Entidades criticam apropriação empresarial da orla do Guaíba

Ester Caetano

Foto: projeto arquitetônico do empreendimento Golden Lake (Foto: Multiplan/divulgação)

Entidades culturais e socioambientais debateram, no Dia do Meio Ambiente (5), as mudanças que vêm ocorrendo na orla do Guaíba, em Porto Alegre, pautadas pela participação cada vez maior de empresas privadas em toda a extensão da orla. Na live, que foi transmitida no perfil do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), os representantes denunciaram os empreendimentos que têm o potencial de transformar o verde em concreto e as privatizações. Participaram do evento os representantes do IAB-RS Clarice Misoczky e Rafael Passos (como mediador), o professor da UFRGS e integrante do (Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais) InGá Paulo Brack, a presidenta da Imperadores do Samba, Luana Costa, e o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente (AGAPAN), Francisco Milanez.

Na abertura, Paulo Brack citou o “Manifesto: A Orla do Guaíba é patrimônio histórico-cultural do povo e não do concreto e dos negócios” que reúne mais de 60 entidades. O manifesto, publicado pelo Sul21, faz um alerta sobre as ameaças de aprovação de projetos de Lei, não debatidos amplamente, e sobre a garantia da população usufruir o Lago Guaíba com seus diversos usos socioambientais. (Leia o documento no fim desta matéria).

Brack falou sobre empreendimentos de luxo que são projetados para tomar a Orla, a exemplo do conjunto de condomínios que a empresa Arado Empreendimentos pretende construir em 420 hectares na ponta do Arado, onde vive uma comunidade Mbyá Guarani. O projeto também colocaria em jogo a biodiversidade daquele lugar, como a flora e fauna, uma vez que o local é uma região de preservação ambiental e abriga espécies ameaçadas. O professor argumentou que as obras iriam contra a Lei Orgânica de Porto Alegre, “que define que são consideradas áreas de preservação permanente aquelas que abrigam espécies ameaçadas, raras ou migratórias”.  

O professor alertou para a flexibilização de leis que passam pela Câmara dos Vereadores englobando a questão do Arado. Um exemplo é o projeto de lei (PLCL) 16/20, protocolado no final de 2020 na Câmara dos Vereadores, aprovado e vetado em março de 2021 pelo prefeito Sebastião Melo (que o considerou inconstitucional). O projeto pretendia alterar o Plano Diretor do município para permitir a construção do empreendimento. “O setor imobiliário hoje consegue cooptar representantes para estarem no conselho do Plano Diretor e no conselho do Meio Ambiente também. O prefeito Melo colocou a Ana Pellini, uma das pessoas que mais teve papel de desconstruir a polícia ambiental no estado, como contratada para liberar os empreendimentos”, alertou Brack.

Logo em seguida, o presidente da Agapan, Francisco Milanez, refletiu a respeito de como as cidades podem ser pensadas de forma a respeitar as condições humanas. “A cidade é uma construção humana, e ela pode ser maravilhosa através de empreendimentos imobiliários sérios. O que vemos hoje é a especulação imobiliária, às vezes empresas que nem são daqui vêm investir, tomam áreas baratas, transformam em grandes negócios, destroem tudo, vendem caro, vão embora ou passam adiante. O que temos que entender é que é possível construir uma cidade humana e ambientalmente saudável.”

Milanez, que chegou a ser coordenador da Comissão Interinstitucional de Planejamento da Orla de Guaíba nos anos 1990, falou sobre como Porto Alegre teve um grande importância na construção da balneabilidade através do Guaíba, com a criação de programas de despoluição do lago como o “Guaíba Vive”, que conquistou a balneabilidade da praia do Lami. A comissão conseguiu planejar 70 Km da orla do Guaíba, mas o projeto foi abandonado posteriormente em detrimento dos empreendimentos imobiliários.“Nós temos arquitetos e urbanistas da melhor qualidade do Rio Grande do Sul. Não somos um receptáculo ou uma lixeira de projetos de especuladores. Nós temos que dignificar a orla, devolver o uso público da orla. Toda a construção que fizemos no passado está sendo destruída, e a votação popular de 2009 que determinou que não deveriam ser construídos prédios na orla foi desconsiderada”, lamentou

A arquiteta e urbanista Clarice Misoczky apresentou elementos que apontam como os investimentos do setor privado vêm pautando a construção da cidade ao longo dos últimos 15 anos. Ela explicou que os empreendimentos exclusivos, operados no formato de financeirização das cidades, visam o lucro a partir dos produtos de papéis na bolsa, os  fundos de investimentos imobiliários.

Misoczky contou que uma das empresas que operam a partir da financeirização das cidades é a Multiplan, responsável pelo Barra Shopping Sul e pelo Golden Lake, um condomínio fechado de 18 torres que vai ser construído ao lado do shopping. “Às vezes [para essas empresas] é mais interessante ter um projeto para constituir um fundo imobiliário de desenvolvimento, destinado a angariar recursos, mas não necessariamente é preciso concretizá-lo e materializá-lo na cidade. Ou materializa e não precisa vender porque o papel da bolsa associado a esse imóvel pode dar mais lucro do que a venda”, observou.   

