Ingrid Silva/Sucom-UFPR

“O racismo sempre fez parte do meu acolhimento no Brasil”, diz autor haitiano

Thaís Seganfredo

Foto: Ingrid Silva/Sucom-UFPR

Em um trecho do livro digital “Narrativas: Exílios e Encontros”, Russel Cerilia lembra um episódio de sua infância no Haiti em que foi recompensado pelo pai por revelar algo que havia feito errado, mostrando a verdade sem medo de encarar as consequências. Foi neste momento que o menino de então 14 anos virou adulto aos olhos de seu pai. “Eu sempre sonhei ser historiador para poder escrever como meu pai”, escreve Russel, que atualmente vive e trabalha em Pinhais, no Paraná. 

Hoje, ele estuda Administração na UFPR e é co-autor de um livro autobiográfico ao lado de outros cinco migrantes: Gloire Nkialulendo (República Democrática do Congo); Myria Tokmaji (Síria), Russel Cerilia (Haiti), Maiker Gutierrez e Ninoska Pottella (ambos da Venezuela). Mais do que contar histórias de imigração ou falar sobre a vivência dos autores no Brasil, o projeto põe em perspectiva as diferenças e singularidades sob a perspectiva da memória dos países de origem. 

“Nos incomoda muito o fato de as e os migrantes serem vistas e vistos como uma massa, como uma coisa só, como se todo mundo que migra tivesse a mesma história. Isso tira a identidade, a história de cada uma das mais de 82 milhões de pessoas refugiadas pelo mundo”, explica a mestra em Estudos Linguísticos Carla Alessandra Cursino, idealizadora do projeto ao lado da também pesquisadora Bruna Ruano. 

Selecionado pelo edital Rumos Itaú Cultural, o projeto envolveu processos de capacitação artística e criação que originaram o livro digital disponível gratuitamente no site. Respeitando a pluralidade linguística das diferentes trajetórias relatadas, cada relato é registrado em português e nas línguas maternas dos autores, entre elas árabe, espanhol, crioulo haitiano e francês.

Além de um livro de memórias, os escritos também trazem perspectivas sobre viver em diferentes regiões do Brasil. “Um país feito de imigrantes”,  descreve Russel, que alçava uma carreira política depois de ajudar na reconstrução do país devido ao terremoto e teve que deixar sua terra por causa das eleições. Hoje pai de uma criança brasileira, ele relata em entrevista ao Nonada que sua vivência no Brasil é atravessada pelo racismo. “O caso do Moïse é só a ponta do iceberg. Quantos casos ficam escondidos do grande público? É que uma parte dos imigrantes do Brasil pensam que são mais legítimos do que outros”, questiona. 

Com o olhar analítico de quem poderia escrever muito sobre o Brasil, ele dá uma sugestão aos leitores:  “Às vezes, tenho a impressão de que essa sociedade nos toma todos como recém-nascidos. Gostaria de sugerir a todos os brasileiros a ir além do que as pessoas dizem sobre a imigração e entender que a raiz do Brasil é feita pela migração”, pede. 

Confira a entrevista completa:

Foto: Brunno Covello/projeto Narrativas

Nonada Jornalismo – O que você quis passar no livro? O que você queria que os brasileiros soubessem sobre sua trajetória? 

Russel Cerilia  – Primeiro, acho importante ressaltar que o Brasil é um país feito de imigrantes. Nem todos são conscientes disso. Eu queria falar de mim como uma pequena parte do Brasil, do mundo, na verdade. Falar da minha história: meu pai, minha mãe, minhas lembranças e escolhas. Mostrar a toda a comunidade brasileira que um migrante carrega uma história atrás dele, aliás como todo mundo mesmo. Porque às vezes, tenho a impressão de que essa sociedade nos toma todos como recém-nascidos. Como dizia o escritor e acadêmico Dany Laferrière: Albert Einstein pode vir ao Brasil hoje, por exemplo, se ele não fala português, as pessoas o consideram como um idiota e esqueçam que é o cara que descobriu a relatividade do tempo. 

