Entenda por que a linguagem neutra é uma variação natural do Português

*atualizado no dia 10/08 para corrigir nome da professora Daiane e incluir nota da Sedac; *atualizado no dia 28/10 para incluir o pronome correto de Ophelia

Ester Caetano

Foto:  bandeira não-binárie (Florencia Salto/reprodução)

Entre casos de censura e manifestações nas redes sociais, o governo Bolsonaro tem demonstrado que não aceita a diversidade de gênero. Na última semana, o secretário especial da cultura, Mário Frias, publicou um post de cunho transfóbico nas redes sociais, criticando a secretaria estadual de Cultura do Rio Grande do Sul por uma ação que promove a diversidade LGBTQIA+. A Sedac divulgou nota sobre a publicação.

Em julho, Frias já havia reprovado a utilização da linguagem neutra por parte do recém reinaugurado Museu da Língua Portuguesa. O Museu havia feito um post em que incluía a palavra “todes”. Frias disse em publicação no twitter que a instituição estava “vandalizando a cultura”. “Não aceitarei que esse investimento sirva para agentes públicos brincarem de revolução”, declarou. O Museu chegou a responder os ataques, afirmando que representa um local de debate para as variações do idioma e as mudanças que são incorporadas ao longo do tempo. 

A linguagem neutra desempenha um papel essencial na luta das pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros binários  – o feminino e o masculino -, ou seja, as pessoas não-binárias (NB). O uso do pronome neutro aparece então como uma terceira opção para os pronomes binários. Nas redes sociais, existe um grande movimento para a inclusão do pronome neutro, mas persistem impasses que dificultam o processo de uma aceitação mais institucional, como os casos de preconceito exemplificados pela atitude do secretário especial da cultura. 

Ao longo dos séculos, a língua portuguesa falada no Brasil viveu longas mudanças, acompanhando as evoluções de cada era. Com as redes sociais, foi aberta mais uma aba de discussão sobre a introdução dos pronomes neutros como nova forma de se comunicar. Uma das primeiras tentativas dessa inclusão no cotidiano online foi a utilização da letra “X” e o “@” no lugar do “o” e do “a”. Entretanto, o método causou a exclusão de pessoas com deficiência visual ou dislexia, já que mecanismos de audiodescrição não conseguiam ler os caracteres, além da dificuldade em se pronunciar fora da internet. 

Mais recentemente, outras formas passaram a ser usadas para incluir o pronome neutro, inserindo o  “e” em final de palavras terminadas em “o” ou “a”, como por exemplo todes, amigue e diretore. São vários os sistemas dentro dessa linguagem, de acordo com os usos das pessoas não-binárias. Nos sistemas ILI, ELU e ELO, os mais usados atualmente, o que muda entre um e outro são os pronomes e suas contrações. Nesta reportagem, o Nonada adotou o sistema “elu”, o mais popular na internet e preferido pelos entrevistados.

Recepção aos calouros na UFMG (Foto: reprodução)

Emilio Juane é cantore não-binárie e mora em Chapecó/SC, cidade que aprovou no mês passado um projeto de lei que proíbe o uso da linguagem neutra dentro das escolas. Para elu, existe um imaginário social de que a linguagem neutra só acontece na internet ou que é discutida apenas nas classes sociais mais altas. Porém, em seu ciclo de vivência, a linguagem neutra é uma realidade cotidiana. “Na minha vida, no meu convívio social, eu vejo ela sendo aplicada e eu vejo inclusive ela sendo discutida, para que cada dia mais ela alcance o objetivo esperado, que é a de inclusão de pessoas não binárias e de uma linguagem não sexista, que pense além do binarismo”, relata.

Segundo elu, existe uma dificuldade das pessoas binárias em utilizar os pronomes neutros no dia a dia, porque elas não acham que seria relevante. “Isso parte da não aceitação da pessoa não-binária. A linguagem é muito flexível, ela muda muito ao longo do tempo e ela tem determinados usos. Então ela não é uma coisa concreta, a língua está em constante transição e a gente precisa reconhecer isso. O primeiro desafio é o reconhecimento de que sim, é possível mudar a língua e sim, existem identidades diferentes e que poderiam ser contempladas e respeitadas através dessa linguagem”, acredita.

No cerne da proibição do assunto em espaços institucionais, está a negação da diversidade de gênero, acredita Emilio. “Eles não querem que a gente discuta outras identidades e não querem que a gente discuta outras formas de linguagem dentro da escola, que é o espaço mais apropriado inclusive para isso, para se pensar, para se debater, para as melhores saídas de dentro da língua, então existe uma grande resistência. A partir do momento que uma comunidade ganha visibilidade, ela também vai ganhar uma reação da direita conservadora das das pessoas fundamentalistas, tradicionalistas”, pondera. Ê artista complementa que mesmo com os impasses, cada vez mais a linguagem neutra tem entrado nos espaços institucionais, já que os não-bináries estão ocupando cargos em empresas e tendo uma visibilidade que antes não tinham. 

