Paula Cruz/editora Tusquets

O Parque das Irmãs Magníficas revela o fantástico em ser travesti

O Parque das Irmãs Magníficas é um daqueles raros livros que possuem a capacidade de apresentar uma prosa realmente original a partir de um olhar que confere um sentido fantástico à vida dos personagens. Lançado em 2019 na Argentina, a obra saiu aqui no Brasil em junho do ano passado pela Tusquets (e reeditada pela TAG) e traz a história da jovem Camila, uma travesti em descoberta que sai do interior da Argentina para a cidade de Córdoba, a fim de começar a faculdade. Lá, acaba sendo acolhida por um grupo de travestis, liderados pela imponente Tia Encarna. 

A novíssima literatura contemporânea vale-se muito da experiência e das trajetórias individuais que refletem um grupo — principalmente os que foram marginalizados por muito tempo. Logo, a memória e a vivência coletiva são transformadas e transformadoras, sendo mimetizadas em palavras. A autora Camila Sosa Villada tem uma trajetória que se confunde com a protagonista do seu livro. Ela também saiu do interior para cursar a faculdade de comunicação em Córdoba, e também foi acolhida por um grupo de travestis. 

É famosa sua participação em uma palestra de ted talk na Argentina na qual relata momentos importantes de sua vida. Atualmente, além de escritora, ela tem um carreira consagrada como atriz e diretora. Embora o livro conte com vários traços autobiográficos, Villada normalmente nega em entrevistas que a história seja apenas sobre a sua trajetória, ou que a retrate fielmente. Obviamente, a obra se trata de uma ficção na qual a autora coloca a sua lente colorida e furiosa para iluminar e inventar parte do mundo que presenciou. 

E é uma lente deliciosa de acompanhar principalmente em suas descrições muito vivas das travestis que compõem o grupo, e de outras que circulam pela cidade de Córdoba. Cada uma com características marcantes e que refletem as suas experiências de vida. Há um entusiasmo encantador em seus altos e baixos, que são tão constantes. Ser uma travesti não é fácil, e o livro não esconde todas as armadilhas violentas que as ruas podem apresentar. Afinal, muitas continuam sendo perseguidas e assassinadas apenas por existirem. O Brasil, por exemplo, segue sendo o país que mais mata pessoas trans, conforme o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA +.

Villada é muito astuta em montar a narrativa alternando passagens entre o dia a dia da personagem principal nas ruas da cidade, convivendo na casa de Tia Encarna ou com diferentes tipos de clientes, ao mesmo tempo que vai costurando lembranças de sua infância e a presença alarmante do pai. Suas primeiras descobertas também aparecem, o que traz uma diferente camada mais profunda à trama. 

A lente de Camila mostra como essas personagens podem ser ao mesmo tempo tão magníficas quanto ásperas quando necessário, tendo que lidar com os problemas e os preconceitos que as perseguem. Tia Encarna talvez tenha a história mais dramática do livro. Logo no início, ela encontra um bebê no parque a qual nomeia de “O Brilho nos olhos”, e isso a afeta ao longo de toda a jornada, ou melhor, afeta ainda mais como a sociedade a vê e a julga. O modo como as outras travestis orbitam ao seu redor, e são influenciadas por ela denota a importância dessa figura “orientadora”, que ajuda em suas formações, funcionando também, pelo menos por um tempo, como uma rede de segurança.

Villada cria essa narradora que mantém um olhar constante de deslumbramento para as outras travestis, mesmo quando há amargura. É disso que nasce o fantástico na obra, quase que naturalmente. É como assistir a um documentário cujo estilo é uma animação colorida, e o tema oscila entre uma doce afetividade e uma cruel brutalidade. E, por isso, nos toca tanto a ponto de criar uma empatia quase imediata com a maioria das personagens. O Parque das Irmãs Magníficas  é esse livro que sabe se inventar a cada nova página, porque essa também é uma das características de ser travesti. Novas palavras precisaram ser criadas e a boa literatura sempre vai acompanhar.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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