Quadra da Imperadores do Samba (Gisele Endres/Nonada)

A volta da festa e o direito à folia: uma conversa com Luiz Antonio Simas

Não teve surdo, confete, tamborim. Não teve fantasia, não teve brincante. As ruas ficaram vazias neste carnaval (quase) pós-pandemia de 2022, embora alguns foliões tenham arriscado blocos clandestinos em cidades como o Rio de Janeiro.  No país todo, prefeitos e governadores adiaram a volta da folia, com o argumento de que a pandemia não havia acabado.  O que se viu foi naqueles quatro dias de uma  aguardada catarse coletiva foi uma tentativa de privatizar o carnaval, que ocorreu em bares e clubes fechados, em paralelo a megashows e grandes festivais. 

Em Porto Alegre, poucos dias depois de uma quadra de escola de samba ser fechada pela polícia, um evento estranho tomou conta das ruas de um bairro hypado da cidade: o Saint Patrick’s Day, feriado tradicional da Irlanda, ganhou espaço no calendário oficial dos 250 anos do município. O público, formado majoritariamente por brancos, explorou as ruas do chamado Quarto Distrito – região que antigamente abrigava o operariado industrial -, com aval da prefeitura e cerveja artesanal premium. 

Enquanto isso, o povo do carnaval ainda espera seu direito à festa, com a paciência de quem já viveu muitas vezes tentativas de silenciamento. Depois de dois anos de preparo, o carnaval das escolas de samba vai voltar em cidades como Rio, São Paulo e Porto Alegre no feriado de Tiradentes ou do Dia do Trabalhador. Mas brincantes e profissionais da cadeia do carnaval de muitas outras cidades, desestruturados pela interrupção dos recursos públicos, por exemplo, vão ter que esperar ainda mais.

Conversamos com o historiador e professor Luiz Antonio Simas sobre o carnaval, a relação do Brasil com as ruas, o samba e o peso dos governantes no cerceamento à folia. “O poder público é um agente, em larga medida, na maioria das vezes (exceções confirmam a regra), de produção incessante de desencanto nas cidades. O Brasil sempre viveu um embate entre um país que se pretende ocidental, de recorte europeu, civilizado, ligado ao imaginário da tradicional família cristã, e um Brasil que pulsa nas brechas desse muro de exclusão, um Brasil que reconstrói nas frestas esse sentido de vida”, explica.

Autor de livros como O Corpo Encantado das Ruas (Record, 2019) e Maracanã: quando a cidade era terreiro (Mórula Editorial, 2021), o historiador também falou sobre a volta da festa com o fim da pandemia e a mercantilização da cultura. “Eu acho que a relação do brasileiro com a festa está inserida dentro de um processo muito mais amplo, que é o processo de reconstrução de um certo sentido coletivo de vida. A correria da vida, os corpos domesticados dentro da lógica do trabalho, o consumo exacerbado que marca os fundamentos da nossa sociedade, tudo isso gera um despertencimento em relação àquilo que nos constitui como comunidade, e a festa é uma instância de reconstrução desse sentido”, diz.

Confira a entrevista na íntegra:

Nonada Jornalismo – Você e sua obra sempre começam nas ruas. O que acontece com um Brasil que sistematicamente não presta atenção nas presenças encantadas da Rua? 

Luiz Antonio Simas – Eu não sei se o Brasil não presta atenção nas presenças Encantadas das ruas ou intencionalmente tenta abafar essas presenças exatamente porque tem alguma noção do que elas são. E é interessante a gente estabelecer que quando eu falo do Brasil nesse sentido é um Brasil institucional, é um Brasil oficial, é um Brasil representado pelos donos do poder, um projeto que ao longo dos tempos  se mantém em sua em sua natureza absolutamente excludente. 

E a reconstrução da vida nas ruas opera numa dimensão que incomoda esse Brasil institucional. A dimensão da vida nas ruas é uma dimensão que restaura uma certa ideia de coletividade, restaura uma certa ideia de protagonismo, restaura uma certa ideia de autonomia de personagens que o Brasil oficial tenta eliminar o tempo inteiro. Eliminar mesmo, de forma literal, ou então esconder, camuflar ou domesticar. De toda forma, me parece que as ruas são sintomas das nossas disputas e me parece que é intencional esse projeto de aniquilação, de domesticação, de exclusão, de desencanto, que tenta tirar das ruas toda a possibilidade de vida que elas oferecem.

Luiz Antonio Simas (Walter Craveiro/Flip)

Nonada – O brasileiro já havia ficado tanto tempo sem Carnaval antes? Com mais essa suspensão que ocorreu devido à variante Ômicron, quais os impactos para a cadeia do carnaval?