Nonada –  Como você vê a presença dos imigrantes e refugiados no Brasil hoje? Infelizmente tivemos recentemente o caso do Moise Kabagambe (do Congo) que mostra como somos um país xenófobo. Você já passou por experiências negativas aqui? 

Russel – Experiência negativa, na vida, todos nós passamos. Aguentamos focalizando nas coisas boas; um belo sorriso de um completo estranho na rua, uma boa notícia, amigos, nossa família. Mas o que acho mais esquisito da minha experiência no Brasil até agora é que meu dia-a-dia é feito de experiência negativa, seja no trabalho, na escola, no ônibus ou em qualquer lugar o racismo sempre faz parte do meu acolhimento. Infelizmente é por toda parte! Então, fica difícil se concentrar na parte boa do Brasil ainda hoje. Difícil para imigrantes negro verem a cultura brasileira atrás do racismo institucional. Já disse que deveríamos lembrar que o Brasil é um país de imigrantes. Então de onde vem que o racismo está tão presente, tão forte aqui? 

O caso do Moïse é só a ponta do iceberg. Quantos casos ficam escondidos do grande público? É que uma parte dos imigrantes do Brasil pensam que são mais legítimos do que outros. Daí os índios, os verdadeiros moradores dessa terra, são obrigados a ficar no fundo da Amazônia, os negros e moradores das favelas geralmente no pedestal da sociedade. Pior que a gente está na América por causa da escravidão. Nada muda desde os séculos passados na realidade do mundo. Hoje é o sistema capitalista maluco que perpetua a violência de cor. O capital é o único interesse do sistema e o resto foi inventado para manter a massa na confusão, no lugar, inclusive a diminuição de gente como nós é a violência. Para terminar aqui, o que acho bem interessante, contraditório, é a xenofobia no Brasil, tipo estrangeiros que detestam estrangeiros.   

Nonada – Gostaria que você falasse um pouco sobre pertencimento. Nesse país de dimensões gigantescas que é o Brasil, você se sente brasileiro? Qual a sua visão do Brasil? 

Russel – Não me sinto brasileiro, não! E nunca vai mudar. Porque sou haitiano, preto, crioulo e isso faz parte da minha identidade. Em relação a dimensões gigantescas que é o Brasil, em primeiro lugar, devo dizer que é um país maravilhoso, com muitos lugares bacanas, de uma grande variedade cultural, um país rico que tem um papel estratégico na América do Sul. Em segundo lugar, um pensamento no passado, imaginando como os escravos do século passado tinham uma vida difícil para se organizar contra a babárie da escravidão praticada pelos portugueses. Por fim, gostaria de sugerir a todos os brasileiros a ir além do que as pessoas dizem sobre a imigração e entender que a raiz do Brasil é feita pela migração.  

Nonada –  Como é para você preservar as memórias e vivências do seu país de origem? Além da escrita desse livro, por exemplo, como você procura manter viva sua memória do passado? 

Russel – Uma das maneiras de manter as memórias do passado é transmiti-las através de geração em geração. Eu costumo falar que meu filho que nasceu aqui no Brasil é brasileiro no documento, o que significa para mim que eu estou passando tudo que eu tenho como valor, crença, cultura para ele e vai ser assim sucessivamente.  

Nonada –  Pretende continuar escrevendo depois deste projeto? 

Russel – Claro que sim, mas no contexto diferente. De um lado, como sou uma pessoa que gosta de ler e a leitura é algo que provoca a escrita, cedo ou tarde vou iniciar mais uma obra coletiva ou pessoal. Por outro lado, escrever é algo que está no meu DNA, que faz parte da cultura, porque meu pai já é autor de duas obras. Como [também] meu irmão, com uma nova publicação que ele escreveu durante a pandemia. Afinal, eu vejo a continuação nesse ramo como um processo de gravidez de uma mulher. Cedo ou tarde vai nascer uma obra minha de qualquer forma, porque minhas preocupações e obrigações são muitas.  

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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