Entre poetas: conversas entre Maria Carpi e Eliane Marques

Qual seria o resultado de uma conversa sobre o fazer poético entre duas grandes poetas? Que sumo teríamos se o extraíssemos da filosofia de vida (e versos) de Maria Carpi junto ao vigor e agudez das palavras de Eliane Marques?

Ao mediar o evento promovido pelo Sesc Centro (Porto Alegre), Poesia em pauta, com o tema A mulher como agente de escrita, a poesia com o olhar feminino, percebi que eu não apenas poderia, como também deveria compartilhar tal experiência no Veredas. Sendo assim, transcrevi abaixo os principais trechos do bate-papo que aconteceu no dia 21 de março.

Conheci Eliane Marques durante a produção da reportagem Por que não conhecemos as escritoras negras gaúchas? Mais tarde, em outra ocasião, mediei uma mesa na qual a escritora, ao lado de outras duas autoras (Cintia Moscovich e Julia Dantas) debatia a obra Um teto todo seu, de Virginia Woolf.

Poeta Eliane Marques (Foto: Lidiane Bach/Nonada)

Eliane é gaúcha, mora em Porto Alegre. É coordenadora da Escola de Poesia e também coordenadora editorial da revista Ovo da ema, além disso, é auditora pública externa do Tribunal de Contas do Estado do RS. Já publicou os livros de poesia Relicário (2009); com outros autores, Arado de palavras (2008) e e se alguém o pano (2015), este último, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura 2016 – categoria poema.

A oportunidade de me aproximar de Maria Carpi, poeta respeitada e reconhecida no Brasil, surgiu assim que o evento do Sesc foi proposto. Oportunidade ímpar, para mim, de conhecer de perto o trabalho desta poeta que estreou na literatura em 1990, com Nos gerais da dor, título que arrebatou o prêmio de Revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) daquele ano. Com quatro Açorianos no currículo, sendo finalista de um Jabuti, três vezes Melhor Livro do Ano em Poesia pela AGES, a escritora tem uma longa produção, apesar de ter começado a publicar tardiamente, aos 50 anos. Hoje, aos 77, comenta que tem prontos ainda mais de 20 títulos, sem previsão de lançamento. Entre as obras publicadas de Maria Carpi, estão Os cantares da semente (1996), A migalha e a fome (2000) e O cego e a natureza morta (2016).

A seguir, os principais trechos da conversa entre Eliane Marques e Maria Carpi. Elas responderam a perguntas “despretensiosas” (caso alguma pergunta tenha condições de assim ser) e subjetivas. Da bondade, ou não, no processo de escrita, à paixão por uma palavra.

Poeta Maria Carpi (Foto: arquivo pessoal)

Veredas – A partir de quando você se definiu como poeta?

Maria Carpi – Sou poeta desde o ventre da minha mãe. Ser poeta, todo mundo é convidado a ser. É uma maneira de viver em cordialidade com todo o universo, não só com os seres humanos. Quando a minha mãe me apresentava, eu, menina de tranças, dizia: “a Mariazinha é muito sensível”. Eu não entendia, pois achava que todo mundo deveria ser sensível.

Mas, como escritora de poesia, eu faço uma distinção. Ser poeta, todos são convidados. Mas nem todos precisam ser escritores de poesia, que é uma tarefa árdua, de persistência, muita vontade, de pesquisa. Ser escritor de poesia não é nada fácil (…) Que eu me disciplinei como escritora, foi com 37, 38 anos. Eu já tinha 15 livros prontos quando eu escolhi Nos gerais da dor e o publiquei.

Eliane Marques – Eu não sei se já ocorreu este estalo, mas eu concordo quando tu [Maria Carpi] dizes que cada um tem a possibilidade de ser um poeta, de escrever poesia. Inclusive Freud, em O poeta e o fantasiar [1907], dizia isso. Agora, escrever poesia e que este trabalho tenha qualidade, depende de muito trabalho. Nós, principalmente mulheres, não estamos esperando que nenhuma musa chegue. Antes que as musas nos encontrem nós já estamos trabalhando. Então, poesia é trabalho. E processo. Minha trajetória ainda é muito curta comparada com a da Maria Carpi, então não ocorreu o “ah, sou poeta”. Ainda estou a caminho.

