Tônio Caetano: “A literatura antirracista está buscando um novo imaginário de Brasil”

Rafael Gloria
Fotos: Diego Lopes

Entrevistei Tônio Caetano, prêmio Sesc de Literatura na área de contos de 2020 com o livro “Terra nos Cabelos”, por telefone em uma sexta-feira no final de novembro. Foi uma conversa agradável de mais de uma hora e cheia de reflexões acerca da vida, da postura em relação à Literatura, e também sobre a responsabilidade de escrever. Procurei transcrever quase que na íntegra, para apresentar e representar melhor os pensamentos e a trajetória de Tônio.

Aliás, trajetória essa que ele trabalha tão bem nas personagens dos contos que compõem o excelente “Terra nos Cabelos”, lançado agora pela Editora Record. São quinze histórias curtas, todas narradas a partir das perspectivas de diferentes mulheres, de diversas idades, de sexualidades distintas, e de tons singulares. 

Criado em 2003 pelo Sesc, o prêmio é uma parceria com a Editora Record, responsável por publicar e distribuir os livros vencedores. O concurso tem o objetivo de revelar novos escritores e, assim, renovar o cenário literário brasileiro e incentivar a cultura. Em 2020, o Prêmio Sesc de Literatura recebeu 1358 inscrições, sendo 692 romances e 666 livros de contos. O júri do prêmio Sesc na categoria conto de 2020 foi composto por Ana Paula Maia e Marcelo Moutinho.

Nonada – O anúncio do Prêmio SESC foi em junho, me diz o que mudou na sua vida desde lá?  

Tônio Caetano – Uma compreensão maior em relação a uma dedicação com a  literatura. Acho que eu vinha em uma crescente, mas o prêmio tocou “álcool no fogo”, porque eu vinha trabalhando como sempre e uma parte do meu dia já era literatura. Eu fazia curso na Metamorfose, escrevia um conto por semana, mas mais numa pegada de quem está começando mesmo. Tinha participado de coletâneas, e foram ótimos  percursos de aprendizados. Sempre digo que a Metamorfose Cursos me trouxe uma compreensão de como agir no meio, desde o que eu vou fazer com uma pessoa que me pede autógrafo, tipo de coisa que a gente não pensa. E essa questão de participar das coletâneas que eles realizam também, todas foram um aprendizado. Então, eu vinha nesse caminho, eu já pensava em ter um livro todo meu, mas era algo que estava em perspectiva de quem estava caminhando aos poucos. A gente fala hoje que a pandemia acelera processos e o prêmio Sesc também teve esse sentido para mim, de acelerar o processo. De pensar sobre os processos da literatura também, sobre tudo, e dar um salto do iniciante para alguém que está mais profissionalizado, de pensar de forma mais contundente a literatura. 

Nonada – Como foram os momentos anteriores da publicação, você já vem estudando e trabalhando há um tempo com a escrita, tanto no sentido de pós graduação (Especialização em Literatura Brasileira pela Pucrs), como os cursos da Metamorfose. Quando pensou em escrever o livro de contos?

Tônio Caetano – O curso que eu fiz na Metamorfose foi um curso de formação, e ele tem como finalização, a publicação de um  livro, e esses contos eram para ser desse livro da Metamorfose. Fiz o curso e assim que chegou naquele estágio que a gente se dedica mais ao livro propriamente, fiz o projeto e a intenção era para isso. Só que eu terminei o curso, e acho que talvez essa seja uma questão que muitos autores iniciantes tem, que é a de não querer se arrepender muito do seu primeiro livro. Eu ia aos eventos, me lembro de ir na FestiPoa Literária na conversa da Cidinha da Silva e da Ana Maria Gonçalves, e lá surgiu essa pergunta de como elas lidavam com o primeiro livro. Não me lembro qual delas respondeu que não lidava bem com o primeiro livro, então essa era uma percepção que eu também não queria. Eu não queria ter vergonha ou renegar o meu primeiro livro. 

Então, no fim do curso da Metamorfose eu cheguei com aqueles questionamentos, se não era muito principiante, se não era muito algo que eu fosse me arrepender. E acabei não publicando por lá. Essa é uma reflexão que eu tenho feito agora, a de quando o  autor  iniciante acha que o texto dele tá pronto, quando que ele acha que ele pode participar de um edital como o prêmio Sesc. Quando ele vê que está pronto, porque a gente vem muito na questão de perfeccionismo. Nós lemos um James Baldwin, um José Falero, eu quero chegar naquele nível, será que eu devo publicar meus escritos? Será que  tem qualidade? E acho que foi isso que me segurou na Metamorfose, então não participei do Sesc em 2019, e  segui escrevendo e lendo os textos. E quando chegou o 2020, pensei que era agora ou nunca. Porque eu já tinha começado a escrever um segundo livro.  Foi mais ou menos assim esse processo. Espero que o Marcelo Spalding não queira me matar, mas esse livro era para ter saído pela Editora Metamorfose. 