Simas – A história do carnaval no Brasil nunca foi a história de um consenso, sempre foi uma história de disputa. Então se a gente vai para o século 19, pro Rio de Janeiro, que é o que eu conheço melhor, tivemos, por exemplo, um carnaval de grandes sociedades, o qual tinha uma perspectiva mais vinculada ao padrão do carnaval europeu, de Veneza, de Nice, e esse desfile das grandes sociedades era tensionado pela presença nas ruas dos cordões, das manifestações populares do carnaval. Então o carnaval sempre foi tensionado nessa dimensão da disputa. 

Aconteceram tentativas de adiar o carnaval no governo do Floriano Peixoto, com um argumento sanitário também, de que o carnaval proporcionava uma proximidade das pessoas no verão que poderia ser um disseminador de epidemias. Quando morreu o Barão do Rio Branco em 1912, houve a tentativa de adiar o carnaval, por conta do luto pela morte do Barão. Nos dois casos, as pessoas ignoraram os adiamentos, e o carnaval aconteceu. Nós temos o carnaval da gripe espanhola, que é muito famoso, e na década de 1920, houve uma tentativa de eliminar o carnaval do calendário do Rio de Janeiro.

Mas o que me parece que aconteceu neste ano é um pouco mais profundo. Me parece que houve uma argumentação sanitária que poderia fazer sentido se viesse acompanhada também de restrições às demais manifestações marcadas para esse período do ano. Mas, no fim das contas, houve uma restrição deliberada que teve um foco praticamente exclusivo no carnaval, o que me faz crer, portanto, que ultrapassa a questão sanitária – e repito que seria justificável o adiamento por questões sanitárias -, mas mergulha de novo nas questões que envolvem preconceito contra o carnaval e a percepção do carnaval como uma festa perigosa, porque isso é uma constante na história do Brasil.

Há uma cadeia produtiva do carnaval que é muito importante. Se a gente pensar em escolas de samba, estamos falando de costureiras, funcionários de Barracão, escultores, ritmistas. Estamos falando de mestre-sala, porta-bandeira, estamos falando das cozinheiras, do povo que coloca as suas barraquinhas fora da quadra das escolas de samba em dias de ensaio. Se falar do carnaval de rua, tem o técnico de som, o pessoal que vende a sua bebida. Há uma cadeia produtiva que foi violentamente atingida pelas restrições. 

Nonada – Em Porto Alegre, várias quadras que ficam na beira do lago Guaíba estão ameaçadas porque a região vive um processo de gentrificação. Escolas de samba e terreiros são instituições de invenção, de identidades comunitárias e construções de sociabilidades. Construir grandes torres envidraçadas onde é lugar de tambor é uma imagem que diz bastante sobre a orientação dos nossos tempos. Como você avalia essa relação entre o poder público e lugares como a Escola de Samba e o Terreiro? Por que tantas tentativas de criminalização desses espaços? 

Simas – O poder público é um agente, em larga medida, na maioria das vezes (exceções confirmam a regra), de produção incessante de desencanto nas cidades. A gente precisa entender o Brasil como essa disputa. Isso é uma questão fundamental, nós temos um Brasil, que na transição da Monarquia para a República, aprofunda um projeto que na monarquia está muito presente — evidentemente, a escravidão é a marca mais impactante da nossa formação. A República, quando chega, ao invés de trabalhar num contraponto ao projeto de exclusão colonial do Império, redefine esse projeto em outras perspectivas. E o Brasil sempre viveu um embate entre um país que se pretende ocidental, de recorte europeu, civilizado, ligado ao imaginário da tradicional família cristã, e um Brasil que pulsa nas brechas desse muro de exclusão, um Brasil que reconstrói nas frestas esse sentido de vida.

Os espanhóis, quando chegaram para conquistar a América, costumavam erguer as suas igrejas em cima de templos das religiões pré-colombianas. Então é proposital. O ataque a essas instâncias é proposital. Dou um exemplo do Rio de Janeiro, quando me perguntaram numa ocasião quais lugares eu considerava mais emblemáticos para a história do samba do Rio de Janeiro, eu citei cinco lugares e quando terminei de citá-los, eu percebi que os cinco que eu tinha citado já não existiam mais. Eles foram destruídos em reformas urbanas. Um você pode dizer que foi um descaso, dois você pode dizer que foi um infortúnio. Mas todos? É um projeto. E a gente tem que ir para o enfrentamento, não tenha dúvidas, porque é a disputa entre o território desencantado e o terreiro. Há um componente simbólico aí que é muito impactante e que a gente precisa combater. Porque o projeto é esse. Nós precisamos lidar com ele e elaborar estratégias de contra-ataque.

Quadra da Escola Bambas da Orgia, em Porto Alegre (Louise Soares/Nonada)

Nonada – Outra relação que mudou com a impossibilidade das festas de rua, foram as festas de fé que precisam se reestruturar. Como o Círio de Nazaré em Belém, por exemplo. O círio reúne muitos elementos que tu trazes em tuas falas. Tem o rito, a maniçoba de domingo que reúne as famílias, a festa, a decoração da cidade e das casas. As grandes procissões não aconteceram, mas os ritos miúdos seguem. Essas miudezas provisórias são formas de resistir? 