Maria Carpi – Acho que até morrer o poeta vai dizer “eu ainda estou a caminho”.

sob alguns dedos de areis (sem hino ou antígona)
à praia onde talvez a maré o embale
(ou ao mato) ao conforto do mofo entre as árvores

(em terra de pretos) não existe chão para tantos mortos
(De e se alguém o pano, de Eliane Marques)

Veredas – Poesia é feita com razão ou emoção?

Maria Carpi – A poesia, segundo Maria Zambrano* [1904-1991], é a síntese da razão com a poesia. Ela quer procurar dentro da filosofia, e eu também quero, com muita humildade, procurar dentro da poesia a razão poética. A poesia te faz pensar, mas ela vem de outro nível. Ela engloba também a sensibilidade. Por exemplo, neste meu livro, O cego e a natureza morta, fiquei anos com ele. Eu me apaixono por um tema como se fosse uma partitura musical. E depois eu vou desenvolvendo. O poeta mais escreve quando não escreve. E vou desenvolvendo. Eu custei a publicar o Cego, pois achei ele muito barroco. Era difícil de ser entendido. Mas eu peço ao cego que ele me ensine a ver com a sensibilidade. Ver com a sensibilidade é perceber, é enxergar.

*Filósofa e escritora espanhola

Eliane Marques – No campo da poesia, meu trabalho é braçal. Sempre existe uma pergunta que me acompanha na produção. Mas eu não a respondo mentalmente, ou pelo menos eu não percebo que essa resposta e construção se deem mentalmente. Eu lembro de um ou dois poemas do meu primeiro livro (Relicário) que a produção foi mental. [Tinha em mente] a pergunta da propriedade, a questão de vir de outro lugar com a sua bagagem, com a suas louças, ou não vir, vir desnudo. Então eu sento no computador e tento produzir uma resposta escrevendo. Mas eu não tenho noção qual pensamento acompanha aquilo ali. Depois eu paro, leio e vou lapidando. No entanto, eu não trabalho com uma ideia pré-concebida. Eu não consigo trabalhar assim, não sei. Ou, pelo menos até agora, o meu trabalho não foi assim.

(…) Já na prosa, tem algo que eu associo à emoção para escrever. Por exemplo, estou produzindo um conjunto de textos chamados Rosas colombianas. Onde eu moro há mulheres que vendem estas rosas. Quero escrever a partir de minha posição de mulher negra na sociedade; sobre as situações que eu passo no Tribunal de Contas, onde eu trabalho; na Escola de Poesia, onde coordeno um grupo de poesia. Como escritora, como me chamam? Como me nomeiam? “A poeta negra” ou só “poeta”? Ou “eu vou te chamar [para uma mesa] porque tu és uma poeta negra”. Que lugar eu ocupo aqui? Que lugar eu ocupo como poeta ou escritora? Será que é só o negro que tem peso nisso e o meu trabalho como escritora não tem? Então eu estou escrevendo sobre isso.

Quando tecerei o pano
que me cubra as faces?

Quando tecerei o pano,
mais que lençol onde dormes;

mais que camisa onde transpiras?
O pano que me abra o chão

com que me estás tecendo

(Poema 12, em O desvario do pólen, de Maria Carpi)

Veredas – Você já se apaixonou por alguma palavra?

Maria Carpi – Gosto muito da palavra arvoredo. Ai, como é lindo arvoredo. E eu já imagino aquelas arvorezinhas todas juntinhas, uma se apoiando na outra. Acho linda. Agora, uma palavra que detesto, que eu nunca usaria é perpétua. Feíssima.

Eliane Marques – Sou da fronteira – nasci em Santana do Livramento (RS) – com Riveira. A minha mãe, como empregada doméstica, atravessava muito a fronteira. Eu sempre gosto de dizer que a maior parte da gestação ela passou em Riveira, ouvindo as pessoas falarem espanhol, que eu adoro, tanto é que tento misturar na minha poesia. Leio muito poesia e prosa em espanhol. Adoro a palavra palangana, que significa “bacia”.