Nonada – Como é o seu processo de escrita? Aconteceram muitas reescritas ao longo do período de confecção? Aliás, quanto tempo levou mesmo? 

Tônio Caetano – Comecei a participar do grupo de escrita da [escritora] Ana Mello, e esses textos todos ou a maioria, foram levados para o Grupo. Eu tive esse retorno. Às vezes eu escuto as pessoas dizendo que tem quatro versões de um texto, eu até não sou assim. Eu reescrevo algumas partes, volto a eles. Mas também têm coisas que eu gosto no meu primeiro texto e que não muda mais. Uma semana boa pra mim de escrita é a que semana que começa com uma provocação, e no grupo a gente sempre tem. Ou uma temática, gosto de receber isso na segunda-feira, e ficar envolvido com isso na semana. Escrever não tem muito uma hora específica ou dia específico. Eu gosto mesmo de me envolver ao tema, de fazer leitura relacionada. E ir escrevendo durante a semana, para chegar na sexta feira com bastante material. Normalmente durante a semana já me oriento em relação ao que quero escrever, qual é a história. Às vezes eu já concebo o fim, ou já concebo o início. E gosto de chegar no fim de semana, dias que mais estou em casa, para parar e ver tudo que eu escrevi e tentar chegar em uma primeira versão. 

No caso, o grupo da Ana funciona na segunda à noite, então eu tento a organizar a minha semana assim, porque é algo que funciona para mim. Cada grupo tem uma dinâmica. O grupo da Ana é um grupo muito honesto no retorno, a gente fala o que pensa, mas fala com certo embasamento, para contribuir no texto do outro. E a gente tem um tempo de caminhada, então, já sabemos mais ou menos como o outro escreve. Uma vez a gente fez um exercício, e surgiu um texto que reproduzia mais ou menos como cada um de nós escrevia, então, nosso estilo já é reconhecido dentro do próprio grupo e isso ajuda o pessoal a falar. O grupo tem uma média de cinco a oito pessoas, vários entram e saem, mas o núcleo principal continua.  

Nonada – O que você leu durante o período de escrita do livro e quais foram as suas influências?

Tônio Caetano – Eu sou uma pessoa que tentar ler uns quarenta ou cinquenta livros ao ano. Então, não consigo ver ainda a exata influência de cada um no meu livro. Claro, eu tenho livros com personagens femininas que eu sempre carrego de alguma forma. Todo mundo diz, mas que é verdade: “O Quarto de Despejo”, da Carolina de Jesus, eu sempre retorno a ele. O outro livro que eu sempre lembro, é o “Diana Caçadora”, eu tinha ouvido falar muito dele, mas não tinha lido ainda. Quando eu comecei a pensar o livro, procurei publicações que fossem só com personagens femininas, eu tive uma certa dificuldade de achar no tom que eu queria. Até encontrar “Diana Caçadora”, e foi muito bom ter lido, porque traz uma mulher atual, apesar de ter não sido publicado nos anos 2000. É uma personagem que fala muito. E ela tem muita relação; com um conto de “Terra nos Cabelos”, que é o “Malparadas”, essa palavra eu trouxe de lá. Esse tom de algumas mulheres, não do Malparadas, mas do “Formação” ou “Memórias da Delicadeza”, são tons que vêm talvez do “Diana Caçadora”. Outro livro que eu recordo também que eu li se chama “Pedra de Paciência”, que é de um afegão e que é maravilhoso. Quem me apresentou foi o Robertson Frizero, na primeira oficina de escrita criativa que eu fiz. É um livro afegão de uma perspectiva feminina, é triste o final, mas é maravilhoso. Depois eu li também Conceição Evaristo, eu fui na Feira do Livro de Caxias, então assisti a ela e a Natália Polesso e o Jefferson Tenório, e comprei os livros dela. 

