Omar Victor Diop usa a liberdade como cronologia em série de retratos

Texto: Airan Albino
Imagens: montagem com obras de Omar Victor Diop

Contemplação, solenidade e celebração são os sentimentos que a série “Liberdade – Cronologia Universal de Protestos Negros” expressa. Essa é a definição do autor, o fotógrafo senegalês Omar Victor Diop, que foi um dos 21 artistas africanos convidados para participar da 11ª Bienal do Mercosul. As fotos de Diop captam o desejo da exposição, o de refletir sobre o quanto o êxodo do Atlântico Negro influenciou as culturas ocidentais.

Os retratos são a especialidade do fotógrafo, que é um dos importantes nomes da fotografia contemporânea da África, junto de Samuel Fosso, Mama Casset (1908-1992), Seydou Keïta (1921-2001) e Malick Sidibé (1936-2016). Esse estilo africano de fotografar foi desenvolvido no período de descolonização do continente, na metade do século XX, baseado nas fotografias de não-brancos, conhecidas como “fotografia ambulante”. O diferencial dos artistas negros é o olhar de quem faz parte desta cultura e, portanto, ressalta os elementos e traços negróides. Diop resolveu se dedicar à fotografia apenas em 2012, mas conhece e aplica técnicas africanas anteriores ao seu trabalho. De Mama Casset, ele capta o olhar diagonal e o forte uso de tecidos, característica da escola senegalesa. De Seydou Keïta e Malick Sidibé (ambos de Mali) o uso de fundos decorativos para imprimir personalidade ao retrato. Desde então, Omar se destaca levando a cultura africana mundo afora, por meio de sua arte.

Na 11ª Bienal, em Porto Alegre, a série “Liberty” esteve no Santander Cultural. São retratos do próprio Omar Victor Diop e da modelo senegalesa Dijanaay B, que participa de outras séries do fotógrafo. A curadoria da Bienal recebeu, como cortesia, oito das 12 obras que compõem a série de Diop da galeria francesa MAGNIN-A. Juntando as técnicas africanas, Diop fala de liberdade recordando, interpretando e justapondo 12 protestos históricos de comunidades negras da África e da diáspora. Eles são colocados em uma ordem cronológica de busca frenética pela liberdade, e não por sua diferença de tempo, geografia ou tamanho. Para o autor: “o destino das sociedades africanas e subsequentemente da diáspora foi drasticamente alterado com os processos de colonização, com a imposição de poder dos sistemas ocidentais, o tráfico de escravizados e os períodos de independência. Assim, os negros sentiram a necessidade de restaurar e preservar o que havia sido tirado deles: suas liberdades.”

 

Os paralelos

A cronologia dos eventos históricos segue a mesma linha na construção da imagem, mudando apenas a figura retratada e elementos simbólicos, como a linguagem floral. A proposta cronológica de Diop ganha sentido a partir do instante que se entende as motivações e estruturas dos protestos negros pelo tempo.

Assassinatos de Trayvon Martin (EUA – 2012)
e de Aline Sitoe Diatta (Senegal – 1944)

Trayvon Martin, 2012 e Alin Sitoe Diatta, 1944 (Omar Victor Diop – MAGNIN-A)

Ao sair do condomínio onde morava a noiva de seu pai, Trayvon Martin (1995 – 2012) foi assassinado com um tiro no peito por um vigilante do bairro. Ele estava desarmado, apenas com uma barra de chocolate e foi considerado suspeito pelo guarda. O caso do assassinato de Trayvon repercutiu massivamente nas redes sociais, seu nome foi mencionado no Twitter mais de dois milhões de vezes, no espaço de um mês. A hashtag #BlackLivesMatter se tornou popular e encadeou a criação de um movimento em 2013, de mesmo nome, que criticam racismo sistêmico e a violência policial contra a população negra nos Estados Unidos. Com isso, o movimento ganhou outros lugares do mundo, como Austrália e Canadá e passou a ser um importante ato de denúncia contra situações semelhantes.