A arquiteta, que também é professora da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, avaliou que todos esses empreendimentos citados foram viabilizados pelo instrumento de “projetos especiais” no Plano Diretor, que em sua origem, em 1999, eram projetos que deveriam ter vocação pública. “O empreendedor deve realizar um estudo de impacto ambiental, mas esses estudos são realizados pelos próprios empreendedores. O que a legislação prevê é que exista uma compensação ou mitigação de danos e não contrapartidas.”

O maior impacto dessa contrapartida para o setor privado, avalia, é o retorno do investimento nas próprias realizações e não na cidade como um todo. Não são todos os cidadãos que utilizam desses empreendimentos e sim aqueles associados “O setor privado investe em si próprio, para beneficiar a infraestrutura própria, como o caso do Golden Lake”, contesta, citando também o conjunto de prédios que o Sport Club Internacional pretende construir próximo ao estádio Beira-Rio, na beira do Guaíba.

Área do Cais do Porto está sendo utilizada por um conjunto de restaurantes e bares (Foto: Cais Embarcadero/divulgação)

A professora lembrou também do projeto de revitalização do Cais Mauá, arquitetado no início dos anos 2000 e que inclusive previa a construção de shoppings na área onde estão edificações históricas do cais do porto. “Felizmente o investimento não saiu do papel, mas foi inaugurado o Embarcadero, que não revitalizou o patrimônio”, criticou a especialista, contando um pouco de sua experiência ao tentar acessar o local, em tese, público. Eu fui visitar como pesquisadora e não foi possível eu entrar porque se estipula uma capacidade na pandemia, então não foi permitido o acesso. Mas meu interesse não era sentar e consumir no restaurante e sim circular na área pública”. Ela lembrou que o cais já foi espaço fundamental para a cultura da cidade, com a realização de eventos como a Feira do Livro de Porto Alegre e a Bienal do Mercosul nos galpões, que atualmente estão deteriorados, sem manutenção.

Abordando sobre como as escolas de samba estão sendo ameaçadas e prejudicadas pelas elites de Porto Alegre, Luana Costa, presidente da Imperadores do Samba, alegou que sua escola, cuja sede está próxima à Orla, também está sendo afetada pelos empreendimentos. “A Imperadores foi prejudicada quando houve as obras para a Copa do Mundo de 2014. A Imperadores perdeu dois terços de sua quadra, e tentam nos empurrar cada vez mais para fora. A elite no passado pressionou o poder público para que o carnaval saísse do centro e fosse para o Porto Seco [na zona norte]”, contextualizou. 

A artista se disse surpresa com o andamento do projeto imobiliário do Internacional, que será construído próximo à sede da escola de samba. “O patrimônio histórico e o legado cultural da Imperadores não podem ser ignorados. A Imperadores é referência cultural na cidade de Porto Alegre, mesmo que o racismo institucional tente ignorar isso, é uma escola que movimenta milhares de pessoas e faz parte da vida do cenário cultural da cidade”, defendeu.  

Manifesto: A Orla do Guaíba é patrimônio histórico-cultural do povo e não do concreto e dos negócios

“Porto Alegre está irmanada ao Guaíba, e sua orla representa um patrimônio socioambiental de sua população. São mais de 70 km de extensão junto a este curso d’água que embeleza a paisagem de uma cidade que surgiu e tem o nome de porto e já foi famosa por suas praias, que marcaram o nome de bairros (Praia de Belas, Praia de Ipanema, Praia da Assunção, Praia do Lami, etc). O pôr do sol no Guaíba é um dos nossos grandes cartões-postais, mas corre risco de ficar escondido atrás do concreto.

Os planos de políticos, governantes e empresários evidenciam um apetite voraz de transformação da paisagem em concreto e privatização da orla e ameaças ao meio ambiente e aos direitos da população, via projetos de Lei de um plano hidroviário (PLL no 116/18 e PLCL n° 024/18) que não foram discutidos com a população e podem beneficiar empreendimentos privados na orla (estruturas de concreto, canais junto a grandes condomínios, atracadouros para embarcações de luxo, etc.).

As chamadas “dimensões cultural, ambiental e social”, embutidas nas novas Leis aprovadas recentemente na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, parecem mais cortinas de fumaça para permitir intervenções de setores empresariais na orla do Guaíba e em suas águas. Encobrem intenções de obras para grandes clubes e empreendimentos privados, que preveem atracação e a ancoragem de embarcações particulares, o que pode aumentar a poluição e o comprometimento da paisagem natural da orla, prejudicar a vida da população nas Ilhas e a pesca artesanal e coibir o acesso livre à maioria da população.

Tais projetos, de cunho neoliberal, implicam em flexibilizações no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), em um momento de pandemia, o que impede reuniões e audiências públicas presenciais, o que beneficia um processo crescente de criação de um ambiente de negócios, por meio de questionável Lei de Liberdade Econômica, do governo Bolsonaro.