No segundo conto de Terra no Cabelos, o “No Jardim”, até tem uma influência maior do “Terceira Margem do Rio”, do Guimarães Rosa. Eu já tinha lido o Guimarães muito tempo atrás, e depois na Especialização eu li de novo esse conto e depois no próprio Grupo da Ana a gente leu. Acho que foi uma tentativa de fazer um conto pela perspectiva feminina. Mas também não é todo em relação ao Guimarães, porque a ideia da mãe que vai embora eu gosto muito. E tem de fato, muito do cinema, recordo muito do filme “As Horas”, em que uma personagem que é mãe vai embora. E tem aquele conto da Clarice também, o “Amor”, aquele momento em que ela chega, depois de tudo que aconteceu. Ela chega em casa e olha para criança e questiona se aquela criança é filha dela. Então essa questão da mulher que vai embora, que é um contra-rótulo, em relação à mulher, ao papel da mãe. Então, acho que esse conto tem muito disso também. Quando eu pensei em escrever ele, a mãe ir embora já estava definido. 

Nonada – Qual foi o seu percurso literário?

Tônio Caetano – Eu fiz o percurso do leitor comum, aquela coisa dos gibis, coleção Vagalume, depois apresentado aos clássicos brasileiros e aquele estranhamento. Quase tive um divórcio da Literatura Brasileira, e fui procurar outras  referências. Então, encontrei os livros do Baldwin, “Diário de um Ladrão”, do Jean Genet, enfim, livros estrangeiros que trouxessem a questão da homossexualidade, e da negritude. De coisas que me diziam algo mais do que um “Guarani”, “Iracema”, um livro canônico brasileiro. Depois com a Especialização em Literatura Brasileira eu fiz o caminho de volta, digamos que eu já tinha maturidade para ler clássico da literatura brasileira, aí eu tive um reencontro com ela. A minha formação é em administração de empresas. Quando eu fiz o meu primeiro curso de escrita criativa, lá com o [Robertson] Frizero, eu fiquei com o sentimento de que eu não conhecia nada de literatura, conhecia no geral, como leitor, mas se tu me perguntasse quais são os livros principais da literatura brasileira eu não saberia naquela época. E tinha muitos temas que o grupo discutia, e eu não tinha conhecimento. E aí quando acabei o curso de escrita criativa eu acabei caindo no curso de especialização da Pucrs, foi por isso que eu fui pra lá. Só que eu já queria escrever naquela época, eu já estava nesse caminho da escrita e a Especialização me trouxe bastante esse conhecimento de Literatura, mas em termos de escrita ela não me auxiliou diretamente, pois não era o foco. E foi um dos anos que eu menos escrevi, porque a teoria ela acaba te ocupando também. 

Capa de “Terra nos Cabelos”. (Foto: Editora Record/ Divulgação)

Nonada – Agora entrando mais no livro, seus contos são todos narrados por mulheres, muitos em primeira pessoa, ou em terceira pessoa. Narradoras que contam as próprias histórias, mulheres de diferentes idades, em diferentes épocas de vida, de diferentes lugares. Foi uma preocupação sua trazer essa diversidade de formatos narrativos e de linguagem também ao entrar nessa temática?

Tônio Caetano – Quando eu comecei a escrever os contos eles já vieram com personagens femininas. Eu nem pensei nisso na época, era algo natural. Hoje que eu faço essas reflexões, porque as pessoas me perguntam, falam de lugar de fala, falam porque tu não escreveu homem? E já que tu é homossexual por que tu não escreveu um homem homossexual? Para mim foi bem natural. Claro que a questão da diversidade eu pensei, cada conto que eu escrevia o próximo tinha que ser diferente. Eu tinha uma preocupação de experimentar outros registros de escrita. De qualquer forma, a primeira pessoa para mim sempre pareceu melhor, mais forte. A terceira pessoa para mim parece que tem menos força, é mais difícil de você se aproximar de um personagem feito em terceira pessoa. E os comentários que me chegam são basicamente sobre os de primeira pessoa. O “Terra nos cabelos” é o principal. Inclusive, é o primeiro conto que eu escrevi, e eu acabo me afetuando aos meus contos, e é o que eu mais gosto, e sem dúvida é o que as pessoas têm mais gostado. 

Nonada – Gosto bastante do Identidade. 

Tônio Caetano – O pessoal gosta bastante dele e do “Memória da Delicadeza” também. Quando eu escrevi o “Identidade”, e ele ficou pronto, fiquei com o sentimento de que eu devia escrever um conto sobre a vida da Sheila. Essa personagem precisa ser protagonista em outra história. Então, escrevi a “Memória da Delicadeza”, algumas pessoas nem fazem essa relação. Eu buscava essa diversidade, era algo que eu precisava, que todas as personagens tivessem subjetividade, não queria que elas fossem planas, e também não queria que elas fossem simplesmente uma oposição ao masculino, oposto ao homem, esse tipo de visão. Queria que fossem vistas por elas mesmas. Para onde pensam, para onde vão, essa questão da trajetória, que acho que têm em todos os meus contos. Eu até nem  acho que hoje em dia se possa escrever um conto que não traga de alguma forma a questão da diversidade, do racismo, de gênero, e a questão da trajetória também.