Aline Sitoe Diatta (1920-1944) nasceu no sul do Senegal, na cidade de Kabrousse, na região de Basse Casamance. Criada por seu tio, ela transitou por cidades como Ziguinchor e Dakar. Muitos acreditavam que Diatta tinha poderes religiosos, e a viam como uma profetisa. A jovem recusou esse posto até o momento em que a região onde vivia teve que lidar com pressão do governo Francês, no período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A exploração dos colonizadores gerou boicotes da população senegalesa e Aline era uma das lideranças locais. Considerados resistentes, a administração colonial francesa foi atrás e prendeu os líderes das rebeliões. Ela foi deportada para uma prisão em Mali, onde faleceu aos 24 anos. Após sua morte, a figura de Aline Sitoe Diatta se tornou um dos mais importantes símbolos de resistência da África Ocidental, e um símbolo nacional no Senegal, especialmente na região de Casamance. Hoje, a Universidade Cheikh Anta Diop tem um de seus campi com o nome da heroína, assim como um estádio de futebol construído nos anos 1990, além de diversas escolas e organizações pelo país.

 

Greve ferroviária na África Ocidental (Dakar ao Rio Níger – 1947)
e a Guerra das Mulheres (Nigéria – 1929)

The W/African Railway Strike 19 e The Ibo Women’s War, 1929 (Omar Victor Diop – MAGNIN-A)

De outubro de 1947 a março de 1948 trabalhadores africanos da ferrovia que estava sendo construída para ligar a cidade de Dakar ao Rio Níger fizeram uma greve. O motivo foi porque eles não tinham os mesmos direitos que os trabalhadores franceses. A administração colonial não acreditou no poder de união do sindicatos dos trabalhadores do oeste africano. No dia 10 de outubro de 1947, 19 mil trabalhadores pararam, abrangendo o Senegal, a Costa do Marfim, a Guiné e Daomé (atual Benim). Crendo na pressão econômica, os colonizadores demoraram para emitir uma resposta à greve, entretanto não contavam com o apoio da comunidade local, que abasteceu os grevistas com comida e dinheiro. Só com a mudança do comissário responsável pela obra, em 19 de março de 1948 que os trabalhadores voltaram. A greve é vista como principal ponto de virada na luta anticolonial senegalesa, e virou inspiração para o romance “Les bouts de bois de Dieu” (Os pedaços de madeira de Deus), de Ousmane Sembène (1923-2007).

A crise de 1929 desestruturou todos os sistemas capitalistas do mundo, assim como na África. Com a grande depressão, a administração britânica aumentou impostos nas colônias, a exemplo da Nigéria. A medida foi um dos motivos para que camponesas de seis grupos étnicos do leste nigeriano (Ibibio, Andoni, Orgoni, Bonny, Opobo e Igbo) se juntassem e protestassem. Além das motivações econômicas, os protestos eram contra os Warrant Chief’s (chefes de autorização), postos criados pelos colonizadores para criar uma hierarquia nas regiões da Nigéria – e só homens podiam ocupar esses postos. Milhares de mulheres fizeram parte da revolta e, quando a notícia do protesto se espalhou, mais pessoas aderiram ao movimento. Durante o mês de novembro de 1929, diversas administrações coloniais foram destruídas, cerca de 30 cidades participaram do que ficou conhecido como a Guerra das Mulheres de Aba. Aproximadamente 50 mulheres morreram lutando. Após a guerra, o governo britânico baniu os postos de chefe de autorização.

 

Os quilombos de Nanny e Quao (Jamaica – 1720)
e o Levante de Soweto (África do Sul – 1976)

Nanny and Quao, 1720 e The Soweto Uprising, 1976 (Omar Victor Diop – MAGNIN-A)

Existem muitas histórias sobre a Rainha Nanny ou simplesmente Nanny (1866-1755). É de conhecimento que ela é um símbolo nacional de resistência na Jamaica. Em uma das versões, contam que Nanny foi escravizada do povo Asante (atual Gana) e lavada para a Jamaica. Vendida para uma plantação na região de Saint Thomas, costa leste da ilha caribenha, ela teria conseguido fugir junto de seus irmãos Accompong, Cudjoe e Quao para as Montanhas Azuis, região florestal do país. Enquanto estavam escondidos, os irmãos se separaram e organizaram comunidades Maroon (quilombos) pela ilha. Cudjoe teria criado a Cudjoe Town, numa região próxima ao leste; Accompong teria criado Accompong Town, no oeste; e Nanny junto de Quao teriam fundado Nanny Town, no nordeste, em 1720. As comunidades Maroons abrigavam todos os escravizados que conseguiam fugir das plantações e formavam bastiões contra a colonização. Os irmãos foram líderes de grandes rebeliões e Nanny virou uma heroína por ganhar de tropas britânicas diversas vezes. É creditada a ela a libertação de mais de 1000 escravos. Nanny morreu após as batalhas anticoloniais, conhecidas como Guerras Maroon.

