Agentes Comunitários de Saúde tem atuação limitada por governos durante a pandemia

Por Alice de Souza, Alice Sousa, Andressa Marques, Ester Caetano, Jamile Santana, Kleber Nunes, Natali Carvalho, Rose Serafim e Thais Rodrigues

Por 26 anos, Maria Betânia da Silva cumpriu diariamente o mesmo ritual: sair de casa com bolsa, prancheta, papel, caneta e informações para mais de 800 famílias do bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife (PE). Sob chuva ou sol, batendo de porta em porta, trabalhou para a erradicação da cólera, na década de 1990, da filariose, no início deste século, e do controle do zika vírus, em 2016. Durante a pandemia de covid-19, pela primeira vez, foi retirada das ruas. 

Maria Betânia é agente comunitária de saúde (ACS), profissional que atua na ponta do sistema público, na Atenção Primária à Saúde (APS). Os agentes comunitários de saúde são pessoas que geralmente vivem nas comunidades onde atuam, por isso são considerados pontes entre a população e o restante dos profissionais das equipes de Saúde da Família. São fundamentais no rastreio de pessoas infectadas por covid-19, mas também na disseminação de informações sobre outras doenças.

Uma categoria fundamental para levar informações à população, os ACSs seguem negligenciados mesmo depois de um ano e cinco meses de pandemia. Entre janeiro e novembro de 2020, de acordo com dados do portal Informação e Gestão da Atenção Básica (e-Gestor), do Ministério da Saúde, a quantidade de ACSs atuando no país diminuiu 4,4%. A cobertura total da população brasileira no primeiro ano da pandemia reduziu de 63,30% para 61,13%. Se consideradas as capitais, somente cinco conseguiram aumentar a quantidade de agentes comunitários de saúde nas ruas entre 2018 e 2020: Salvador, Natal, Manaus, Macapá, Porto Velho, São Paulo e Curitiba. Mas se considerarmos apenas o primeiro ano de pandemia, 19 capitais brasileiras perderam  ACSs.

As maiores quedas de cobertura, segundo o painel do Ministério da Saúde, foram nas cidades do Rio de Janeiro e Aracaju, que diminuíram em mais de 10% o número de  profissionais nas ruas entre 2019 e 2020. A capilaridade dos agentes comunitários de saúde brasileiros chegou a ser mencionada pelo Imperial College London, no primeiro mês da pandemia, março de 2020, como um trunfo no enfrentamento à covid-19. Porém, esses trabalhadores só foram considerados essenciais há um ano, em julho. 

Mesmo assim, o Brasil não conseguiu retê-los na rede de atenção primária, como mostram os dados do portal Informação e Gestão da Atenção Básica (e-Gestor), e muitos passaram a trabalhar em condições precárias. Recife, onde Maria Betânia trabalha, perdeu cerca de 6 pontos percentuais de cobertura de ACSs na atenção primária. Na capital pernambucana, a cobertura que já foi de 67% da população em 2018, em novembro de 2020 era de 60%. Pouco mais de 2.000 ACSs da Prefeitura do Recife foram retirados das ruas. 

“Não houve nenhuma formação para os agentes atuarem no território, muito menos cuidado por parte da gestão. No início (da pandemia), ofereceram equipamentos sem qualidade, só quando o Ministério Público de Pernambuco soube da denúncia foi que melhoraram essa situação. A gente ficou perdido, o que pudemos fazer foi nos salvar, restringindo as visitas às famílias”, afirma Maria Betânia.

Para não perder totalmente o vínculo com os pacientes, ela informou o número pessoal do Whatsapp. É pelo aplicativo, com conexão custeada com dinheiro do seu próprio bolso, que ela tenta manter o trabalho de promoção da saúde até hoje. “É uma agonia, o celular não para. A verdade é que nessa questão do coronavírus nós fomos subutilizados. Com o nosso conhecimento do território poderíamos ter feito um trabalho importantíssimo, não na assistência quando o paciente já está doente e hospitalizado, mas na prevenção e no monitoramento, com certeza o número de infectados e mortos seria bem menor”, aposta.

Queda da cobertura de ACSs é apenas um dos déficits da atenção primária

A ausência dos agentes comunitários de saúde nas ruas é apenas um dos desafios enfrentados pela atenção primária em saúde (APS), que já sofre cortes desde antes da pandemia no Brasil. Para a médica sanitarista, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez, a atenção primária está fragilizada pela redução na aplicação de recursos públicos. “Por causa da PEC do teto de gastos (PEC 55/2016), o país entrou na pandemia com uma queda de R$ 20 bilhões no orçamento da saúde”, explica ela. 

Em algumas capitais, como Porto Alegre (RS), as consequências da PEC do teto de gastos já aparecem no total investido na atenção primária. Em 2020, segundo o relatório anual de gestão da Secretaria de Saúde da cidade, foram aplicados R$ 7 milhões a menos que em 2019 nas ações de ampliação e melhorias na atenção primária. O previsto para 2021 é de R$ 36 milhões, o que ainda não retoma os investimentos do período pré-pandêmico, que foi de quase R$ 38 milhões

Para o doutor em Saúde Coletiva e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Alcides Miranda, não houve preparação ou mobilização estratégica de pessoas, recursos e da rede de serviços de Atenção Primária (APS) no município para lidar com a pandemia. “Na ausência de iniciativas municipais significativas para investimentos, para a mobilização e para a realocação de recursos, a APS permaneceu em seu modo basal, subfinanciado”, diz. 

