Já não se fazem revoluções como antigamente (ou “Chamem o Pelotão de Choque”)

por Álvaro Santi[1]

A teatralização do patrimônio é o esforço para simular que há uma origem, uma substância fundadora, em relação à qual deveríamos atuar hoje. Essa é a base das políticas culturais autoritárias. O mundo é um palco, mas o que deve ser representado já está prescrito.” (Nestor García Canclini, Culturas Híbridas)

Nesse livro extraordinário que é Culturas Híbridas, Néstor García Canclini observa que os projetos modernizadores, na busca por expandir mercados e legitimar sua hegemonia, apropriam-se de bens históricos e tradições populares, o que frequentemente resulta em alianças (por óbvio instáveis) entre “grupos culturais e religiosos fundamentalistas” e “grupos econômicos e tecnocráticos modernizadores”. (Algumas das coligações partidárias que costumamos ver no Brasil podem ilustrar essa tese, mas não é disso que vou tratar aqui.)

Para Canclini (como para Amartya Sen, em Identidade e Violência), enxergar o patrimônio cultural como um valor perene e inquestionável, que condiciona nosso destino “desde a origem dos tempos”, é próprio de projetos autoritários de poder, que costumam manipulá-lo visando a um “consenso coletivo, para além das divisões entre classes, etnias e grupos que cindem a sociedade e diferenciam os modos de apropriar-se [dele]”. Uma concepção assim é impermeável aos debates da modernidade e “incapacita para viver no mundo contemporâneo, que se caracteriza […] por sua heterogeneidade, mobilidade e desterritorialização”. Tentativas de “reduzir a vida simbólica da sociedade à ritualização de uma ordem […] afirmada dogmaticamente” pretendem, no fundo, “neutralizar a instabilidade social”.

Como não lembrar disso na Porto Alegre de 2018, onde o Poder Legislativo acaba de anunciar que patrocinará, com R$ 350 mil, uma “ópera-rock” sobre a Revolução Farroupilha, a qual deverá ser adaptada de certo livro de certo autor. No lançamento, o presidente da Câmara expressou seu desejo de “deixar um legado” à cultura da cidade. (Em outras partes do mundo, quando alguém fala em deixar um legado, refere-se ao seu próprio patrimônio, mas por aqui, infelizmente, ainda é comum os políticos gravarem seus nomes em placas que eternizam “seus” legados, construídos com nosso dinheiro.)

Não surpreende que um político, mesmo sem maior intimidade com a cultura, encontre nela oportunidade para “deixar sua marca”, já que os recursos ali são escassos e qualquer migalha costuma ser festejada. Os problemas começam quando se atropela o que surja no caminho, não raro por pura ignorância do que já existe. E uma coisa que existe em Porto Alegre, desde 1994, é uma tradição de apoio à produção artística local, por meio dos editais do Fumproarte (Fundo Municipal de Apoio à Produção Artística e Cultural de Porto Alegre) que se consolidou como um modelo original e eficaz de fomento público, copiado por outros governos, premiado nacionalmente e estudado até no exterior. Entre seus princípios está o protagonismo da sociedade, expresso tanto na liberdade dos artistas para proporem projetos de sua iniciativa, quanto na participação de entidades culturais na comissão que os seleciona.

Não por acaso, ao criar o Fumproarte, o legislador determinou que seu orçamento fosse no mínimo igual ao do Funcultura – fundo que viabiliza as iniciativas próprias da SMC. Esse dispositivo, que visa a um equilíbrio entre as ações culturais do governo e da sociedade, raramente foi cumprido, o que é compreensível se pensarmos que nenhum dos mais de 900 projetos patrocinados desde então – livros, filmes, discos, espetáculos, etc., da maior diversidade estética – será lembrado como “legado” de um benfeitor, mas apenas o resultado esperado de uma política pública. Não obstante, embora nunca em 25 anos de existência tenha lançado um edital semelhante – restringindo as propostas à participação de determinado autor, texto ou gênero – o Fumproarte prestará apoio operacional ao edital da Câmara, emprestando sua credibilidade ao processo.

É certo que os recursos deste edital são da Câmara, que já utiliza editais para selecionar propostas de ocupação do Teatro Glênio Peres, por exemplo, mas sem jamais impor restrições estéticas. O último desses concursos selecionou 14 espetáculos, que farão jus a R$ 13,5 mil cada. Parece óbvio que aqueles R$ 350 mil “que sobraram” seriam bem aplicados se viessem a incrementar o apoio a esses mesmos espetáculos, até mesmo para levá-los a circular em escolas e na orla do Guaíba (conforme prevê o edital para a “ópera-rock”).

Instituições de fomento como o Fumproarte, que funcionam com algum grau de autonomia, podem ser encontradas nas principais nações democráticas do Ocidente, lado a lado  com corpos técnicos estáveis, que podem lembrar que tais ou quais iniciativas foram tentadas antes, com maior ou menor sucesso; mecanismos de avaliação dessas ações; planos de médio e longo prazo, que sobrevivem à alternância de governos; etc. (Curiosamente, em regimes autoritários como os da extinta União Soviética ou da Alemanha nazista é que políticos e burocratas entretinham-se a decidir quais conteúdos culturais eram “legítimos” ou “revolucionários” e a censurar os “degenerados” ou “reacionários”.)

Não se quer com isto dizer que as políticas e instituições culturais constituam, por sua vez, uma “tradição”, que devam permanecer idênticas a si mesmas, imunes à evolução. A criação do Fumproarte foi sem dúvida uma inovação (entre tantas que Porto Alegre presenciou na área da cultura), porém a proposta inicial foi bastante enriquecida, como resultado de um amplo debate entre artistas e entidades do setor, Executivo e Legislativo.

Ao que tudo indica, espera-se nos altos escalões que “o mercado” assuma o patrocínio às artes, ideia tão absurda quanto a sua antípoda – a de que o Estado deve sustentar os artistas. Num caminho do meio, atrevo-me a argumentar, com base no meu testemunho pessoal, que os artistas reconhecidos por sua comunidade são capazes de se tornarem empreendedores culturais, que trazem recursos para a cidade e levam nosso nome para o exterior. Eles não se acomodam, criam suas empresas, cooperativas e associações, geram volumes de emprego, renda e tributos ainda pouco estudados. Esse reconhecimento pode se expressar de múltiplas formas, mas começa pelo respeito à “liberdade de criação, expressão e fruição” – princípio fundamental do Plano Municipal de Cultura, aprovado na legislatura anterior, curiosamente com o voto de três dos seis integrantes da atual mesa diretora da Câmara.

Por uma espantosa coincidência, na mesma semana em que se anunciava esse edital, minha colega Elizabete Tomasi, uma das funcionárias mais dedicadas da SMC, que durante anos coordenou o Fumproarte, foi detida e algemada na Câmara, durante manifestação dos servidores do Município. A cena circulou pelas redes sociais, como a nos advertir que as revoluções no passado remoto são admiráveis e seus líderes, dignos de reverência; porém os inconvenientes que reivindicam seus direitos no presente merecem o batalhão de choque.

[1]     Poeta, músico e gestor do Fumproarte entre 2004 e 2009.
*Foto: Intervenção cultural com financiamento Fumproarte (Gabriel Dienstmann/Divulgação PMPA)

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