Em 1974, foi decretado durante o regime do Apartheid, na África do Sul, que todas as escolas negras teriam de adicionar o ensino do africâner junto do inglês, em uma divisão 50/50, a partir de 1º de janeiro de 1975. O africâner é a língua de descendência alemã, falada pela população branca da África do Sul, como dizia o líder Desmond Tutu: “é a língua do opressor”. A medida obviamente não foi bem recebida pelo povo negro do país, assim no começo de 1976 começaram os primeiros protestos. Uma greve em abril na Orlando West Junior School, no Soweto, desencadeou uma série de revoltas em escolas negras, até que em junho foi organizada uma reunião para uma ação coletiva. Teboho “Tsietsi” Mashinini (1957-1990) foi o aluno que propôs a formação do comitê de ação e foi um dos líderes do Levante de Soweto, do dia 16 de junho de 1976. Na manhã do dia 16, cerca de 20 mil estudantes caminharam até o Orlando Stadium, com o apoio dos movimentos negros do país, contra a medida de ensino do africâner. No meio protesto, a polícia criou uma barreira humana e soltou os cachorros em cima dos jovens, que os mataram. A polícia disparou contra os estudantes. Na época foi dito que 176 crianças morreram, e a estimativa era de 700. O governo diz que foram 23 mortes e acredita-se que o número passou dos mil atualmente. O acontecido se espalhou pelo mundo, com críticas severas ao governo da África do Sul. Hoje, o dia 16 de junho é feriado nacional no país e foi nomeado de o Dia da Juventude.

 

O Massacre no Quartel de Thiaroye (Senegal – 1944)
e a marcha de Selma a Montgomery (EUA – 1965)

Thiaroye, 1944 e Selma, 1965 (Omar Victor Diop – MAGNIN-A)

Os Tirailleurs Sénégalais eram soldados do Senegal que lutaram pelo exército da França. Fora prometido para as tropas africanas pensões pelos feitos na Segunda Guerra Mundial, entretanto o acordo não foi cumprido pela administração colonial francesa. Ao contrário dos soldados franceses (que receberam as pensões), os cerca de 1300 senegaleses que estavam no quartel de Thiaroye, subúrbio de Dakar, fizeram um motim contra a discriminação no dia 30 de novembro de 1944. Na madrugada do dia 1º de dezembro, o exército francês abriu fogo contra os soldados, matando aproximadamente 70 homens. O episódio ficou conhecido como o Massacre de Thiaroye. No ano seguinte, alguns sobreviventes ainda foram condenados a prisão pelo ato. O motim é visto como uma acusação do sistema colonial e constituiu um divisor de águas para o movimento nacionalista no Senegal. Assim como a greve dos ferroviários de 1947, o massacre foi adaptado pelo diretor e escritor senegalês Ousmane Sembène, que dirigiu o filme “Camp de Thiaroye”, em 1987.

Em 1965, o Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos já era plenamente conhecido e atuante. Liderado pelo reverendo Martin Luther King Jr. (1929-1968), do dia 7 ao dia 25 de março, três marchas de protesto foram realizadas de Selma a Montgomery, no estado do Alabama, sul do país. O objetivo era demonstrar o desejo dos cidadãos afro americanos de exercitar o seu direito constitucional de votar. Os protestos também denunciaram a repressão segregacionista e a injustiça racial. Em 6 de agosto, o presidente Lydon B. Johnson (1908-1973) assinou a Lei do Direito ao Voto de 1965, que proíbe a discriminação racial em votações por todos os Estados Unidos. Esse ato é considerado a principal vitória do Movimento dos Direitos Civis. Em 2014, Ava DuVernay dirigiu o filme “Selma” que conquistou prêmios como o Globo de Ouro e o Oscar, na categoria de Melhor Canção Original. O hino “Glory”, escrito por Common e John Legend faz alusão aos protestos na cidade de Ferguson, no estado do Missouri, que aconteceram de agosto a dezembro de 2014.