Outra coisa também, eu não queria resolver a vida delas. Tem aquele conto que é “A Casa Na Fim da Rua”, muitas pessoas quando leram queriam que eu terminasse antes, no momento em que uma personagem diz a outra: “Agora você está em casa”. Mas na minha cabeça eu não deveria influenciar muito na trajetória dela. Eu acho que as personagens devem se resolver por elas mesmas. A trama traz possibilidades, mas acho que a possibilidade verdadeira para mim é a melhor. Para mim, são personagens que seguem, quem sabe em algum momento elas podem voltar em outro conto e a gente possa saber mais delas.

Nonada –  Apesar de você não citar nominalmente a cidade de Porto Alegre nos seus textos, você insere as suas narrativas aqui?

Tônio Caetano – Eu acho que têm alguns contos que trazem Porto Alegre. O “Terra nos Cabelos” traz muito Porto Alegre, mais no sentido da Vila Vargas, da minha infância, coisas que eu presenciei. Quando eu escrevi Terra no Cabelos, trouxe duas coisas da minha infância, uma delas é  o que a gente escuta muito nas vilas, que as mães dizem, “quem bate no meu filho sou eu”, “ninguém bate no meu filho, se alguém tiver que bater no meu filho sou eu”, essa ideia, essa imagem eu trazia da infância, era algo comum para mim. A minha família foi muito permeada pelo catolicismo do meu pai. Mas pela parte da minha mãe, ela tinha mais ligação com as religiões de matrizes africanas. Então por algum tempo a gente frequentou, mas depois como o meu pai como era um signo mais forte lá em casa talvez, a gente teve um afastamento. Mas convivemos  muito com pessoas que professam essa religião. E muitos viraram nossos amigos do dia a dia, e tinha muito isso de ir na casa de um amigo e ele não estar, e a mãe dele dizia que ele estava no chão. E quando eu escrevi “Terra nos Cabelos”, ela chegava em casa e colocava ele no chão, depois na revisão me perguntei o que significava isso, e eu fui entender que isso era uma coisa que vinha de lá, da infância, do chão, que as pessoas de religião vão fazer a sua comunicação com os orixás, pedir forças, etc. Buscar o seu axé, digamos assim. Então, isso é algo que veio da infância e que está no “Terra nos cabelos”, esse conto é o que mais traz a minha infância e que traz um pouco da Vila Vargas, Morro da Cruz, e da Volta da Cobra, que são os locais por onde eu cresci. Depois um outro conto que traz Porto Alegre é o “Sem a gente lá”, eu acho que esse é o que traz Porto Alegre mais presente. Essa é uma história que eu ouvi, não foi uma história que eu propriamente produzi a partir de mim, eu ouvi uma história que tinha uma pessoa que ia até o morro para beber champanhe e olhar Porto Alegre, mas era uma pessoa que tinha um olhar diferente. Era uma pessoa que ia olhar a tristeza de Porto Alegre sem ela, uma pessoa com uma autoestima bem elevada. Quando eu escrevi esse conto, estudei bastante a geografia de Porto Alegre, o que tinha no morro da Polícia antes. Como é que ver Porto Alegre de cima, esse conto traz bastante da cidade. 

Nonada – Um momento de contemplação, deslumbramento. 

Tônio Caetano – Sim, e tem essa coisa também, eu sempre acho que o ser humano é impróprio para a Terra, se for pensar a gente contribui pouco para a natureza, então, acho que é uma ideia que tem neste conto, que talvez o mundo fosse mais bonito sem a gente aqui. 

Nonada – Como você decide a ordem dos contos? Como comentei anteriormente, achei eles bem diferentes, diversos, apesar de versarem de temas semelhantes. Por exemplo, acho que o primeiro conto é uma forma muito boa de dar o tom sutilmente forte que conduz as narrativas. E parece que vai chegando ao fim e esse tom vai sendo substituído por ação narrativa mais forte, chegando no último conto, que é essa coisa quase distópica, com com ações  e imagens de violência em tom de sobrevivência, isto é, menos sutil, mas não menos potente (aliás, adorei essas metáforas sul congelar e o sul não poder subir para o sudeste). 

