Leonino e filho de Xangô, Emicida brilha, mas não sozinho

por Iarema Soares
Fotos: Daniel Guarin/Nonada

Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, aterrissou em Porto Alegre para apresentar seu mais recente trabalho chamado 10 anos de Triunfo, DVD feito ano passado em São Paulo. O 20 de novembro foi a data escolhida para a gravação e ela não foi à toa, afinal, foi neste dia que Zumbi dos Palmares – líder que lutou, assim como Dandara, pela libertação de escravizados – foi morto. O rapper criado no Jardim Fontális, zona norte da capital paulista, traz nesta produção tracks desde o seu primeiro álbum Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei longe até o mais recente Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa.

Além de ter sobrevivido e vencido as estatísticas que jogam contra corpos negros, nesses 10 anos, Emicida cresceu. Ele fez parcerias, criou o próprio selo, a própria marca de roupas, colocou a diversidade na passarela do São Paulo Fashion Week, lançou novos artistas e levou sua escrevivência e perspectiva de mundo para espaços em que os minorizados ainda não ocupam. Em suma, triunfou. Triunfou, mas não foi sozinho. Apesar de leonino, Emicida não quer o holofote voltado apenas para ele, não quer ser a exceção, não quer ser o único rapper negro de sucesso na indústria fonográfica brasileira, por isso, carrega com ele as outras vozes que também compõem a cena e que constroem essa coletividade negra.

Do caos, ele fez arte

Uma das novas vozes do rap nacional é Coruja BC1 (Foto: Daniel Guarin/Nonada)

E uma das novas vozes do rap nacional é Coruja BC1. Na sua primeira vez em Porto Alegre, o rapper reformulou o conceito de show de abertura e transformou seus 50 minutos no palco em algo maior. Foram apresentadas as músicas do seu mais recente trabalho No dia dos nossos (NDDN), poemas foram declamados, Marielle Franco (presente!) foi lembrada e o público, que estava colado à grade, bebeu cada rima cantada e se deixou levar pelo flow do rapper. A energia do artista flutuava entre a eletricidade de um estreante e a postura de quem tem experiência de quem já viveu muitas batalhas de rap.

Coruja trouxe o ativismo, o ritmo acelerado da fala e dos beats, mas também a métrica potente de quem tem muito a dizer, de quem quer se fazer ouvir, e melhor, de quem conseguiu encontrar uma brecha no sistema sufocante e que conseguiu se fazer ouvir apesar da mordaça que lhe é imposta. As batidas densas acompanharam letras que abordam ascensão social, tensionamentos de classe e de raça e outras que reverenciam os grandes nomes do rap brasileiro e internacional. Nascido na cidade de Osasco e criado em Bauru, ambas localizadas em São Paulo, o artista de apenas 23 anos lançou A voz do coração, sua primeira mixtape em 2014, mas ganhou mais notoriedade em com o single “Passando a Limpo”, que foi liberado em 2016.

Um sonho impresso na história

Ao mesmo tempo que as tracks escolhidas versam sobre esse transcender das adversidades impostas, a curadoria não deixou de lado novas composições ainda mais incisivas no que tange a crítica ao racismo, como em Todos Os Olhos em Nóiz (Foto: Daniel Guarin/Nonada)

O trabalho lançado por Emicida é sobre a realização de um desejo, é sobre começar, humildemente, fazendo rimas com amigos, participando de batalhas de rap e terminar fazendo negócio. Ao mesmo tempo que as tracks escolhidas versam sobre esse transcender das adversidades impostas, a curadoria incluiu novas composições ainda mais incisivas no que tange à crítica ao racismo, como em “Todos Os Olhos em Nóiz”. Desta vez, o rapper veio acompanhado somente do DJ Nyack e isso tirou um pouco do encanto que a mistura de percussão e instrumentos de corda trazem a apresentações ao vivo. Entretanto, houve doação e entrega completa da dupla que estava no palco. Nyack atrás das pick ups disparando as batidas, e seu oposto complementar à frente cantando cada rima como se fosse a última.

A apresentação de Emicida foi pujante, tal qual a cor predominante nas projeções do show, o vermelho. Teve energia, teve paixão, escancarou a violência quando substitui as tradicionais batidas da música “Boa Esperança” por rajadas de metralhadora e trouxe a famosa cena do filme Ó paí, ó na qual Roque (Lázaro Ramos) reforça a urgência da humanização do olhar que a branquitude precisa ter frente a corpos negros. Além disso, o rapper paulista puxou a capella o trecho de um dos clássicos do rap gaúcho, a música Dr. Destino, do grupo Da Guedes e, logo em seguida, Rafa e Ricky Rafuagi subiram ao palco para cantar “Resta Um”. Veterano em Porto Alegre e conhecedor da cena gaúcha, Emicida brincou no palco, cantou a dor, o sucesso e a alegria de ter chegado onde chegou. No início da apresentação, ele disse: “Alguém precisa lembrar o meu filho que ele é rei”. Dona Jacira, mãe de Emicida, certamente deve ter feito isso quando ele era pequeno, deve ter lembrado ao guri do Jardim Fontális que ele poderia ganhar o mundo por meio do ritmo e da poesia.

Foto: Daniel Guarin
Foto: Daniel Guarin
Foto: Daniel Guarin
Compartilhe
Apaixonada por literatura. Ama escrever sobre o protagonismo negro nos mais diversos campos de conhecimento.
Ler mais sobre
Curadoria Processos artísticos

Conheça artistas que integram a mostra Brasil Futuro: as Formas da Democracia

Processos artísticos Reportagem

Corpo tem sotaque: como mestra Iara Deodoro abriu caminhos para a dança afro-gaúcha

Memória e patrimônio Reportagem

Centenário é importante para revisar mitos da Semana de Arte Moderna