Simas – Eu acho que essas miudezas provisórias são mais do que formas de resistir, são formas de inventar a vida. Eu desconfio um pouco do conceito de resistência para falar dessas festas. Eu não estou negando a dimensão da resistência, que é fundamental, mas a resistência me traz uma impressão de alguma coisa que é sempre pautada por aquilo que o outro coloca. Mas eu acho que essas festas vão além da resistência. Elas instauram formas sofisticadas de invenção do mundo. Invenções cotidianas, invenções no amiudamento. E essas festas religiosas são pródigas nesse tipo de coisa, até porque eu acho um pouco difícil no Brasil a gente delimitar o que é uma festa religiosa ou o que é uma festa profana, porque uma característica que nós temos do Cristianismo popular brasileiro é essa profanação do sagrado e essa sacralização do profano, a ponto de em um certo momento você não saber mais onde começa uma coisa e onde termina a outra. E o Círio de Nazaré, como outras festas da fé, é emblemático desse processo.

Nonada – No geral, várias festas populares foram suspensas desde a pandemia. Como deve ficar a relação do brasileiro com a festa quando (e se) a pandemia acabar e voltarmos para a rua? 

Simas – Eu acho que nós vamos voltar para a rua, estamos voltando. A pandemia vai acabar, não sei exatamente quando ou como, mas vai acabar. Eu acho que a relação do brasileiro com a festa está inserida dentro de um processo muito mais amplo, que é o processo de reconstrução de um certo sentido coletivo de vida, porque a festa ocupa essa função. A gente vive numa sociedade excessivamente vinculada à individualização, [que] desconecta o indivíduo de suas referências coletivas mais profundas. A correria da vida, os corpos domesticados dentro da lógica do trabalho, o consumo exacerbado que marca os fundamentos da nossa sociedade, tudo isso gera um despertencimento em relação àquilo que nos constitui como comunidade, e a festa é uma instância de reconstrução desse sentido.

Por isso eu creio que as festas vão estar aí. Como estarão é uma coisa que eu não sei, até porque a gente tem que ficar muito atento a uma encrenca que existe, a uma certa confusão que é feita entre a festa como o evento da cultura e a festa como a cultura do evento. A cultura do evento é aquela que não é orgânica, é aquela que mensura tudo a partir da dimensão mercantil, da mercadoria. Então a festa vira mercadoria, os corpos em festa viram corpos consumidores dessa mercadoria. Enquanto a festa como um grande evento da cultura é aquela orgânica, que está inserida num processo de maturação, que passa de geração pra geração, que não é estática evidentemente, porque ela se transforma. Mas ela, de certa maneira, dá sentido à vida das comunidades. Então eu acho que a gente vai retomar as festas, [mas] dentro de tensionamentos, porque a nossa história é feita muito mais de tensionamentos do que de consensos. E a festa também é o tempo todo tensionada.

Nonada – Apesar de tudo, o samba segue firme. Como você vê a nova geração de sambistas que está vindo aí? E como você vê esse movimento do samba atualmente fora do eixo Rio-São Paulo?

Simas – Quando me perguntavam, por exemplo, na época em que lancei com o Neil Lopes “O dicionário da história social do Samba”, se o samba surgiu na Bahia ou no Rio de Janeiro, eu dizia: o carioca, no Rio de Janeiro; o baiano, na Bahia. Da mesma maneira, tem o samba pernambucano, o coco nordestino, tem o samba de bumbo paulista, o batuque de Pirapora de Bom Jesus. Tem toda a tradição dos candombes do sul do Brasil. Tem uma tradição de musicalidade negra que está vinculada também às formas em que o samba é dimensionado muito interessante. E eu vejo com muito muito atenção e com muita expectativa, muita gente fazendo samba, uma garotada fazendo samba. 

E o samba dialogando com outras manifestações da música. Eu não sou definitivamente um purista. O samba só continua vivo até hoje porque soube dialogar com o que está em torno dele e dialogar soberanamente. Esse é o fundamento da tradição, a capacidade de você se transformar preservando. A tradição é isso, ela não é congelada, [porque] a ancestralidade pressupõe sentido contemporâneo. A gente faz uma certa confusão entre o que é antigo e o que é ancestral. O que é antigo é o que ficou no tempo; o que é ancestral é o que está lá atrás, mas continua fazendo sentido hoje e fará sentido amanhã. O samba tem essa dimensão, então é ótimo que ele esteja aí se espalhando, dialogando com vários estilos, uma garotada nova fazendo samba em tudo quanto é lugar do Brasil e fora do Brasil também. A história do samba é feita dessa vitalidade, desse vigor e dessa capacidade de preservar ao mesmo tempo em que se transforma.

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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