (Crédito: Rafael Casagrande)

Com Vitor Ramil, a milonga retomou sua forma mais tradicional, melancólica e introspectiva. Acompanhado pelo violonista argentino Carlos Moscardini, o cantautor pelotense mostrou a habitual competência em seu já conhecido repertório nesse estilo, como “Ramilonga” (a qual dedicou “aos que estão na luta pela preservação do Cais Mauá”) e “Chimarrão” – a exceção foi uma versão de “Estrela, Estrela”, já no bis. A sonoridade suave dos dois violões fez o artista lembrar da sala de estar de sua casa, em Pelotas, algo que ele diz ter conseguido perceber no álbum Derivacivilização, do filho Ian. E foi assim mesmo: mesmo um pouco deslocado, Vitor encarou com serenidade um público que não era exatamente o seu. Realmente, parecia estar em casa.

Se o Salão de Atos da Ufrgs era um espaço apropriado para receber Vitor Ramil, pareceu restrito demais para os jovens que estavam ali para assistir ao show do Onda Vaga. Tinha consciência da popularidade desses argentinos-uruguaios na região do Prata, mas não imaginava que fosse tamanha por aqui. Todas as músicas eram cantadas em uníssono, em uma mistura pulsante de cumbia, rumba, rock e outros estilos. A receptividade foi algo meio Los Hermanos, simplesmente surreal. O único momento em que o público ficou sentado foi na lentinha “Rayada”, e, mesmo assim, só porque os músicos pediram. No final, o protocolo foi mandado pro espaço, e cerca de 100 fãs subiram ao palco para dançar ao som de nada menos que quatro canções: “Cartagena”, “Vayan a Ser”, “A La Mierda” e “El Experimento”. Se depender da receptividade, os hermanos não demorarão muito para voltar a Porto Alegre.

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Onda Vaga mostrou ter muitos – e empolgados – fãs em Porto Alegre (Crédito: Rafael Casagrande)

 

Terceiro Dia

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Os Irmãos Carrilho fizeram seu primeiro show fora do Paraná (Crédito: Luiz  Silveira)

A exemplo do que ocorreu em 2014, esta edição do El Mapa de Todos também teve um dia sem cobrança de ingressos, o que, por si só, já era um atrativo e tanto. Porém, diferentemente do que ocorreu no ano passado, quando o Boogarins entupiu o Teatro Bruno Kiefer, desta vez não houve um “chamariz”, um nome que mobilizasse um grande público. Infelizmente, muita gente só se dispõe a sair de casa se tiver algo “confirmado”. Essa é uma verdadeira batalha travada pelo festival, às vezes com vitórias, às vezes com derrotas. No caso, quem realmente sai perdendo é o público, que dificilmente terá outra oportunidade de ver artistas incríveis como os colombianos do Los Pirañas, por exemplo.

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Ana Muniz e sua banda proporcionaram um clima zen ao festival (Crédito: Luiz  Silveira)

Ainda com o sol a pino, o aconchegante teatro do Centro Histórico-Cultural Santa Casa recebeu dupla curitibana Os Irmãos Carrilho. Tímidos e um pouco nervosos (o que era compressível, já que era a primeira apresentação da dupla fora do Paraná), Alexandre Provensi e Matheus Godoy não desapontaram em sua viagem pela música folk norte-americana e seu equivalente nacional, a música caipira de raiz. Destaque para as vozes, afinadíssimas e com um timbre bem particular.

Com seu nome já consolidado no cenário independente, a porto-alegrense Ana Muniz  exala espiritualidade ao se comunicar com a plateia, mas nem por isso suas canções são menos intensas. Acompanhada por uma boa banda de apoio – incluindo seu “irmão de sangue e de jornada”, o baixista Gabriel Muniz -, ela se transforma ao interpretar faixas como “Mirá (Energia)” e “Ciranda”, com letras sobre natureza e paz. “Visceral” é uma palavra manjada, mas que define bem a performance dessa moça.

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Mistura de estilos marcou a apresentação do peruano François Peglau (Crédito: Luiz  Silveira)

No Peru, François Peglau se consolidou como integrante de Los Fuckin’ Sombreros. Em carreira solo, ele continua fazendo música sem prender-se a estilos. A latinidade, porém, não é a principal marca de Peglau, que bebe em influências distintas, como o mod, o eletrônico, o reggae e o pop puro e simples – e, além disso, compõe também em inglês. Divertido e despretensioso, certamente um dos shows mais animados do festival.

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Alabê Ôni deu ma aula sobre cultura africana no Rio Grande do Sul (Crédito: Luiz  Silveira)

A atração seguinte era uma prova da diversidade do El Mapa. O quarteto Alabê Ôni (ou “nobre tamboreiro”, no idioma iorubá) deu uma verdadeira aula ao rememorar a presença negra nas manifestações artísticas do Rio Grande do Sul. Em uma apresentação guiada pelo tambor de sopapo, usado pelos escravos nas charqueadas pelotenses, os percussionistas entoaram cânticos africanos, passearam por ritmos como o candombe, tradicional no Uruguai, e aludiram às congadas, em homenagem a São Benedito. Aos poucos, a plateia entrou no embalo, respondendo aos cânticos e até se arriscando a dançar – alguns, em cima do palco. “Agora vocês estão começando a entender o espírito da coisa”, brincou o percussionista Richard Serraria.

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Cumbia psicodélica do Los Pirañas foi o destaque da última noite (Crédito: Luiz Silveira)

O show do Los Pirañas, era, com certeza, o mais esperado do dia. E quem se encheu de expectativas em relação ao trio colombiano não se decepcionou. Sua cumbia psicodélica instrumental (ou repertório de “ruidismo musical”, como eles mesmo disseram) impressiona pela sonoridade, extremamente agressiva e, ao mesmo tempo, dançante. O grupo homenageou o músico argentino Luis Alberto Spinneta, falecido em 2012, dando sua cara a “A 18’del sol”, e o também colombiano Conjunto Miramar, em versão “pirañera” da salsa Carrusseles”. Em “Sir de Gusano”, uma senhora que havia dançado no palco durante a apresentação do Alabê Ôni resolveu fazê-lo novamente. Desta vez, porém, ninguém mais subiu, provavelmente para não atrapalhar seu momento de catarse. Na plateia, o uruguaio Jorge Drexler, que tocaria na Capital no dia seguinte, reverenciava os talentosos amigos de Bogotá.

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Acordeonista Aluisio Rockembach encerrou o festival (Crédito: Luiz Silveira)

Já perto das 22h, depois de uma série de shows que deixaram o público esgotado, Aluisio Rockembach teve a ingrata missão de fechar o festival. Afinal, o show era mais intimista, e o teatro estava mais vazio. Ingrata, pero no mucho: o acordeonista estava visivelmente emocionado por voltar ao El Mapa – no ano passado, ele brilhou ao acompanhar Luiz Marenco no Theatro São Pedro. Com vários familiares na plateia, o músico mostrou um pouco de sua veia mais jazzística, sem deixar de lado a influência tradicionalista. Surpreendeu os desavisados com uma versão de “Oceano”, de Djavan e, aproveitando a passagem de Drexler, interpretou “Una Canción Me Trajo Hasta Aquí”. Comunicativo, Rockembach rasgou elogios ao festival. “Eu sempre digo que política, religião e futebol separam as pessoas. A música une”, afirmou, sintetizando o espírito do El Mapa de Todos.

 

Foto da capa do site:
Rafael Casagrande

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