Filipe Farinha, um artista do equilíbrio na arte e na mobilização pela cultura

Thaís Seganfredo
Foto: Gil d Gil/divulgação

Filipe Farinha sempre viveu da arte. Integrante da segunda geração de artistas da família, ele se formou pela Escola Nacional de Circo em 2006. Especializado em funambulismo, arte circense que consiste em caminhar na chamada corda bamba, o então formando fez história ao se tornar o primeiro brasileiro a se equilibrar sobre os cabos do Pão de Açúcar, na cidade do Rio de Janeiro. Em 2008, foi contemplado com a Bolsa FUNARTE de Incentivo à Criação ou ao Aperfeiçoamento de Números Circenses, o que possibilitou atingir um alto nível técnico na corda bamba.

Artista múltiplo, Filipe atua com trapézio voador, acrobacia, malabarismo, monociclo, perna de pau e pirotecnia. Seu Palhaço chama-se Farinha de MandioK Grande Filho e já esteve em atuação em vários eventos e festivais, antes da pandemia no espetáculo “CIRCOCICLETA”, contemplado com o prêmio FUNARTE de Artes Cênicas na Rua, em 2012. 

Filipe vive intensamente seu trabalho no palco, na rua e no picadeiro. Por isso, quando foi decretada a pandemia de covid-19 em março de 2020, seu trabalho parou e sua vida mudou. “Quando percebi que nosso trabalho representava um perigo sanitário para a comunidade, foi um choque. Minha primeira reação foi diminuir os custos, acabei indo morar de favor na casa da minha vó”, conta.

Nesta entrevista ao Nonada, o artista fala sobre a rotina de quem trabalha na arte circense no Rio Grande do Sul, bastante marcada pela sazonalidade. Organizador e curador do Festival de Artistas de Rua, ele ministra oficinas de Circo, produz e atua no grupo Corpos & Sombras – teatro e circo. “Em comparação com outros países, a arte local, no geral, é bastante desvalorizada.  As pessoas lotam os grandes eventos, pagam R$ 300, às vezes mais, para assistir artistas de fora, mas não colocam R$ 20, R$ 50 reais num ingresso ou mesmo num chapéu, que deveriam ter a mesma equivalência”, lamenta.

Além de todas as atividades no fazer artístico, Filipe é atuante na construção de políticas públicas da área e está como vice-presidente da Associação de Circo do Rio Grande do Sul – Circo Sul. Na avaliação do artista, “depois de aprovar a Lei Aldir Blanc, o grande desafio foi fazer  com que os recursos chegassem aos artistas realmente necessitados, e não fossem usados para campanhas ou acordos políticos, como aconteceu em alguns casos, infelizmente, conseguimos apenas uma redução de danos”.

A conversa, que teve como foco a arte de viver de cultura no Brasil, faz parte de uma reportagem especial da revista impressa do Nonada, que será distribuída gratuitamente em espaços culturais públicos de Porto Alegre e região ainda este ano. Confira a entrevista na íntegra:

Nonada – Como era teu dia de trabalho antes da pandemia?

Filipe – Por atuar em diversas áreas diferentes, não tenho como descrever uma rotina diária, pois minha organização é toda temporária de acordo com as demandas. Por exemplo, quando abre um edital, dificilmente abre contemplando o trabalho que já desenvolvemos, então sempre temos uma dedicação para adequar nossos projetos aos editais. Quando vendemos um espetáculo, tem um processo de manutenção de equipamentos, ensaios específicos para relembrar alguma coisa, Quando estamos num processo de criação, precisamos dedicar tempo para pesquisar sobre os mais diversos assuntos, eventualmente aparece uma oficina para ministrar, um convite para algum evento social. Enfim, nosso trabalho se dá por etapas, pesquisa, experimentação, consolidação e apresentação e dentro disso temos que encaixar o treinamento físico, intelectual e espiritual, o desenvolvimento de novas técnicas, a vida pessoal e social, as participações nas construções de políticas públicas que nossa classe exige. 

Tem uma organização também específica pela época do ano. Como aqui no sul, chove mais no meio do ano, e o inverno é rigoroso, no verão dedicamos mais a atividades físicas; no inverno, às intelectuais. Outra característica é que de novembro a dezembro, aumentam os eventos, aumentando assim as demandas de trabalho. Mas em janeiro e fevereiro, normalmente só dá para trabalhar no litoral e em função dos gastos, a viagem não paga as contas. Então temos que economizar os ganhos do fim de ano para garantir as contas até março, quando começa a aparecer um evento ou outro que, juntando ao chapéu do momento, supre as necessidades.

Quando me refiro a chapéu do momento, é que nos dedicamos à arte de rua, que a qualquer momento podemos ir em uma praça movimentada, uma sinaleira, nos bares e alguns outros lugares, apresentar e passar o chapéu, o que exige bastante dedicação quando se trata de pagar as contas.

As únicas rotinas que tínhamos são dentro do projeto “Ocupação Cultural Amadeo Rossi” com as ações “Quarta na Praça”, uma vez por semana íamos treinar e compartilhar nossos saberes na Praça Amadeo Rossi aqui em São Leopoldo e o “Palco Aberto”, todo último domingo do mês.  Logo antes da pandemia estávamos preparando uma nova ação, “Aliando a Arte à Educação”, contemplado pelo edital “Circuito de Ocupação Cultural São Leopoldo” (COC-SL), que visa integrar o projeto “Ocupação Cultural Amadeo Rossi” com as escolas, mas as escolas fecharam…

farinha é atuante na construção de políticas públicas para o setor (Foto: divulgação)

Nonada –  E como está teu dia desde que começou a pandemia? Atua fora da área cultural?

