Zico Werá: “Vivemos em um país invadido pelos juruás enquanto sofremos em beiras de estradas”

Fotos: Lucas Leffa/Jornalistas Livres

Embora nunca tenham realmente cessado, ataques a aldeias indígenas têm se intensificado em todo o Brasil desde o fim do ano passado. Notícias apontam uma maior ameaça já no mês de janeiro, após a posse de Jair Bolsonaro (PSL). Nos últimos dias, a etnia Awa Guajá teve terras invadidas no Maranhão; a Terra Indígena (TI) Arara, no Pará, foi invadida por madeireiros; invasores montaram acampamento na Terra Indígena Uru-eu-wau-wau, em Rondônia. Na Bahia, quase 500 famílias Tuxá tiveram uma decisão judicial de desocupação de território, cuja demarcação está pendente na Funai. Ataques a prédios da Funai de proteção a indígenas isolados também foram noticiados nas últimas semanas.

No Rio Grande do Sul, a situação mais crítica é na Ponta do Arado Velho, zona sul de Porto Alegre, junto à orla do Guaíba, área que famílias Mbyá-Guarani retomaram em 2018, considerando que há na região um sítio arqueológico onde já foram encontrados objetos guaranis. Na última semana, as famílias acordaram ao som de tiros na região, em uma demonstração de ameaça. A área é alvo de disputa judicial entre o grupo Preserva Belém Novo e a Arado Empreendimentos Imobiliários, que tem a posse do terreno e planeja construir, no local, um condomínio com 1,6 mil apartamentos.

Na última quarta-feira (16), indígenas Mbyás-Guaranis, Kaingangs, quilombolas e apoiadores da causa se uniram em um ato que começou em frente à sede do Incra e se encaminhou para o prédio do Ministério Público Federal, que instaurou procedimento para investigar o ataque na Ponta do Arado Velho. No ato, os indígenas protestaram também contra a realocação da Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Foto: Lucas Leffa/Jornalistas Livres

Confira a seguir o depoimento de Zico Werá, liderança guarani da aldeia da Estiva, em Viamão.

“É um momento difícil para os indígenas, pelo acontecido também na Ponta do Arado semana passada. Dizer o que do sofrimento que a gente vem sofrendo desde o descobrimento em si? Nossa maior luta é pelo cumprimento do que está escrito na Constituição. Por que é tao difícil demarcar terra para a gente e para o agronegócio é tão fácil? A gente pensa como leigo, de não entender como gira o funcionamento do país. Por que pra algumas coisas é fácil e pra outras não? Isso acaba nos matando. Não pessoalmente, mas questões espirituais, questões culturais, questões de territorialidade, de plantação, questões da própria alimentação. Isso acaba nos afetando.

Isso dói falar, porque nem sei se essa luta eu vou vencer. Mas ainda bem que os jovens vão vir atrás de mim, vão continuar lutando. Queria agradecer a vocês que se solidarizam pela causa. A gente quer somente que se cumpra o que está na Constituição. E infelizmente não é assim, o agronegócio está dominando só para plantar coisas transgênicas, que acabam trazendo doença para a gente. A morte das nascentes dos rios, que são mais importantes para a gente e eles não entendem. Vivemos em um país invadido pelos juruás nós, os originários, hoje em dia vivemos em pequenas terras não-demarcadas, sofremos em beiras de estradas e ainda somos criticados, sem entender que foram eles próprios que nos tornaram dessa forma.  Eles nos fizeram assim, nos colocaram nessa situação. A gente está tentando reverter essa situação, a gente é resistente. A gente vai lutar mais, pra conseguir algo que nos foi tirado.

A gente não usa veneno na terra, a gente não está matando a nossa mãe-terra. Os juruás estão matando, não todos, mas os juruás ruralistas, pelo grande interesse que tem no agronegócio. Isso dói falar. Hoje, está difícil a demarcação de terra, a própria Funai é muito difícil. Agora, mudando ela para o Ministério da Agricultura, o que vai ser da gente? Puro interesse de poucas pessoas, que são os grandes fazendeiros, os grandes produtores que plantam soja. Principalmente pelo que ocorreu semana passada [o atentado no Arado Velho]. Por que isso acontece? Só para construir um casarão? Destruir a natureza que tem lá? Hoje em dia ninguém pensa mais em ser, e sim em ter. A gente quer ser, não ter, e viver em um território que seja de direito e que seja demarcado, para a gente viver das questões da natureza.

Eles dizem “ah os indígenas selvagens, os não-civilizados”, mas e os civilizados, o que estão fazendo? Estão destruindo tudo. Até a soja não é mais original e sim transgênica, o milho… pensando nisso, dói falar. Mas são situações que a gente vem sofrendo. é um genocídio, não só para nós mas para todas as etnias também, os próprios quilombolas. E o governo está acabando com a gente não só matando, mas sim no papel. Os próprio LGBTs, a gente está nessa causa, nessa mesma luta, “minorias” que nos chamam. Somos minorias no que se pode ver, mas na espiritualidade somos maiores. A gente vai lutar sempre, ninguém vai acabar com a gente. A gente já resistiu 519 anos, vamos resistir mais.”

Fotos: Lucas Leffa/Jornalistas Livres
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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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