CCMQ reabre com instalação sobre ditadura e obras de artistas negras

Ester Caetano
Fotos: Kevin Nicolai/divulgação

Um dos pontos culturais mais efervescentes de Porto Alegre, a Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ) reabriu neste mês de janeiro, com mostras inéditas e novos espaços. Neste momento, o centro cultural só pode ser visitado mediante agendamento prévio de visita. Fechada desde março para seguir os protocolos de distanciamento social, a casa também passou por algumas reformas relacionadas ao Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios. 

Na reabertura, o público poderá contar, também mediante agendamento, com a opção de visita mediada pela equipe da Casa de Cultura, na qual os mediadores apresentam um pouco da história da CCMQ e acompanham os visitantes pelos diversos espaços. 

A programação virtual da CCMQ continua ativa, desta vez com atrações voltadas ao Mês da Visibilidade Trans. Neste sábado, às 21h, a casa transmite, através do instagram @ccmarioquintana, um show com a cantora gaúcha Valéria Barcellos e a pernambucana Diva Menner. 

Quem quiser voltar a frequentar o espaço com segurança e distanciamento social vai encontrar, além do retorno da mostra “Mulheres nos Acervos”, novos espaços, mostras e instalações. 

Tributo a Maria Lídia Magliani

Reunindo obras de artistas visuais negras como Balbina de Sá, Mitti Mendonça, Renata Sampaio e Virginia Di Lauro, o novo espaço da CCMQ, que homenageia a artista pioneira Maria Lídia Magliani, recebe uma exposição com a curadoria de Daniele Barbosa. A partir do critério de trazer artistas que se alinham à história de vida da homenageada, todos os nomes têm em comum a descoberta da vivência em outros estados, para além do RS. Para Barbosa, os trabalhos de Renata Sampaio, por exemplo, expõem questões que dialogam e fazem parte de sua travessia. “Zapretas” é uma das obras selecionadas de Sampaio, que reflete sobre a sensibilidade e a vivência, além da construção de pontes e laços, trançados entre pares. 

Já o vídeo “Nossos Passos Vêm de Longe” foi selecionado como símbolo da presença visual da mostra. “O vídeo é exatamente a representação do que nos trouxe até aqui, porém não caminhamos sozinhas,  e é sempre melhor que não estejamos, pois nossos pares nos fortalecem, potencializam-nos. Acredito que os trabalhos da Renata que escolhi para comporem a exposição são esse laço da afetividade e de ação, do deslocamento e da força”, comenta.

Mostra inaugura o espaço Maria Lídia Magliani (Foto: recorte em foto de divulgação)

Como auto representação e mostrando a força de mulheres negras, a artista Virginia Di Lauro, segundo Daniele, reverbera a homenageada Migliani. A artista expõe a obra “Objeto” e o vídeo “Conta Gotas”. “Objeto é um trabalho que no meu entendimento ecoa Magliani. Com a potência de sua poética, Virginia tensiona e coloca à mostra questões: de nós, dos nossos corpos, o sangue que escorre também ascende. O vídeo “Conta gotas” é uma continuidade disso, mas destaco algo que quis abordar com a curadoria: a autorepresentaçao. Virginia elabora muito bem este aspecto em sua poética e tanto pode ser tensionado a partir da distorção e do desmanchar visíveis nesse trabalho”, explica a curadora.  

Com crochê, bordado e tapeçaria, “Tramas que me trouxeram até aqui” é um trabalho que carrega a memória da narrativa da artista Mitti Mendonça. O conjunto de seu trabalho com o bordado transmite uma energia  ancestral, em razão da sua geração anterior de bordadeiras. Ampliando sua presença na exposição, a série “Muitas Camadas de Alegrias e Incômodos” é um exercício estético de Mendonça. 

Outro nome marcante na mostra é Balbina de Sá. Através de trocas e diálogos com Daniele, surgiu, então a  videocolagem “Ecos (para Maria Lídia Magliani)”, obra que transpõe a intensidade da artista como homenagem para Magliani. A artista pelotense foi pintora, desenhista, gravadora, ilustradora, figurinista e cenógrafa e passa agora a dar nome ao novo espaço expositivo da CCMQ.  

