Cordel do Fogo Encantado volta para celebrar a poesia e as raízes brasileiras

por Thaís Seganfredo
Fotos: Anselmo Cunha

Talvez sejam as ondas que reverberam dos tambores, talvez seja só a longa espera, mas o retorno do Cordel do Fogo Encantado a Porto Alegre foi um reencontro com os fãs como se o tempo apenas tenha sido descongelado, fazendo chover energia. Depois de quase uma década de hiato, o quinteto voltou a se reunir, lançou seu quarto álbum de inéditas, Viagem ao Coração do Sol, e está em turnê pelo Brasil.

Bem no início dos anos 2000, quando o indie e o pop rock do sudeste dominavam a cena, o Cordel veio com sua percussão e sua poesia, letras sobre a natureza e a cultura do sertão nordestino – um afago a quem buscava mais cultura popular no cenário musical, uma década depois do surgimento do manguebeat. Os meninos, que vieram da cidade do Arcoverde/PE, berço do Samba de Coco, trazem referências da literatura de cordel, em letras que abordam a natureza e conceitos como a saudade. Com a benção de Naná Vasconcelos, já no primeiro álbum do grupo se via a força da percussão, com muito coco, maracatu e outros ritmos populares. A essência se mantém no novo álbum, embora com a introdução de elementos eletrônicos (vide a transição da viola os sintetizadores de “Cavaleiros das Estradas do Sol”, faixa que fecha o disco).

Foto: Anselmo Cunha/Nonada

“Que saudade, Porto Alegre”, declamou a carta altura da noite Lirinha, o frontman do grupo, no show que ocorreu na quinta-feira (29) no Opinião – vale dizer que eles também foram ao Morrostock no dia seguinte, um cenário muito propício à energia do grupo, aliás. Na quinta, porém, em clima de euforia, eles empilharam hits como a catártica “Chover (ou Invocação para um Dia Líquido)” e “Tempestade (ou a Dança dos Trovoes)”, cantados em coro pela maioria do público. É verdade, no entanto, que o show foi muito mais que um simples matar a saudade. Isso porque o grupo soube se atualizar, trazendo novas composições que ou já eram esperadas pelo público ou agradaram facilmente, a exemplo de “Liberdade, a Filha do Vento” e “Raiar ou o Vingador da Solidão”.

“Ah eu já conheço perder/E a minha força é cantar/”Sobe comigo a paixão Ororubá”, diz a letra desta última composição, fazendo referência ao nome da serra em que se localizava o povo Xukuru, cuja cultura é também influencia nessa teia de elementos da cultura popular brasileira, sertaneja (no sentido originário da palavra) e afro-indígena que acompanha o grupo. Todas essas raízes aparecem mais visíveis em alguns momentos da apresentação, principalmente nas vezes em que Lirinha conversou com a plateia, fazendo uma intervenção para descrever ao público elementos de culturas que não procuramos. Em uma dessas cenas, Lirinha mostrou à plateia o maracá Xukuru e seu significado sagrado; em outra, durante o frenesi de “A Matadeira” – provavelmente o único momento que destoa do clima paz e amor e é claramente político -, contou que a música foi composta para lembrar o canhão enviado pelo Estado na chacina de Canudos.

Foto: Anselmo Cunha/Nonada

Sem dúvidas, há algo de Antônio Conselheiro em Lirinha, algo entre sua forte veia teatral performática e o entusiasmo com o qual ele declama as verdades do grupo, afinal, eles sabem que sertão é dentro da gente. Talvez seja esse conjunto que leva boa parte do público a reagir passionalmente a tudo que Lirinha faz no palco. E há ápices, como na declamação de “Ai se Sesse”, poesia de autoria de Zé da Luz, que transmutou o show em quase um culto por alguns segundos. Nesses momentos, destaque também a iluminação hiper expressiva do show, que inclusive emula um sol saindo do palco em certas músicas, o que harmoniza bastante com a vontade dos músicos, que entusiasmam pela paixão de suas performances – e, é claro, por sua excelência nos instrumentos.

A formação original permanece a mesma, com Lira no vocal e no pandeiro, Clayton Barros no violão e o trio Emerson Calado, Nego Henrique e Rafael Almeida na percussão, que dão uma verdadeira aula a quem se interessa por música brasileira. É numa diferença, porém, que o grupo cresceu ainda mais: a participação da atriz Nataly Rocha, com quem Lirinha dividiu um dos momentos mais bonitos e intimistas da noite na doce “Pra Cima Deles Passarinho Ou Semente Brilhante”. Nataly brilhou sempre que apareceu no palco, e talvez sua presença definitiva no grupo seja o que falta para o Cordel seguir se atualizando daqui em diante.

Foto: Anselmo Cunha/Nonada

Afinal, em outro momento de consciência social, Lirinha apresentou “Conceição”, música dedicada à Marielle Franco (“No Morro da Conceição/Ela desce coberta de flores/E onde pisa outro chão se revela/Já nasceu de uma vez mar e pérola”), e o público respondeu com um sonoro “Ele não”, em protesto ao presidente eleito Jair Bolsonaro. O próprio prólogo do novo álbum involuntariamente traz uma mensagem consciente e necessária para os tempos atuais: O sonho acabou/E só assim saímos do fundo da terra em direção ao sol/O mundo agora é esse/Precisamos falar com a filha do vento/A que chamam/Liberdade)

Apesar de afirmações de resistência serem fundamentais nos tempos atuais, no entanto, é no próprio ato de ser que o Cordel de Fogo Encantado faz política. É no declamar da poesia popular, é no valorizar a alma nordestina, é no aprender com as sabedorias indígenas, é no celebrar a alma do povo brasileiro.

Foto: Anselmo Cunha/Nonada
Foto: Anselmo Cunha/Nonada

 

Compartilhe
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Processos artísticos Resenha

Bacurau é o filme que o Brasil precisa em 2019

Culturas populares Memória e patrimônio Reportagem

Sem apoio contínuo do Estado, mestres da cultura popular morrem de covid-19

Comunidades tradicionais Culturas populares Entrevista

Luta cantada: conheça o carimbó indígena das Suraras do Tapajós