Tônio Caetano – Esse foi um ponto em que eu me detive e eu não consegui concluir propriamente. Esse era um conhecimento que eu gostaria de ter, sabe, em relação a como se estrutura um livro de contos. Qual conto que se coloca primeiro, qual no meio, qual no fim. Então, foi um conhecimento que eu busquei, eu até considerei fazer um curso online de editor de livros para tentar chegar nesse conhecimento. Eu tinha algumas ideias que eu ouvia na Metamorfose. Outra ideia que eu tinha é que o primeiro conto deveria ser o mais impactante, para o leitor que pega o livro na livraria ser pego naquele momento. Tinha também essa questão de colocar no meio alguns contos que  não sejam mais impactantes e nem mais longos, contos que às vezes pode se achar até medianos, e colocaria no meio. Mas eu até não tenho essa percepção pelos meus contos, os leitores até podem ter, mas eu sou apaixonado por eles, acho que todos são bons. Em relação à estruturação era mais isso que eu pensava. E em algum momento, comecei a refletir também porque eu gostava mais de alguns vinis do que outros, por exemplo, eu tenho um vinil que é um dos primeiros que eu comprei, que é da Tracy Chapman. Por que eu escuto mais daquele vinil? Eu ficava refletindo sobre o que a primeira música tem, o que a segunda música tem. Eu tenho um outro vinil que eu gosto muito que é o do Bedeu, e também refletia sobre a organização das músicas, o que ela dizia. Mas no fim a estruturação foi mais intuitiva propriamente do que ter um embasamento do que seria o correto. 

Nonada – Penso no ultimo conto, o “Estômago” e sobre a força narrativa dele. 

Tônio Caetano – A Ana Paula Maia pelo visto prestou a atenção nesse conto. Eu fiz uma Oficina com ela lá no Delfos, da Pucrs. Uma oficina rápida de um dia, e ela tinha esse exercício, que ela passou, uma proposição. Do tipo: e se algo acontecesse como o mundo reagiria, como o personagem reagiria. E eu me lembro que nesse exercício ela colocou a proposta:  “E se o sol não voltasse amanhã?”. Esse conto também tem um pouco, é meio maluco isso, mas têm as pessoas que militam pelo aquecimento global, que é o mais comum, mas também têm as pessoas que militam pelo esfriamento global, que não é muito comum a gente ouvir. Um dia eu ouvi, acho que no youtube, um especialista, um douto que militava pelo resfriamento global. E aí quando eu comecei a escrever esse conto, eu queria isso, o que aconteceria no Sul do Brasil, se aqui desse um problema de resfriamento desses? O que aconteceria, o que as pessoas fariam? E tinha essa questão que a gente discute muito em termos de sudeste, norte e nordeste, né, e o que a gente faria se a gente tivesse em uma posição em que a gente julga os outros também. São as coisas que entraram no Estômago. Essa inversão. 

Nonada – E também tem a descoberta da sexualidade, ou a descoberta de se sentir atraente de novo e como essas descobertas impactam. Nesse sentido, você acha que o formato do conto, diferente de um romance, pode causar um maior impacto, uma maior tensão em poucas palavras? 

Tônio Caetano – Eu sempre escrevo pela personagem. Para mim, tendo a personagem ela vai fazer alguma coisa que me interessa. Quando eu chego na voz narrativa, eu sinto que o conto vai se escrevendo já. E quando a gente escreve muito, a gente pensa e se preocupa em ter vozes narrativas diferentes, então, quando a gente descobre uma voz narrativa diferente isso já dá um passo para frente. 

Nonada – Pensei naquele conto também, “Acho que era novembro de 1983”.

Tônio Caetano – Sim. E esse conto também tem algo que vem do vinil, tem um grupo americano, da época dos Jackson Five, o New Edition, eu encontrei esse grupo e um vinil numa loja no centro. E a capa tem dois meninos e duas meninas, como em festa de formatura de primeiro grau, todos negros. E eu pensei que essa era uma história que eu gostaria de contar. E quando eu cheguei na complexidade dessa personagem, e o que ela traz, sendo uma menina negra, que está descobrindo a sua sexualidade, e que não é uma sexualidade padrão, digamos assim, e todas as coisas que isso traz…A relação com a mãe que alguma forma tem um conservadorismo. E eu quis colocar em um período histórico mais antigo, e eu fui ver o que aconteceu naquele ano, quem e o que tinha projeção, o que acontecia na TV, e o que se passava nesse ano, um pouco do histórico. Naquela questão de buscar e de fazer contos diferentes. É um conto que eu gosto bastante da forma como ele aconteceu, e eu gosto bastante dessa pesquisa histórica. 

