Estreia de Lázaro Ramos na direção, Medida Provisória mostra que a distopia é agora

Como construir o país que queremos para o futuro? A mesma pergunta que define um 2022 pautado por decisões políticas também ecoa em Medida Provisória, filme de estreia de Lázaro Ramos na direção, que será lançado no dia 14 de abril nos cinemas. Longe de ser eleitoral, no entanto, o filme é corajoso ao satirizar como o racismo representa um dos principais problemas que o país enfrenta atravessando diversas esferas, da econômica à privada, sem poupar críticas ao papel que nós, brancos, assumimos por omissão ou ação nessa lógica opressiva.

Medida Provisória se passa em um futuro distópico no qual o progressivo – mas aparentemente lento – avanço do antirracismo nas políticas públicas do Brasil é interrompido por uma Medida Provisória (MP) publicada pelo governo, um ato vertical sem qualquer consulta pública: toda a população preta e parda do país é “convidada” a migrar para o continente africano. As coisas aceleram rápido e o que parecia ser uma ideia esdrúxula e risível logo vira uma medida autoritária e violenta que expurga os negros do país. 

A obra é baseada no espetáculo Namíbia, Não!, do ator e dramaturgo baiano Aldri Anunciação, que estreou em 2011 com direção do próprio Lázaro conquistando prêmios como o Jabuti.  “Entendemos logo que ali havia uma ideia muito original e que trazia debates importantes, principalmente no momento histórico que estávamos vivendo, momento em que a população negra no Brasil estava discutindo intensamente o seu espaço de formação de identidade, direitos e deveres”, escreve Lázaro no livro Diário do Diretor (editora Cobogó) no qual ele conta sobre o processo de produção do filme.

Transfigurado para as telas do cinema e lançado neste ano de revisão da Lei de Cotas, Medida Provisória mostra que a distopia da violência contra a população negra sempre foi realidade. Por mais positivos que pareçam os avanços sociais, eles nunca estão garantidos, e esta é uma das principais mensagens da obra. 

Taís Araújo e Alfred Enoch (Foto: divulgação)

Provocador, o roteiro assinado por Lázaro e Lusa Silvestre traz um subtexto que dialoga com as reviravoltas político-jurídicas com as quais o Brasil se acostumou nos últimos anos. Afinal, a Medida Provisória 1888 (em alusão ao 13 de maio), devidamente ajustada pelo Judiciário, é fundamentada em uma lógica vil e distorcida de que o programa seria uma reparação histórica para os negros, uma espécie de direito inerente, tal qual a “integração dos povos indígenas” defendida pelo governo atual.  

Depois de um primeiro ato acelerado que introduz tanto o cenário político-social do enredo como também algumas das inúmeras referências culturais que marcam a essência do filme, o restante do longa é um coeso suspense centrado na vida de três personagens principais que vivem na cidade do Rio de Janeiro. Em um espaço de algumas semanas, acompanhamos as trajetórias da médica Capitu (Taís Araújo) e de seu marido, o advogado e articulador de políticas públicas Antônio Rodrigues (Alfred Enoch), além de André (Seu Jorge), jornalista independente e primo de Antônio, cada qual com seus dilemas internos e suas próprias estratégias de sobrevivência.

Há lugar também para um desfile de arquétipos do jogo político, do ministro que vê a esfera pública como escalada para sua carreira à secretária pretensamente a favor dos direitos humanos que acaba contribuindo para acentuar a política de exclusão, papel que coube a Adriana Esteves. E se, em especial, é representativo o protagonismo de Antônio na luta pelo direito básico de decidir sobre a própria vida, é no afrobunker que se encontra a alma de Medida Provisória.

O afrobunker de Medida Provisória (Foto: divulgação)

Inspirado nos quilombos, o afrobunker representa resistência e o ideal possível de uma outra forma de sociedade, horizontal e igualitária. É potência, luta, esperança e amor concentrados em poucos metros quadrados de uma quadra de escola de samba. “Quando o carnaval foi proibido, começamos a vir para cá”, diz um dos aquilombados, revelando que o local é também uma espécie de salvaguarda do patrimônio cultural negro no Brasil. 

No livro Diário do Diretor, Lázaro relatou um pouco de como foi a construção dos personagens deste núcleo do filme: “Nós nos juntamos na sala [no Afrobunker] e oferecemos personagens a cada um deles: advogada, cristão, candomblecista, adolescente, bombeiro, YouTuber, vendedor ambulante… Assim fomos construindo um ambiente onde havia diversidade. A proposta era fazer um laboratório criativo de um dia com esses atores, imaginando o que aconteceria se a medida provisória fosse realmente decretada e se esse neoquilombo de fato existisse. Como cada personagem se comportaria nesse ambiente, nesse esconderijo?”

É uma pena, porém, que o filme dedique poucos minutos, entrecortados com a trama principal, para desenvolver o arco narrativo do afrobunker. Não há espaço para que o público conheça mais de cada personagem nem para conhecer melhor o esconderijo e a riqueza cultural que ele guarda, mas o núcleo poderia ser melhor desenvolvido em uma continuação do filme, ou quem sabe, uma série própria. 

Contando com uma direção de arte sóbria e detalhista – prestem atenção nos prédios públicos sucateados que aos poucos vão recebendo também instrumentos musicais afrobrasileiros confiscados -, Medida Provisória é uma estreia que poderia render muito mais horas de audiovisual, tamanho o universo proposto por Lázaro e tamanha a complexidade das questões abordadas no filme. É, sobretudo, uma obra importante para gerar reflexão sobre a violência que assola cotidianamente a vida da população negra e o que nós, enquanto cidadãos em um sistema democrático, podemos fazer sobre isso.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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