Em O Silêncio do Céu, o orgulho se apropria do trauma

[Atenção: gatilho sobre estupro]

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Diana e Mario preferem o silêncio ao enfrentamento em O Silêncio do Céu.

O que é vingança e o que é orgulho? O novo longa de Marco Dutra, O Silêncio do Céu, tem uma premissa dolorida. Diana (Carolina Dieckmann), uma brasileira que mora no Uruguai, é estuprada violentamente dentro de casa por dois homens. O marido, Mario (Leonardo Sbaraglia) chega no local a tempo de ver a cena, mas planejando atacar os estupradores, perde tempo e eles acabam fugindo. A história, então, se desenrola a partir de duas perspectivas: o trauma e o pânico de Diana e o incômodo e a dor de Mario. Nenhum dos dois imagina que o outro sabe do estupro. O marido não admite que esteve na casa durante o acontecido, e a esposa jamais conta o que aconteceu ou pede ajuda.

O filme tem vários méritos. O clima de tensão e desconforto estabelecido jamais é rompido. Desde cenas aparentemente banais – como chegar em casa – fica óbvio o que aquele trauma causou em Diana. O som é um grande aliado nessa questão, já que barulhos e ruídos cotidianos são associados ao trauma e criam um desconforto tanto na família quanto no espectador.

O desgaste do casal – que já esteve separado e estaria tentando recomeçar o casamento – também é apresentado de forma sutil. Suas respostas são monossilábicas e nunca se percebe se aquilo deriva do estupro recém ocorrido ou da monotonia do casamento. A narração de Mario é empregada de forma inteligente: o filme não busca explicar cada situação que está acontecendo em tela, mas trazer o passado daquele casal para que se entenda a relação monocromática que vivem atualmente. E as atuações excelentes tanto de Dieckman quanto de Sbaraglia corroboram para que o casal seja retratado com o devido peso dramático.

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Diana, apesar do trauma, não consegue pedir ajuda

Apesar da história focar em uma situação vivida por Diana, vale a pena marcar que o filme não é sobre ela. Mas sim sobre um marido angustiado, no qual a esposa não confia, e que tenta, a qualquer custo encontrar os homens que estupraram a mulher. Suas ações, porém, parecem ser motivadas por puro orgulho masculino. O trauma em Diana foi avassalador. Ela aparentemente não comenta o que aconteceu com ninguém. Porém, a partir do modo como a história se desenrola, percebe-se que as ações de Mario não são para ajudar a esposa. Sua busca por justiça é mais para consolar o próprio coração (ego) do que necessariamente para confortar Diana, que, volto a reforçar, não confia nele nem mesmo para pedir ajuda. Há poucos dias atrás, um homem publicou na internet um texto sobre “Como foi transar com uma vítima de estupro”, e O Silêncio do Céu repete a mesma fórmula. Homens usam traumas de mulheres para significar suas experiências medíocres. Mario tem tanto medo da verdade que prefere encarar o silêncio da esposa ao expor seu conhecimento sobre a situação para que ambos superem aquela vivência traumática.

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Mario presencia a cena, mas não consegue agir.

Acredito que seja exatamente essa a intenção do diretor. Mario, em momento algum, é um marido ideal. Por mais que bem sucedido profissionalmente e apaixonado pela esposa e pelos filhos, ele tem uma vida bastante comum. Ele não é pintado como vilão – e nem deveria ser – mas também, ele nunca é retratado como alguém que demonstre segurança. É claro, ver o homem atrás dos estupradores desperta um sentimento primário de justiça sendo feita. Porém, é até interessante questionar esse prazer que o filme pode despertar no espectador: estaríamos cedendo a um lado primitivo e apoiador da justiça feita com as próprias mãos quando sentimos isso?

Quanto às cenas de estupro, o filme é bastante cru. O diretor, por ser homem, talvez não tenha tido o tato necessário. Cenas de estupro são gatilhos. Cenas de estupro não devem ser usadas para aumentar a densidade emocional de um filme sem trabalhar o contexto. Cenas de estupro têm que ser tratadas com o mesmo cuidado que cenas de extrema violência. Cenas de estupro não são fáceis de serem vistas por mulheres. E o estupro de O Silêncio do Céu aparece sem aviso e de forma brutal. O filme não passa no teste de Jada. Esta ferramenta foi desenvolvida pela autora Jada Yudan enquanto analisava as cenas da terceira temporada da série norte- americana Orange is the New Black. Jada queria entender a real motivação das cenas de violência sexual que apareciam na tela. Para passar no teste, o estupro retratado em tela deve responder três perguntas. Entre parênteses, respondo relacionando-as à cena em O Silêncio do Céu.

  1. Ele ocorre do ponto de vista da vítima? (Parcialmente. O estupro é mostrado a partir da perspectiva de Diana na maior parte das vezes. Porém, a violência também aparece do ponto de vista do marido, quando este tenta planejar uma luta com os agressores).
  2. A cena de estupro possui o propósito de desenvolvimento da personagem da vítima em vez da trama da narrativa? (Não. O estupro é o desencadeador da busca por vingança por parte do marido, que se preocupa muito mais com questões do próprio orgulho do que com o bem-estar de sua esposa).
  3. O abalo emocional da vítima é desenvolvido depois? (Nesse caso, sim. Diana constantemente é vista em tela sentindo que precisa tomar banho – traço comum em algumas vítimas de estupro- e parece distante dos filhos e do marido. Além disso, seu medo e ansiedade parecem aumentar perante qualquer situação cotidiana).

O Silêncio do Céu é um filme interessante se for visto a partir da perspectiva da mediocridade masculina perante um problema real passado por uma mulher. Mario não é um defensor da esposa, ou alguém que está constantemente atrás de justiça. Por honra masculina, ele vai atrás dos estupradores com o intuito de purificar-se. Sem contar com a confiança da esposa, ele não liga se ela tem consciência ou não desses atos. Logo, O Silêncio do Céu, apesar de bem produzido e bem dirigido, é apenas mais um filme onde um protagonista masculino precisa explorar a dor de uma mulher para ficar em paz com o próprio orgulho masculino. E descolar-se de sua vida medíocre.

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