Agora quando tu falou em romance, eu sou um autor que comecei no conto, mas eu também não sou aquele autor que diz que só vai escrever contos. Eu até já comecei a escrever dois romances, um até vai ser meio novela, porque acho que já esgotou, mas o segundo também se passa em Porto Alegre, tenho buscado muitas referências da época de 1970 na cidade, porque eu quero contar uma história que se passe aqui, e vai ser uma história que vai ter uma personagem principal e que é uma mulher negra. Vai ter também a questão da homossexualidade, não dessa personagem, mas de um personagem importante ali. Vai ter uma trajetória também de mãe e filha. Tenho lido alguns livros sobre Porto Alegre, e quero localizar ele num lugar que não seja o Bom Fim. Ao buscar as referências me parece que as pessoas só escrevem sobre o Bom Fim, é difícil achar um livro que se passa fora do Bom Fim.  Mas esse é um projeto também para o fim de  2021. 

Nonada – Em quais outros projetos está envolvido no momento?

Tônio Caetano – O “Sobre o Azul da Infância” é um outro projeto, junto com a editora Venas Abiertas, a Karine Bassi em 2019 me convidou para participar de um livro, uma coletânea, chamada “Ancestralidades”, só com escritores negros. E a partir dessa experiência eu passei a refletir sobre várias questões em relação à negritude, a minha negritude, e como isso se deu e se dá hoje em dia e sobre ancestralidade, que também dá nome ao livro. E a partir do contato com a Karine, ela me chamou para um outro projeto que é um conjunto de livros de bolso, uma coleção que se chama “A Voz da Ancestralidade”, entre eles a Dalva Maria Soares e o livro dela é maravilhoso, o “Para Diminuir a Febre de Sentir”, e nesta coleção tem o meu livro, que é um livro de contos que vai ser lançado ainda, o “Sobre o Azul da Infância”. E que eu comecei a partir do “Ancestralidades” a querer escrever, eu pensei em escrever contos que tivessem pano de fundo as brincadeiras da infância, eu até fiz um projeto de que em cada mês do ano eu colocava as brincadeiras que eu recordava da infância, bola de gude, patinete, carteira, jogo do osso, coisas que eu brincava na Vila Vargas. E daí eu queria escrever sobre o ponto de vista de um menino que é um pouco parecido com o que eu fui, embora tenha muito mais ficção, mas ele traz várias questões que eu refleti na infância lá na Vila Vargas, e ele conversa um pouco com o “Acho que era novembro de 1983”. Comecei a escrever esses contos no fim de 2019, início de 2020, e daí quando surgiu o convite da Karine, eu tinha cinco contos prontos e como era um livro de bolso, escrevi mais um para fechar o livro. E esse livro vai tratar da infância, de um começo de percepção, de lidar com a homossexualidade, não bullying como a gente vê hoje, mas os preconceitos que há nas relações infantis e pré-adolescentes, o adolescente negro e homossexual. 

Nonada – O que tem lido atualmente? E o que te motiva a ler? 

Tônio Caetano – Eu acho que o prêmio me trouxe essa urgência de saber o que está sendo escrito hoje, até para ver como o “Terra nos Cabelos” conversa com eles. Estou lendo muito os amigos que estão lançando os seus livros, o que eu estou lendo hoje hoje mesmo é um livro chamado “Reboco”, da Karine Bassi, que é um livro de bolso da coleção Mulherio da Letras, é um livro de contos. E é um livro que vai conversar com o “Sobre o Azul da Infância” e com o “Terra nos Cabelos”, nessa perspectiva dessas personagens femininas. Eu comecei a ler essa semana. O último que eu li foi o “Dessa Cor”, da Fernanda Bastos. Agora para dezembro estou me programando para ler “Os Supridores”, do Falero. E em função do Prêmio Sesc, eu li o vencedor do Romance, o “Encontro você no oitavo round”, do Caê Guimarães . Eu estou agora também com o livro da Sílvia Generali, que é da editora Metamorfose, para ler. 

Nonada – Como você avalia o ambiente de incentivo a arte feita em periferia, fora dos centros? Os grandes festivais literários, como a FLIP, cada vez mais abrem espaço e trazem autores.