Veredas – Você altera o poema depois de publicado?

Maria Carpi – Antes de publicar eu faço o que chamo de ourivesaria fina. O bom do meu sistema é que quando publico o meu livro, ele já demorou vários anos. Quando eu o leio não sou mais autora, sou leitora. Às vezes nem me lembro de tê-lo escrito. Parece forçado, mas é verdade. O livro é tanto melhor quanto mais se desligar da gente, da história pessoal da gente.

Eliane Marques – Parece que, quando o autor publica, ele torna social aquela produção, antes individual. Ele se descola, então, este livro não é mais meu, estes poemas não são meus, eles estão aí para o mundo, para quem quiser ler. Isso de mexer em poemas já publicados não faço. Eu terei que aguentar aquilo que publiquei. Naquele momento não era tão bom ou deveria ser corrigido. Mas nós temos que suportar a crítica. Esse também é o trabalho do poeta.

Veredas – Você não faz parte de nenhuma rede social social. Como funciona a relação com os leitores, já que muitos escritores usam esses meios para se conectarem com o público e até mesmo divulgarem seus trabalhos?

Maria Carpi – A minha “rede social” são meus leitores que me leem fora do meu alcance.

Eliane Marques – Eu ainda acredito que o trabalho do poeta se expressa quando da publicação do livro, seja que formato tenha (impresso ou digital). As redes sociais seriam apenas formas de comunicação estranhas ao trabalho poético em si mesmo.

Veredas – O que antecede a criação? Angústia ou glória?

Maria Carpi – Uma escuta atenta da vida. Aprimorar os sentidos para perceber tudo com maior acuidade. No meu livro O cego e a natureza morta peço ao cego para me ensinar a ver com a epiderme.

Eliane Marques – A angústia faz parte da nossa constituição como sujeitos. Talvez o poeta ou o artista em geral seja aquele que a suporte de modo mais socializado, pois a partir dela poderá inserir no mundo palavras novas ou articuladas de outra maneira, menos esperadas ou ordinárias. Já a glória prenunciaria apenas a guerra, os pés dos soldados em marcha contra o inimigo de sempre

Veredas – Já pensou em desistir da poesia ou da escrita?

Maria Carpi – Num poema eu digo: “a poesia esperou por mim. Como eu vou desistir dela?”

Eliane Marques – Sim, já pensei. No momento em que me senti mais integrada a certo grupo de escritores que vim a conhecer, abateu-me a dúvida de continuar com o trabalho de escrever poesia. Suponho que a desistência seja apenas uma troca no nome das ruas pelas quais se trilha.

Veredas – Você considera a sua poesia difícil?

Maria Carpi – Certa vez uma jornalista, tendo lido o prefácio que o professor Armindo Trevisan fez a meu livro A chama azul (2011), sobre Joana D’Arc, onde ele afirma que a leitura de Maria Carpi, para alguns leitores pode ser difícil, perguntou-me se eu concordava. Respondi-lhe: não é difícil ler Maria Carpi. Difícil é ser Maria Carpi.

Eliane Marques – Existem formas diversas de o poeta se situar diante da linguagem e de um suposto real do qual se crê que ela viria a dar conta. Parece-me que as diferenças básicas entre um poeta e outro ou até entre um poema e outro de um mesmo autor derivam das formas com que cada um (ou o mesmo) se posiciona frente ao real-simbólico-imaginário que o articula-desarticula, o que não diz de maior facilidade ou dificuldade do texto, apenas de uma diferença.

Veredas – É preciso bondade consigo mesma para criar?

Maria Carpi – Toda criação é um ato de bondade. Não só de bondade, mas de extrema responsabilidade.

Eliane Marques – Não, se não houver um pouco de crueldade não haverá criação, apenas um ato religioso ou de caridade.

Veredas – Quando se termina um livro, o que resta?

Maria Carpi – Todo o caminho que o livro abrirá.

Eliane Marques – Resta outro livro a ser construído.

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