Gabriel Galli, integrante da ONG Somos, voltada aos direitos LGBTQIA+, avalia que o uso da linguagem neutra é uma luta em desenvolvimento, que muitos detalhes precisam ser aperfeiçoados e que as pessoas precisam se acostumar com a aplicação. “Muitas são as pessoas que sinalizam como gostariam de ser chamadas, em emails, apresentações ou até mesmo broches, deixando em evidência os seus pronomes de preferência. Acho que ajuda bastante a naturalizar que não se deve inferir o gênero de ninguém”, afirma.

Para ele, mais do que uma questão gramatical, o tema é social. “É uma reivindicação para que a sociedade pense por que colocamos o masculino como algo universal e padrão. Neste sentido, é importante como uma provocação para pensar novos métodos de construir uma sociedade menos machista e binária”.

Português, uma língua viva 

Ilustração: Joana Lira/MinC

Ao contrário do que afirma o relator do projeto aprovado em Chapecó, utilizar variações da língua não é “ensinar errado”. Como explica o professor de linguística do Instituto de Letras da UFRGS, Cléo Altenhofen, toda língua é feita de variações e, no Brasil, as variações regionais são as mais marcantes. Segundo o professor, os dialetos são sistemas linguísticos que servem a uma comunicação mútua entre a língua escrita e falada. “Nós não falamos mais o português de Cabral. Na Sociolinguística, nós dizemos que todas as línguas mudam intermitentemente a partir de como nós entendemos. A coexistência de variantes é que garante a intercomunicação, nós estamos muito acostumados a variação”. 

Cléo diz que a variação se dá a partir de um contexto social, e os mecanismos de comunicação ocorrem a partir da necessidade da sociedade e do envolvimento dessas pessoas. Assim como se discute a questão de gênero e sua neutralidade, existe a variação entre os grupos étnicos e culturais, como a língua das comunidades quilombolas de influência africana ou indígena, por exemplo. 

Nesse sentido, a realidade da língua portuguesa é de variação e mudança e existe uma grande heterogeneidade que compreende o idioma, afirmam especialistas na área. Daiane Neumann, doutora em estudos de linguagem e professora na Universidade Federal de Pelotas, explica que na Sociolinguística, as variações podem ser determinadas pelos fatores temporal, geográfico, de classe. “Essa realidade complexa envolvendo a variação e a mudança é o que caracteriza qualquer língua viva”, diz.

A linguagem neutra, portanto, seria um acontecimento natural. “É um fenômeno inerente à realidade linguística, no sentido de que a língua muda, na medida em que os falantes, por vezes de forma mais consciente, por vezes de forma menos consciente, sentem a necessidade da mudança linguística, a fim de significar e, portanto, constituir a realidade à sua volta”, destaca a professora.

Saiba como usar a linguagem neutra na prática

O Guia da Linguagem Neutra “Porque elus existem e você precisa saber!”, de autoria de Ophelia Cassiano, questiona o “masculino genérico” e reúne mais de 80 regras gramaticais sobre a linguagem neutra, construída através do ativismo do movimento feminista e LGBTQIA+. O manual pondera que, para reconhecer e validar pessoas não binárias, interssexo e gênero não conformante, é preciso adicionar novas regras gramaticais na língua portuguesa para romper com binarismo excludente.   

“Desde que somos crianças, fomos treinades a escrever, ler, falar e ouvir tudo no feminino ou no masculino. Então, no início é natural que seja difícil para você se adaptar com as palavras neutras”, explica Ophelia no documento. Segundo elu, o material pode divergir de outras iniciativas existentes, uma vez que há visões plurais sobre a linguagem neutra. 

Confira o glossário básico:

Artigos – Substitua os artigos definidos “a(as)” e “o(os)” pelo artigo “ê(es)”.

Pronomes – Substitua os pronomes pessoais “ela(s)” ou “ele(s)” pelo pronome neutro “elu(s)”.

Pronomes possessivos – Substitua os pronomes possessivos “meu(s)” ou “minha(s)” por “minhe(s)”. Substitua os pronomes possessivos “seu(s)” ou “sua(s)” por “sue(s)”.

Desinências – Quando a palavra termina em “-a” ou “-o”, substitua a desinência por “-e”. Quando a palavra termina em “-r” no masculino e “-ra” no feminino, substitui a desinência por “-re”.

Exemplos: menine, psicólogue, pintore, professore

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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