Como agravante, a prefeitura está beneficiando o licenciamento de grandes empreendimentos que implicam em desmatamento de mata ciliar e aterros, desde o extremo sul, em Belém Novo, até a porção central, no Cais do Porto Alegre, em construções privadas que desconectadas beneficiam setores econômicos que especulam com o bem público da cidade. Parte da orla já não está mais disponível ao público, já tendo sido privatizada, impedindo o livre acesso da população às suas praias e margens. Seguem sendo planejadas e licenciadas intervenções privadas, em grandes condomínios fechados (Empreendimento Imobiliário Arado Velho, Condomínios no Morro do Sabiá, Loteamento Ipanema, Golden Lake, Pontal do Estaleiro, etc.).

De igual forma, as expressões culturais da população porto-alegrense, situadas nos espaços da cidade que entraram no radar dos grandes investimentos imobiliários e comerciais, não contam com nenhuma garantia de permanência. O cais, as escolas de samba, a Usina do Gasômetro, os museus e tantos outros símbolos do patrimônio histórico e cultural da nossa cidade estão sob risco de descaracterização, de uma gestão privatizada ou simplesmente de desaparecimento.

Sabemos que o processo eleitoral tem-se consolidado como uma oportunidade de negócios em que o produto é a cidade. Esta deixa de ser o espaço de produção de bem-estar, realização da vida das pessoas para ser apenas o espaço de valorização de investimentos do capital imobiliário.

De acordo com TSE, cruzando informações entre doadores e as empresas em que estes compõem o corpo societário é possível perceber que de 22 doadores ou grupo de doadores ao atual prefeito Sebastião Melo, quase R$ 1 milhão foram investidos por empresas em que 9 são vinculadas ao setor de empreendimentos imobiliários. Reafirmando essa tendência, a Prefeitura, sem estrutura e políticas de planejamento e fiscalização – a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS) consta com somente um veículo para fiscalizar a área ambiental -, na atual administração, como aconteceu na anterior, acaba favorecendo os grandes negócios, como a presença de construções elevadas nem sempre sustentáveis em uma orla que corresponde a Área de Preservação Permanente, de 500 m de largura da margem, já que o Guaíba, sendo um curso de água, se enquadra no Art. 4º da Lei 12.651/2012.

Consideramos de grande importância trazer à tona a preocupação com a orla do Rio-Lago Guaíba, inclusive com a discussão de um plano hidroviário ou qualquer outra proposta para o mesmo, desde que de forma harmônica, garantindo os múltiplos usos socioambientais da orla e do meio aquático. Porém, isso deve ser precedido de um amplo debate com a sociedade.

Queremos garantir a manutenção e a promoção do patrimônio histórico-cultural e natural da orla, da qualidade da água, de sua paisagem e dos interesses da maioria da população.

Em Defesa da Orla Pública e do Guaíba!

Veto ao PLL 116/18 e ao PLCL 024/18!”

Assinam esse manifesto:
Acesso Cidadania e Direitos Humanos
Afronte
Alicerce
Amigos da Terra Brasil
Associação Agroecológica
Associação Amigos do Cais do Porto – AMACAIS
Associação Chico Lisboa
Associação Circo Sul
Associação Cultural Povo da Rua
Associação dos Amigos do Meio Ambiente – AMA Guaíba
Associação dos Moradores do Conjunto Residencial João Pessoa
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural – AGAPAN
Atuapoa
Bancada de Vereadores do PSOL/POA
Bancada de Vereadores do PT/POA
Biblioteca Ágatha Félix
Biblioteca Comunitária Marginal Ilha do Saber
Cais Mauá Cultural Já
Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, Pedra Redonda, Vilas Conceição e
Assunção – CCD
Colegiado Estadual Setorial de Circo
Centro de Estudos Ambientais – CEA
Coletivo A Cidade Que Queremos
Coletivo Catarse
Coletivo Cidade Mais Humana
Cia de Teatro Vento Minuano
Eco pelo Clima
Federação das Entidades de Artesões do RS – FEADARGS
Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro/RS
Fórum Justiça/RS
Frente pelo Clima/RS
Grupo Ecológico Sentinela dos Pampas/GESP
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU
Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB
Instituto Ingá
Instituto MIRA-SERRA
Instituto Zoravia Bettiol
Laboratório de Políticas Públicas e Sociais – Lappus
Marcha Mundial das Mulheres/RS
Meme Estação Cultural
Movimento Roessler para Defesa Ambiental
Movimento Vegano Anticapitalista – MOVA
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST
Núcleo de Ecojornalistas – NEJ/RS
Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais
ONG Colaí Movimento de Cultura
ONG Resistência Participativa/Despertar Coletivo
Pastoral da ecologia/CNBB
Pastoral da Ecologia Ecumênica
Preserva Arado
Preserva Belém Novo
Preserva Zona sul
RGP1
Rede Nacional de Advogados/as Populares – RENAP/RS
Resistência
Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região
Subverta
TransLAB.URB
Terreira da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz – Centro de Experimentação e
Pesquisa Cênica e Escola de Teato Popular
Unidade Popular pelo Socialismo RS
União Protetora do Ambiente Natural- UPAN
UPPAN-DP

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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