Tônio Caetano – Eu tenho avaliado no sentido positivo. Tem uma questão, quando se fala sobre racismo acabamos talvez não percebendo esse movimento, que é um movimento silencioso, da negritude, das editoras pequenas, das editoras populares, dos eventos que são feitos pelo pessoal da periferia, então, é um movimento grande, enorme, que está vindo aí, e que eu gosto muito de acompanhar e tenho muita felicidade de vê-lo e de percebê-lo, de ver os amigos lançando livros. O José Falero é uma pessoa que eu tenho acompanhado. Também saiu agora o Jabuti para o “Torto Arado”, então, são movimentos que muitas vezes são silenciosos e que são maravilhosos. Essa coleção A Voz da Ancestralidade, da Venas Abiertas, a própria Venas Abiertas é incrível, um grande movimento que a Karine faz. A Figura de Linguagem também, li o outro do Maurício também sobre racismo, universidade, marxismo. Agora quero ler o da Roberta Flores Pedroso. Também acho que tem essa questão da diversidade, das editoras pequenas mais focadas nisso, as livrarias, a Baleia, a Taverna. Acho que esse movimento é crescente e é importante prestar a atenção também. 

Nonada – Você falou bastante de música durante a entrevista…O quanto ela influencia a sua escrita?

Tônio Caetano – Acho que influencia sim. Eu até fiz uma playlist do “Terra nos Cabelos” no Spotify relacionadas à escrita do livro. Algumas leitoras me disseram que alguns contos traziam algumas músicas. Eu penso na personagem em um primeiro momento, mas eu também preciso saber qual é o tom que ela tem. Se é um tom mais reflexivo, se é um tom de busca, se é um tom sexual, erótico, de luta…E nisso a música me ajuda um pouco. E também as pessoas têm me perguntado muito falando que os contos tem poesia – algo que eu tento fazer, mas não me acho poeta. Tenho pensado que essa poesia que as pessoas veem nos meus contos, vem muito da música. Na minha trajetória de leitor, a poesia não era minha leitura principal. Quando eu comecei a ler literatura, eram romances adolescentes que depois viraram romances adultos e depois quando comecei a estudar Escrita Criativa vieram os contos. Então, essa poesia que tem nos meus contos vem da música e também da prosa poética.

Livro do escritor venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2020.

Nonada – Em relação à recepção, como é que você percebeu a leitura de homens e das mulheres? Tem diferença?

Tônio Caetano – Tem sim. Os leitores homens eles me dizem que gostaram, gostei muito desse e daquele. Mas eles pouco me dizem o quê em específico. É mais, às vezes, uma sensação, uma impressão minha. E me parece que eles têm gostado mais dos que têm ação, ou têm um tom mais erótico também.  Gostam bastante de “Aclamação”, de “A Casa no Fim da Rua”, do “Estômago”, e bastante do “Formação”. Esses seriam os quatro contos que eu diria que eles gostam mais. Ah, eles gostam do “Terra nos Cabelos” também, mas todo mundo gosta desse. Eu acho que essa coisa da violência, da ação, essa coisa do erótico, os homens têm gostado bastante. 

As mulheres gostam do erótico também, mas elas gostam desses que trazem uma sensibilidade. Elas quando me dão retorno dizem o que gostam, qual personagem, o que aquele conto trouxe para elas. Hoje de manhã uma leitora veio me falar que leu o livro e que chorou no ônibus. Então, o retorno das leitoras é um retorno mais completo, digamos assim. Acho que em relação aos homens, eles também estão refletindo. 

Tenho refletido nessa linha de perguntas que me fazem do porquê de escrever personagem feminina e por que escrevi em primeira pessoa. Eu acho que isso traz uma dúvida, uma crítica em relação à própria postura dos homens escritores, que fogem dessas personagens. Eu já escutei muitos autores falarem que têm dificuldade em escrever personagens femininas,  e essa dificuldade muitas vezes ela não é abraçada e ele acaba não indo atrás do porquê dessa dificuldade, e do que é escrever uma personagem feminina, eu tenho pensado muito sobre isso. Não sei se tem relação com a minha homossexualidade, com o meu olhar mais direto, mais próximo das mulheres. São reflexões que eu tenho feito. 

