As Bahias e a Cozinha Mineira: a dor de ser mulher nos tempos atuais

re.sis.tên.cia
substantivo feminino

  1. ato ou efeito de resistir.
  2. propriedade de um corpo que reage contra a ação de outro corpo.
  3. recusa a submeter-se à vontade de outrem; oposição, reação

É impossível não falar de uma banda como As Bahias e a Cozinha Mineira sem temer pelo futuro que a humanidade nos reserva com essa onda retrógrada mundial. Resistência é o que precisamos em um dia como hoje, em que um misógino, racista e xenófobo foi eleito a pessoa mais importante do mundo. Resistência é também um dos termos que podem explicar a força de Raquel Virgínia e Assucena Assucena, vocalistas do grupo. A banda se apresentou no bar Opinião na última segunda (7), trazendo a Porto Alegre sua mistura musical de samba, soul, tropicalismo e ritmos nordestinos.

Resistência é palavra marcadamente feminina, e isso fez todo o sentido no show. Com letras inspiradas nas vivências das meninas, o setlist foi composto pelas músicas do álbum Mulher (2015). “Salve salve a todas as mulheres negras que resistem no Brasil”, Raquel bradou a certa altura do show, em um dos vários momentos em que a banda interagiu com o público. A noite estava destinada a ser de identificação e conexão entre as várias mulheres presentes na casa.

Tudo começou às 22h, quando a portoalegrense Camila Lopez subiu no palco para fazer o show de abertura, com um repertório que variou entre músicas autorais e Elis Regina (a quem a cantora prepara um tributo que deve estrear em breve). Camila tem uma voz potente, acolhedora e com uma versatilidade que flui de suas músicas mais intimistas até as que falam sobre a rotina do trabalhador brasileiro. Foi uma pena que a casa estivesse quase vazia, cenário que se alterou um pouco quando As Bahias apareceram, às 23h.

A baiana Assucena Assucena (Foto: Carol Corso/Nonada)

Como vem acontecendo há algum tempo na Segunda Maluca – responsável por trazer a Porto Alegre alguns dos nomes que estão renovando a música brasileira -, o público da noite foi escasso, mas intenso. Lá pelo meio do show, as cerca de 200 pessoas presentes pareciam muito mais.

Alternando nos vocais, Raquel e Assucena Assucena têm vozes que envolvem e presenças que inspiram, seja em passagens instrospectivas, seja nos momentos animados, que colocaram todo mundo para dançar. Nas músicas mais lentas, como “Ó Lua” e “Uma Canção Pra Você (Jaqueta Amarela)”, foi impossível não se hipnotizar pelos timbres e performances de ambas.

Feito rio que erode do espaço às margens: Trajetória
E dum choro contido, de branco e grinalda na média
Abusaram o desejo do corpo e teu sonho trajou de tragédia (letra de Apologia às Virgens Mães)

Com uma mistura que une a cultura brasileira a ações micropolíticas no âmbito do artivismo, (como a quebra de estereótipos de gênero), As Bahias integram um círculo de artistas que vêm levando a Música Popular Brasileira a um novo nível. São nomes como Tássia Reis, Ava Rocha, Liniker e os Caramelows, Jaloo e Karol Conká, por exemplo. Uma geração que sabe a importância que a força da arte tem nesse momento reacionário, que não foge da luta, que usa o talento para gritar feminismo, empoderamento negro e libertação.

Raquel dedicou o show a todas as mulheres negras do Brasil (Foto: Carol Corso/Nonada)

Assim como a maioria dessas cantoras e cantores, As Bahias também têm letras sociais, a exemplo de “Comida Forte” e “Josefa Maria”, que falam da migração nordestina – cultura com a qual as duas têm forte identificação, já que Assucena é baiana e Raquel, que nasceu no Grajaú, em SP, já morou no estado. O nordeste, aliás, é forte referência entre as composições delas, com citações a ícones da cultura brasileira, como Drummond, Gal Costa, Novos Baianos e Caetano Veloso.  

“Nordestina filha da Paraíba
Fez seus filhos nos trilhos da seca paulistana
Viu o pé de jaca que plantou
No seu quintal crescer
Sentiu as dores do mundo em seus joelhos
De tanto rezar” letra de Josefa Maria

A política se fez presente também no discurso, no momento em que as meninas declararam apoio às ocupações nas universidades do Rio Grande do Sul, contra a PEC 55. “Fora, Temer! A gente sabe pelo que lutou. Inclusive tem duas travestis no palco. A gente é cobra criada, meu amor”. Palavras prontamente aplaudidas pelo público. Em outro momento do show, alguém entregou a Raquel um papel, que ela leu com voz inflamada: OCUPA GERAL. De ocupar espaços negados pela sociedade e conquistar direitos, Raquel e Assucena entendem muito bem: as duas são estudantes de História na USP.

Nas músicas finais, homenagens a Bob Marley, Belchior e Milton Nascimento (com “Paula e Bebeto” e sua marcante frase “qualquer maneira de amor vale a pena”) fizeram o show terminar em catarse. Depois de uma noite de muita energia e inspiração, meu palpite é que muitas mulheres tenham ido para casa com a mesma ideia: Vamos ocupar tudo, manas.

Confira mais fotos (por Carol Corso):

Compartilhe
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Curadoria Processos artísticos

6 artistas para conferir na Bienal 13

Memória e patrimônio Reportagem

Centenário é importante para revisar mitos da Semana de Arte Moderna

Processos artísticos Resenha

Premiado com o Jabuti, livro de escritora paraense navega nos rios de fora e de dentro