“Posso dizer que essa curadoria foi uma construção que cresceu dentro e fora de mim,  dialogando com as artistas e seus trabalhos e a partir da pesquisa que pude fazer sobre Maria Lídia. O trabalho de Magliani me impressiona, e contar com duas obras delas na exposição é uma alegria imensa. Magliani representou a figura feminina de forma a tensionar esse mundo feminino que nos espreme, aperta, enforca; e é dela a frase que inspirou o título da exposição, ‘Sou toda um só nó’, e eu acredito que somos todas um só nó, pelas linhas que compartilhamos, pelos trançados que elaboramos e pela conexão fruto dessa exposição”, relata a curadora. 

Tocando nas feridas

Esqueleto no Armário, de Manoela Cavalinho (Foto Kevin Nicolai/divulagação)

O Espaço Majestic, no térreo da Casa, recebe a instalação “Esqueleto no armário”, da artista Manoela Cavalinho, uma obra sobre o período da ditadura militar. O texto e apresentação foram organizados pelo jornalista e doutor em artes visuais Eduardo Veras, e a curadoria é de Diego Grosmann, diretor da Casa. A artista nos conta que o que a motivou criar a obra foi  após escutar uma edição do programa Cantos do Sul da Terra (FM Cultura), em que o apresentador Demétrio Xavier entrevistava Paulo de Tarso Carneiro. o entrevistado contava sobre o momento em que retornou ao Palácio da Polícia, nos anos 90, e se deu conta que era o mesmo local onde havia sido torturado nos anos 70. 

“Ao escutar a entrevista pensei no meu pai, que trabalhava no Palácio. Mas até então eu nunca tinha associado o local com o porão do DOPs. Neste dia mesmo, escrevi um texto, que na obra está na parte dos fundos de um roupeiro. Funciona à maneira de um segredo familiar, sempre esteve ali, mas ao mesmo tempo era uma informação inacessível”, destaca a artista.

Para Cavalinho, a obra foi também uma forma de descoberta. “Eu quis trazer um ambiente doméstico, um móvel de casa que, para mim, era um pouco misterioso, quase assombrado. Quis colocar esse texto dentro das costas do guarda-roupa, que é um local que a gente tem muito pouco acesso, porque ele é tomado pelas roupas e pelos casacos. Então é como se fosse uma descoberta de algo que estava o tempo todo na minha frente, ou seja, que meu pai talvez tenha trabalhado no DOPs. Demorei quase 40 anos para perceber que alguma estranheza havia na minha casa”, diz.

Bloco nas ruas 

Na Sala Radamés Gnattali, no 4º andar da CCMQ, será possível visitar a mostra “Aos carnavais que virão”. Com curadoria do jornalista e graduando em História da Arte Diego Vacchi, a exposição reflete sobre a  potência do carnaval de rua de Porto Alegre, “a partir das reverberações da crise humanitária que quebra rituais que simbolizam os elementos da grande festa de rua”. Em sua pesquisa, o jornalista esteve em contato com o acervo do Museu Joaquim José Felizardo, que guarda parte da memória visual da festa ao longo do século XX na capital gaúcha. 

A mostra traz ao público imagens, documentos, objetos históricos e marchinhas. Para Vacchi a imagem do Areal da Baronesa é um maior destaque. “É uma cena de um cortejo de carnaval no Areal da Baronesa, que foi um espaço pertencente à chácara da Baronesa de Gravataí e virou um espaço de resistência da negritude de Porto Alegre”, descreve. Os registros da exposição servem “como farol aos carnavais que virão.” 

Serviço

A visitação será realizada mediante agendamento pelo e-mail visitaccmq@gmail.com.  As visitas terão limite de público e medidas de proteção contra a Covid-19. Uma novidade do espaço cultural é  o recurso de audiodescrição, que poderá ser acessado via QR Code, o que leva a uma maior percepção dos ambientes e dos espaços da Casa de Cultura. O horário de funcionamento é de segunda a sexta, das 10h às 18h.

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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