No 44º Festival de Cinema de Gramado, realizadores relembram que cultura, arte e política são inseparáveis

Vencedores do prêmio Assembleia Legislativa - Mostra Gaúcha de Curtas 2016. Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto
Vencedores do prêmio Assembleia Legislativa – Mostra Gaúcha de Curtas 2016. Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto

Em 2016, o final de semana de abertura (26, 27 e 28 de agosto) do Festival de Cinema de Gramado não foi palco apenas da exibição de novas obras. Realizadores de vários locais do Brasil aproveitaram os primeiros dias do evento para bradar “Fora Temer” e criticar o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Utilizando o palco do Festival – certamente o local de maior destaque durante as apresentações – os cineastas e atores de diversos estados condenaram a ocupação do cargo de presidente pelo interino Michel Temer, além da futura falta de investimento em cultura nacional, ameaçada com a extinção (e posterior recriação) do Ministério da Cultura nos primeiros dias do novo governo.

Durante o primeiro final de semana, as manifestações ocorreram em todas as mostras: curtas gaúchos, curtas nacionais e longas nacionais Na sexta-feira, na noite de abertura, o Palácio dos Festivais recebeu Aquarius, de Kléber Mendonça, e o prédio inteiro bradou gritos contra o vice-presidente interino. Na coletiva de imprensa, a equipe relembrou a atuação no Festival de Cannes, quando denunciou que um golpe de estado estava em andamento no Brasil. “O que me motivou e acho que o que motivou boa parte da equipe e todos os profissionais de audiovisual brasileiros que estavam em Cannes foi um senso de cidadania. Eu tenho dois filhos hoje e eu acho que a democracia ainda é a melhor forma de viver em sociedade. Ela continua sendo falha, mas é a melhor coisa que a gente tem. E quando você quebra esse processo democrático, num país que já tava vindo de um outro processo que não era democrático há 30 anos atrás, a situação social no país torna-se problemática”, disse o diretor na coletiva de imprensa. E Sônia Braga, protagonista do longa, completou: “nós vamos repetir as mesmas palavras […]: é golpe. Criar esse precedente no país é um crime”.

Sônia Braga foi homenageada com o Troféu Oscarito no Palácio dos Festivais. Foto: Edison Vara/Pressphoto - www.edisonvara.com.br - +555199820707
Sônia Braga foi homenageada com o Troféu Oscarito no Palácio dos Festivais. Foto: Edison Vara/Pressphoto

Já na premiação de curtas-metragens gaúchos, no domingo à noite, o primeiro premiado por melhor roteiro Roberto Burd chamou ao palco o presidente da Associação Profissional dos Técnicos Cinematográficos Davi de Oliveira Pinheiro. Este leu uma carta assinada por alguns dos diretores indicados do prêmio Assembléia Legislativa (leia abaixo na íntegra), que criticava o governo. Cartazes, camisetas e adesivos também eram vistos nos realizadores espalhados pela plateia.

Além do posicionamento contra o chefe do executivo, também houve manifestações a favor do investimento a cultura ao longo da mostra, sendo um contraponto a tantas opiniões expressadas abertamente no fim do Ministério da Cultura, que condenavam artistas participantes de editais com verbas públicas. “Produzir cultura é a nossa profissão”, defendeu Denise Marchi, durante a apresentação do filme Lipe, o Vovô e o Monstro, de Felippe Steffens e Carlos Mateus. O diretor do curta-metragem Horas, Boca Migotto, também relacionou a questão da falta do investimento em cultura e educação com a crise na segurança pública.

As temáticas dos curtas gaúchos selecionados eram variadas e interessantes. Falta de acessibilidade e a vida como cadeirante em Carol (dir. Mirela Kruel); a violência e a tortura durante a ditadura civil-militar brasileira em A rua das Casas Surdas (dir. Flávio Costa e Gabriel Mayer); racismo e homofobia em Pobre Preto e Puto (dir. Diego Tafarel) são apenas alguns dos assuntos atuais e relevantes dos curtas que figuraram entre os escolhidos para concorrer ao Prêmio Assembleia Legislativa – Mostra Gaúcha de Curtas. Segundo Diego Tafarel, “a cultura é uma arma gigante para destruir o machismo, o racismo e a homofobia. E Já que sou o último diretor a falar, minhas duas últimas palavras serão: Fora Temer”, conclui.

Confira abaixo na íntegra a carta publicada pelos realizadores audiovisuais gaúchos, lida na premiação da Mostra Assembleia Legislativa, no 44º Festival de Cinema de Gramado.

“Neste momento em que celebramos a pluralidade e a variedade da produção cinematográfica do Rio Grande do Sul, que pudemos ver ao longo desses três dias de exibição da Mostra Gaúcha de Curtas Metragens e que recebe agora a devida valorização através do Prêmio Assembleia Legislativa, enfrentamos também um momento de instabilidade e incerteza. O país passa por um período de turbulência política, provocado por forças políticas e econômicas conservadoras, com a intenção de perpetuar a concentração de poder e recursos nas mãos de poucos poderosos, enquanto a grande maioria não tem direito a necessidades básicas como alimentação, saúde, educação, cultura.

Nesse momento, é fundamental que nós, realizadores audiovisuais no Rio Grande do Sul, nos posicionemos não apenas contra esse golpe de estado que está em curso contra a presidenta democraticamente eleita, Dilma Rousseff, mas também contra um ataque mobilizado por essas mesmas forças conservadoras responsáveis pelo golpe, que tem como alvo os artistas, realizadores, técnicos e demais profissionais do cinema e da cultura do Brasil.

Esse ataque, que se dá na forma de insinuações maldosas e levianas sobre o uso de recursos públicos no financiamento à cultura, tenta apagar nossa participação e direitos como cidadãos, de forma a desqualificar qualquer posicionamento que seja elaborado por um setor que, além de contribuir para a formação do imaginário e da identidade coletiva desta nação, também constitui uma atividade de crescente relevância na vida econômica e no cotidiano do país. Este discurso viciado tenta nos afastar de nossos vizinhos, tenta nos transformar em inimigos do país para nossas famílias, nossos amigos e a sociedade como um todo, para tirar nossa prerrogativa democrática de termos nossos posicionamentos políticos. Tentam nos constranger e nos silenciar, para que possam agir às escuras pra fazerem o Brasil voltar atrás em conquistas históricas de direitos, de soberania nacional e de políticas voltadas à inclusão e à igualdade.

O cinema é uma poderosa ferramenta de discurso, análise e reflexão sobre as sociedades. Mais que nunca, nós, realizadores de audiovisual do Rio Grande do Sul e de todo o Brasil, temos o dever de nos mantermos atentos e fortes para exercermos em alto e bom som, em claras e eloquentes imagens, nosso papel de questionarmos e combatermos o retrocesso que se anuncia. O cinema do Rio Grande do Sul e do Brasil vai resistir a esses ataques, e vai continuar a se expressar de forma livre e intensa”.

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