“Infelizmente não houve uma realocação de verba, pelo contrário, houve um desvio de recurso para o setor terciário, com a lógica de que a pandemia seria uma questão de hospitalização”, conta Cláudia Franco, presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Rio Grande do Sul (Sergs). Para a coordenadora-adjunta do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre, Ana Paula de Lima, a falta de investimentos teve impacto direto na diminuição da cobertura dos agentes comunitários de saúde. “Deixamos de atender todas as outras necessidades em saúde, que vêm se acumulando e que são tarefas também da atenção básica, como acompanhamento de diabetes e hipertensão, a questão de idosos, do atendimento da puericultura e do pré-natal.”

Em Natal (RN), há uma defasagem da cobertura de atenção básica de, aproximadamente, 50% e 60% da população. “Teria que dobrar o número de unidades para atingir a cobertura de 100%, que é o ideal”, afirma Sedru Cavalcanti, conselheiro Municipal de Saúde de Natal. Segundo ele, além de não serem suficientes para a demanda dos bairros, os postos de saúde ainda sofrem pela falta de segurança. Em 2021, duas UBSs foram assaltadas na capital potiguar. No primeiro episódio, ocorrido em março, os assaltantes tentaram levar doses de Coronavac. Em maio, houve um arrastão na UBS Candelária, na Zona Sul de Natal. De acordo com informações da Secretaria Municipal de Segurança Pública e Defesa Social, há uma patrulha que funciona 24h, e os gestores das unidades mantêm contato direto com a guarda. 

Erro de estratégia deixa APS vulnerável e com ação limitada na pandemia 

A falta de investimentos e planejamento no uso da força da atenção primária, mesmo após um ano e meio de pandemia, é uma situação que ocorre em todo o país, de acordo com a médica sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez. Com poucas exceções, como Araraquara (SP) e Niterói (RJ), o Brasil errou em não aproveitar o potencial da atenção básica no enfrentamento à pandemia, na avaliação dela, apostando de maneira equivocada na inversão da estratégia do SUS.

“É muito difícil combater epidemia só com respirador e leitos provisórios ou de terapia intensiva, isso não impede transmissão viral. Enquanto a vacinação não se completa, só é possível achatar a curva da epidemia com uma atenção primária forte, atuando diretamente na detecção precoce dos casos e fazendo o isolamento das pessoas de acordo com sua cultura de moradia”, explica. Recife, exemplifica, tinha 100% de cobertura do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF). “Hoje não chegamos a 30% de cobertura da cidade”, explica Bernadete.

No Distrito Federal, com uma população de quase 3 milhões de pessoas, há 6.500 profissionais nas equipes de saúde da família. As visitas em domicílios foram suspensas ou diminuíram com a pandemia. Lá, surgiu outro problema na atenção primária, a prescrição de medicamentos sem eficácia para a covid-19. Em Brasília, há relatos de pessoas que tomaram azitromicina, ivermectina e loratadina, receitadas nas UBSs, mesmo antes de receberem o diagnóstico. Uma servidora da Secretaria de Saúde, que preferiu não ser identificada, disse que foi à UBS na região de Vicente Pires. Os sintomas eram de sinusite e rinite alérgica que, segundo ela, são recorrentes. “Me foi receitado todas essas medicações e já mandaram eu iniciar mesmo antes do resultado. O resultado saiu 3 dias depois, negativo”. 

A reportagem foi até o Centro de Saúde nº 7, localizado no Setor O, em Ceilândia, e presenciou a mesma ação. Segundo o coordenador da Atenção Primária  da Secretaria de Saúde do DF, Fernando Érick, o órgão não prescreveu medicamentos do chamado “kit covid” para a população. “Nós não prescrevemos esses medicamentos. Não é uma prática da Secretaria de Saúde e são casos muito isolados”. Para a vice-presidente da Abrasco, ao abrir mão de qualificar a atenção básica, os gestores deixaram de evitar milhares de mortes por covid-19. 

Durante participação na CPI da covid-19, a médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck, enfatizou que a atenção básica está sobrecarregada e sucateada. Contudo, reconheceu que ações ainda podem ser feitas. “Agora temos as vacinas, que precisam ser garantidas para toda a população e com celeridade, além de garantir que os SUS tenha condições de tratar do futuro da pandemia, das suas sequelas, e, ainda, que seja capaz de enfrentar outras pandemias”, conclui. É o que também defende Bernadete Perez. “Ainda dá para fazermos alguma coisa pelo fortalecimento da atenção básica, colocando-os para atuar na busca ativa de quem precisa ser imunizado e no atendimento dos pacientes com sequelas da covid-19”, analisa. 

Enquanto a APS não é priorizada, os profissionais de saúde da atenção básica correm para cuidar da população. Sheyla Vasconcelos, enfermeira na Unidade de Saúde da Família Tia Regina, na periferia da zona norte recifense, segue trabalhando com equipe desfalcada. Junto aos colegas, Sheyla produziu vídeos curtos para serem espalhados por meio do Whatsapp e comprou uma caixa de som que fica ligada em frente a USF. “Em 17 anos de carreira, não lembra ter vivenciado nada igual.”

“Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative. As informações foram apuradas de forma colaborativa entre os veículos Agência Saiba Mais (RN), Nonada (RS), Congresso em Foco (DF), O Povo (CE), Sul21 (RS) e Marco Zero Conteúdo (PE).”

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Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
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