 

Café da Manhã Gratuito para Crianças (EUA – 1969)
e a história de Dutty Boukman (Haiti – 1971)

The Free Breakfest Programme,1969 e Dutty Boukman, 1971 (Omar Victor Diop – MAGNIN-A)

Em 1969, os fundadores do Partido dos Panteras Negras Huey P. Newton (1942-1989) e Fred Hampton (1948-1969) se inspiraram em pesquisas sobre a importância do café da manhã e criaram o Free Breakfast for School Children Program (Programa de Café da Manhã Gratuito para Crianças em idade Escolar). A ideia que surgiu dentre os projetos educativos dos Panteras começou em janeiro daquele ano e levou café da manhã para crianças pobres de Oakland, na Califórnia. O projeto se tornou tão popular que, no final do ano, eles estabeleceram postos de distribuição de refeições em várias cidade dos Estados Unidos, alimentando mais de 10 mil crianças todos os dias. Esse programa virou um dos pilares do grupo.

Sem data de nascimento conhecida, Dutty Boukman é uma das figuras-símbolos de resistência na luta anticolonial na América. É dito que ele foi um escravizado autodidata nascido na Jamaica. Inteligente, ele aprendeu a ler sozinho e ensinava outros escravizados também, por isso era apelido de Book Man (o homem dos livros). Ele foi vendido para terras de plantação da colonização francesa e lá teria conquistado muitos seguidores. Dutty Boukman foi um dos líderes da Revolução Haitiana, de 22 de agosto de 1791, visto como um líder espiritual Vodou e Maroon. Ele teria realizado uma cerimônia religiosa junto da líder Cécile Fatiman em Bois Caïman, na costa norte do Haiti. A cerimônia de 14 de agosto previu que os escravizados Jean François, Biassou e Jeannot seriam os líderes da libertação do povo de Santo Domingo.

 

Imigrantes contra a empresa Sonacotra (França – 1974)
e o Motim no Quartel de Freeman (EUA – 1945)

Sonacotra, 1974 e The Freeman Field Mutiny, 1945 (Omar Victor Diop – MAGNIN-A)

A Sonacotra – Société nationale de construction de logements pour les travailleurs (Sociedade nacional de construção de habitação para os trabalhadores) é uma empresa semi-pública da França responsável pela construção e gestão de conjuntos habitacionais que servem casa, pensão, abrigo e acolhimento – principalmente para imigrantes africanos. São mais de 70 mil habitações da empresa pelo país. Semi-pública pois entidades públicas tem limite de 85% na detenção de seus direitos, é necessário ter participação privada. Sua criação se deu em 1956 por causa das condições insalubres que viviam mais de 150 mil argelinos, devido a Guerra da Argélia (1954-1962). Entre as décadas de 1960 e 1970 as construções tiveram crescimento representativo, com o aumento da imigração no país. Porém, a partir de 1974 começaram movimentos grevistas contra o aumentos de aluguéis, as restrições impostas pela administração, denúncias contra a vigilância e o reconhecimento de comissões dos imigrantes. Assim surgiram movimentos como o Sans-Papiers (Migrantes Não-Documentados). Em 1978, o número de grevistas era de 30 mil, isso exigiu uma redução nos impostos e condições de vida mais dignas para os moradores. A greve foi uma das bases da luta contra o racismo na França.

Durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de pilotos negros do exército dos Estados Unidos ficou conhecido como os Pilotos de Tuskegee. Eles ajudaram o país na guerra, mas não venceram a segregação. Na base aérea de Freeman, em Indiana, dois clubes de oficiais foram criados: o Number One Club, para uso dos trainees (todos negros), e o Number Two Club, para uso dos instrutores (todos brancos). Liderados pelo segundo-tenente Coleman A. Young (1918-1997), um grupo de oficiais negros decidiu criar um plano de ação para desafiar a diferenciação por cor em Freeman, assim que chegassem lá. No final da tarde de 5 de abril 1945, eles começaram a ir em pequenos grupos para o clube dos instrutores em busca de serviço. O primeiro grupo de três oficiais foi mandado embora, mas grupos posteriores voltaram e foram recebidos por oficiais armados, a mando de superiores. Quando 19 dos oficiais, incluindo Coleman Young, entraram no clube contra as instruções e se recusaram a sair, foram presos. Mais 17 foram detidos no mesmo dia. Na noite seguinte, mais 25 agentes atuando em três grupos entraram no clube e também foram presos. Um total de 61 policiais foram presos durante o protesto de dois dias. No mês todo, 162 deles foram presos, alguns mais de uma vez. Três desses soldados negros foram processados e só tiveram suas condenações revogadas em 1995. Este motim é considerado uma das primeiras exigências para alcançar a plena integração dos afro americanos no exército dos Estados Unidos.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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