Foto: Anna Ortega/Nonada

Em exposição, artista e professor questiona censura e imagina escola que foge da padronização

A escola é um dos primeiros lugares em que se aprende a ser o que se é. Muitas vezes, o processo passa não pela identificação e acolhida, mas pela sensação de não-pertencimento a uma estrutura normativa, homogeneizadora. O modelo de escola que a maioria de nós tem acesso é lugar hostil para as diferenças. Aquele que “desliza” – que foge ao código do certo, que se comporta de maneiras não previstas – tende a ser visto como problema. Em diálogo com crianças e professores “deslizantes”, o artista e educador Bruno Novaes (São Paulo, 1985) apresenta a exposição Complete as lacunas, aberta para visitação até 4 de junho no Espaço Força e Luz (R. dos Andradas, 1223).  O artista reúne trabalhos em diferentes suportes (fotografia, instalação, desenho, vídeo) que olham de forma crítica ao ambiente escolar e tensionam temas como a repreensão e censura a professores. 

Licenciado em Arte, pela Faculdade Belas Artes de São Paulo, e especializado em Artes Visuais, pela UNESP, Bruno leva ao espaço expositivo questões que o inquietam na sala de aula enquanto professor. “Penso muito na criança deslizante, na criança queer, que precisa, em algum momento, inventar um mundo, porque o que existe vai apontando pistas de que não foi feito pra ela”, explica.

Como elemento central na exposição está o corpo. O artista, atento aos outros sentidos contidos nas palavras, nos faz estranhar uma que é tão comum: corpo docente, corpo discente. Falada o tempo inteiro, nos faz pensar ‘será que existe mesmo lugar para os corpos dentro da escola?’. “Quando você pensa dentro da sala de aula, você vai percebendo quanto que a escola é feita pra gente não se corporificar ali dentro. Já parte da ideia de um saber que é ensinado de cabeça pra cabeça, de intelecto para intelecto”, reflete. “Você vai ficar sentado, comportado na sua carteira. O professor vai ficar ali na frente, vai se vestir de um jeito que não mostre nada além do saber dele. As crianças vão ser todas uniformizadas também para que esses desvios de atenção não aconteçam.” 

Muitos dos trabalhos partem da autorreferência para encontrar outras vozes. Em 2017, Bruno foi demitido inesperadamente da escola onde lecionava. A carta do desligamento se torna obra, intitulada Jogo dos Erros e é exibida na exposição em um díptico que deixa em aberto o que é real e o que é ficcional. O artista provoca a distância entre o discurso oficial e não-oficial sobre a demissão.

Exposição “Complete as lacunas”. (Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

O acontecimento é também ponto de partida para que o artista comece a procurar relatos e depoimentos de outros professores que tenham sido censurados e/ou discriminados. Em Corpo Decente, é possível escutar as vozes desses educadores, que adentram o espaço contando aquilo que é silenciado, mantido no privado. “São professores com experiência em diferentes tipos de ensino, com diferentes públicos e disciplinas. O embate entre a figura do professor e a pessoa acaba aparecendo em todos eles”, conta. Os relatos convergem para uma sistemática tentativa de apagamento das identidades e subjetividades de quem ensina e para a perseguição. 

O som acompanha o giz. Voz e corpo do professor em sala de aula. Depois de algumas montagens da instalação – entre elas a que aconteceu no início do ano na Casa De Cultura em Porto Alegre, durante o Circuito Latino Americano de Arte Contemporânea – Bruno percebeu que o giz em grande quantidade somava 70kg, o peso de adulto médio. O corpo vai e volta na poética, parecendo uma constante lembrança que ele existe – para o adulto e para a criança. 

Inventar a escola 

(Foto: Anna Ortega/Nonada Jornalismo

Em uma das salas da mostra, o público encontra um espaço para sentar e desenhar. No plano baixo, próximo ao chão, a obra-instalação Folha de Atividades remonta uma aula de ciências, em que o tema é o próprio corpo. Distanciando-se das imagens só biológicas e padronizadas, a instrução é que se possa desenhar livremente .O trabalho mexe, inclusive, com os códigos dos ambientes de arte, de modo geral. Assim como a escola, o museu também tem suas formas restritas, por vezes não ditas, mas replicadas: falar baixo, não tocar em nada, não sentar no chão, ficar a uma distância segura das obras. Nessa fusão de lugares, escola-museu, há uma relação proposta, um convite à participação. Os desenhos feitos pelo público ficam exibidos em um varal, se o visitante quiser expor. 

Não é a primeira vez que o artista propõe uma experiência escolar. Em 2021, Bruno iniciou o projeto Escola de Faz-de-Conta, em São Paulo. Dividida em módulos, a escola foi construída do zero, por ele e outras pessoas que foram somando-se ao projeto. A primeira etapa foi uma oficina de marcenaria, em que desenharam e confeccionaram o que seria a mobília e a arquitetura escolar construídas em coletivo. O projeto partiu da percepção de Bruno de que ele já estava, de alguma maneira, construindo um acervo, uma documentação e uma experiência de escola ficcional com seus trabalhos artísticos.  

Depois de pronta, uma série de encontros foi organizada durante um semestre. Aulas sobre política, religião, a invisibilidade das mulheres na história da arte, a figura do negro sobre a perspectiva do clown (com o grupo Terreiros do Riso) reuniram, principalmente, jovens de 20 a 30 anos. “As atividades levam o faz-de-conta ou na parte lúdica, da brincadeira,  do jogo, ou um faz-de-conta, que também me interessa, no sentido de fingimento, em que determinados assuntos, corpos, sujeitos, questões, que a gente faz de conta que não existe na sociedade e na escola”, explica.  

O nome da mostra, Complete as Lacunas, já dá pistas do convite que Bruno faz a quem visita. O gesto geralmente avaliativo, parece pressupor respostas certas, quando é, simultaneamente, um espaço em branco. A lacuna, o intervalo. Lugar de imaginação. Aquilo que falta e, portanto, pode ser inventado. Brincar com as estruturas que limitam, criando novas formas de ser, mostra-se como um caminho para repensar a escola. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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