Até esses dias estava pensando sobre o homem heterossexual que escreve e a dificuldade em escrever personagens femininas ao mesmo tempo em que ele se relaciona muitas vezes intimamente com as mulheres. Teoricamente um homem heterossexual  teria mais subsídios para escrever personagens femininas, pela proximidade, ou pelo um relacionamento, muitas vezes íntimo, uma convivência do dia a dia, da casa, dessa relação de formar uma família, de ter  um relacionamento, de ter filhos. Mas o porquê ele não escreve é um questionamento que ele vai ter que se fazer e que eu tento fazer a partir do meu lugar, da minha realidade e da minha relação com as mulheres. Daria uma boa pesquisa até em termos de entrevista também, perguntar por que ele não escreve personagens femininas, ou femininas protagonistas. Em muitos dos livros escritos por homens heterossexuais, as personagens femininas aparecem, mas aparecem na margem, como um acessório. Quanto mais o homem escrever personagens femininas, mais ele vai refletir, talvez mude um pouco a relação com as mulheres, ao experimentar essas alteridades na escrita. 

Nonada – Qual é o papel da literatura no mundo do hoje? E o que seria uma literatura antirracista?

Tônio Caetano – Essa pergunta me veio também no lançamento de Terra nos Cabelos, e eu fiquei pensando se eu soube concatenar a resposta. Eu tenho uma dificuldade de falar dos grandes temas, porque eles abarcam muita coisa. Talvez até isso seja uma questão também do porque eu começo pela personagem e não propriamente pela trama. Outro dia eu estava refletindo sobre o que a Literatura pode. A Literatura pode mais ou o escritor pode mais? O escritor pode tudo ou não? Eu acho que a Literatura,  a partir do que a gente falou antes desse movimento de editoras populares, pode cada vez mais. E neste termo de ser antirracista pode mais ainda, porque é um campo que essa Literatura antirracista vai ocupar naturalmente. A gente sabe que a Literatura é um campo de disputa, de pontos de vista, ideológicas e a Literatura Brasileira tem o seu percurso, sua formação. Teve o período de construir quem era o brasileiro, de dizer como era o brasileiro. Teve um período até da história da Literatura em que ela resolveu dizer quem é o indígena, qual é a origem do brasileiro. Então, a Literatura construiu muito do nosso imaginário hoje. Se a gente pensa em um imaginário racista, isso em alguma medida é, também, contribuição da Literatura. De todos os produtos culturais, política, mas também da Literatura. Então, esse campo da literatura antirracista é um campo que está aberto e a gente vê essas editoras, como a Figura de Linguagem, lançando autores novos, ocupando esse espaço e trazendo novos pontos de vistas. Assim como as editoras populares, e essa literatura periférica. 

Para mim, a literatura antirracista está buscando um novo imaginário de Brasil. Tenho pensado muito sobre isso. Esses dias na Feira do Livro, estava uma escritora que eu gosto muito, que é Kiusam de Oliveira e ela falou da ideia de Literatura de Encantamento, que é um conceito que ela trouxe do Cuti. Uma literatura para crianças negras para que elas não tenham um desvio na sua visão sobre a própria beleza, sobre lidar com o racismo no dia a dia, então eu penso que literatura pode muito. E essa questão da literatura antirracista é a literatura que trata as pessoas negras como seres humanos dignos, como seres humanos aptos a falar sobre si mesmo, a falar sobre o seu cotidiano, de uma forma positiva. 

E tem também outra questão, que a gente fala muito hoje sobre o período de escravidão, e o que querem que os negros e os periféricos escrevam. Tem muito essa questão e eu tenho refletido bastante sobre isso em relação a quanto escrever narrativas de dor, digamos assim, não está alimentando essa fome, talvez, de sangue e de dor da branquitude. Têm pessoas que param o carro para ver uma pessoa morta na rua, esse movimento de parar o carro é porque ela tem um interesse de se alimentar daquele corpo, daquela dor, daquele sangue. Eu fico pensando o que essas narrativas de dor, por mais que a gente saiba que muitas vezes as pessoas escrevem para lidar com aquela dor, está alimentando, e quem está consumindo isso? 

A gente fala muito hoje sobre a questão política e do ódio, têm pessoas hoje que estão buscando se alimentar de ódio. A Literatura está sendo esse alimento? E sendo esse alimento ela é antirracista ou não? Tenho minhas dúvidas. Tenho minhas dúvidas sobre o quanto é ser antirracista alimentar esse estímulo e essa fome de ódio, da branquitude de forma geral. E acho que a literatura antirracista é a que traz as pessoas como seres humanos na sua plenitude, personagens que não são planos, que estão vivendo, que estão lutando, que tem a sua subjetividade. Tem também essa questão que os personagens e as personagens negras, assim como as pessoas negras, não são todos iguais, isso é importante. Trazer a questão da diversidade sexual é importante, trazer personagens mulheres fora desse padrão inalcançável também é importante. Acho que é por aí. A Literatura pode, e muito. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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