Filipe – Sou da segunda geração de artistas na minha família, sempre vivi da Arte, salvo raras exceções. Quando percebi que nosso trabalho representava um perigo sanitário para a comunidade, foi um choque. Minha primeira reação foi diminuir os custos, acabei indo morar de favor na casa da minha avó. Logo comecei a articular com meus pares, na busca de alguma solução. Parece que 2020 aconteceu em único interminável dia, começamos a pressionar os governantes, prefeito, governador, presidente, várias articulações em todas as esferas, reuniões virtuais atrás de reuniões virtuais, que culminaram na criação da Lei Aldir Blanc e seus desdobramentos. Depois de aprovar a LAB, o grande desafio foi fazer  com que os recursos chegassem aos artistas realmente necessitados, e não fossem usados para campanhas ou acordos políticos, como aconteceu em alguns casos, infelizmente, conseguimos apenas uma redução de danos. 

Ficou evidente que “Emergência Cultural” não combina com o sistema burocrático vigente, o qual sempre acha brechas, quando convém, para “dar curvas” na Lei e servir a interesses obscuros. Tem sido um aprendizado e tanto, um tanto quanto dolorido, frente a um imenso desequilíbrio entre o que deveria ser e o que está sendo, mas recheado de conquistas que, só foram possíveis, pela solidariedade e força empreendida na união dos artistas e demais trabalhadores da cultura.

Paralelo a isso, a exploração de uma nova forma de expressar minha arte, utilizando as tecnologias acessíveis. Graças a Deus, apareceu um Laboratório de criação artística online, em momento oportuno, o que me permitiu exercitar minha arte, e desopilar um pouco da realidade que se instaurou. Meu exercício espiritual me ajudou muito nessa parte. Me concentrei bastante em ajudar os outros, do jeito que eu podia, ocupando os lugares de representatividade de classe, distribuindo as informações importantes, instrumentalizando artistas necessitados a acessarem os editais, Levantando dados para mapeamentos emergenciais, principalmente na área do circo. 

Um grande combustível motivacional, foi encontrar dentro das organizações sociais pessoas com essa mesma disposição incansável em fazer com que a vida pareça mais justa. Em destaque, o Comitê Emergencial Cultural de São Leopoldo, a Associação de Circo do RS e os Colegiados Setoriais Estaduais dentro da Comissão de Organização da Conferência Estadual de Cultura da Aldir Blanc, que foi onde consegui estar mais presente. Fui contemplado pela Lei Aldir Blanc e outros editais e prêmios que deram um alívio na questão financeira, mas a autonomia de voltar a ter meu próprio espaço ainda parece longe.

O artista se formou pela Escola Nacional do Circo em 2006 (Foto: Léia Senem/divulgação)

Nonada – Considerando não apenas a pandemia mas todo o contexto social e político, quais são as maiores dificuldades de trabalhar com arte no Brasil? 

Filipe – Aqui, trabalhar com arte é fácil, viver dela é complicado. São muitos os fatores. O Brasil é um país imenso, cada região, cada cidade tem suas particularidades. No geral, ao meu ver, a maior dificuldade para artistas que não transitam na grande mídia é formar um público cativo, abrangente, que consuma a sua arte. É possível, mas requer muito esforço e adaptações. 

Em comparação com outros países, a arte local, no geral, é bastante desvalorizada.  As pessoas lotam os grandes eventos, pagam R$ 300, às vezes mais, para assistir artistas de fora, mas não colocam R$ 20, R$ 50 reais num ingresso ou mesmo num chapéu, que deveriam ter a mesma equivalência. Tem questões culturais diversas, que colocam a arte em pequenos nichos específicos. Tem uma pesquisa do panorama setorial da cultura, que mostra que é uma pequena parcela da população que consome arte constantemente, fora das telas. 

Daí tem as leis de incentivo e editais que me parecem um tanto quanto excludentes, pois, entre outros, não se tem uma qualificação de curadoria, beneficiando sempre os mais instruídos, o que não deve ser aceito quando se fala de política pública. Nesse sentido, creio que a LAB trouxe uma exposição maior sobre essas questões. Tenho a impressão que, apesar de toda a fragilidade identificada, nas relações políticas culturais tivemos avanços conceituais importantes. Mas ainda precisamos andar muito se quisermos a consolidação de uma política digna de ser chamada de pública.

Nos últimos tempos, nossa renda maior vinha da venda de espetáculos em eventos comemorativos ou institucionais, mas até chegar lá foram vários anos de animação de festa, divulgação de eventos e campanhas mais ligadas ao entretenimento, do que realmente à expressão daquilo que tem dentro de mim e chamo de minha arte. 

A arte de rua e o circo encontram problemas em alguns lugares devido a leis proibitivas ou excessos de burocracias. Um fator específico para as artes circenses fora da lona é encontrar um local adequado, com estrutura e segurança, tanto para o ensino quanto para o desenvolvimento das técnicas mais ousadas. Aqui no sul, o clima é um fator agravante, principalmente para circos e arte de rua, em função da força dos ventos e quantidades de chuvas. Creio que poderia escrever um livro falando sobre as dificuldades e possibilidades de viver da arte, mas vou parar por aqui. 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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