Los Hermanos é um fenômeno raro, e estamos conversados

Cerca de 12 mil pessoas saíram extasiadas do novo Anfiteatro Beira-Rio (Foto: Ricardo Almeida/Nonada)
Cerca de 12 mil pessoas saíram extasiadas do novo Anfiteatro Beira-Rio (Foto: Ricardo Almeida/Nonada)

Texto: Fernando Halal

Fotos: Ricardo Almeida

Meses atrás, quando se anunciou que o show inaugural do Anfiteatro Beira-Rio ficaria a cargo do Los Hermanos – e não AC/DC, Rolling Stones ou outro gigante internacional – não houve surpresas. Até quem torce o nariz para a banda carioca sabe que não há por aí muitos artistas nacionais com moral para encarar um estádio de futebol. Com os hermanos são quase duas décadas de casas lotadas Brasil afora, e uma base de fãs cada vez mais numerosa e renovada também na capital gaúcha. É jogo ganho.

Entre essa multidão de seguidores, que não viam a banda por aqui desde a turnê de 2012, restava alguma dúvida de que seria uma noite mágica?

E foi. Mas calma aí. Não havia exatamente um estádio inteiro à disposição do evento, e sim parte dele. Para o público, que adentrava o campo boquiaberto com a estrutura recém descortinada, esse foi um mero detalhe. Montado atrás de uma das goleiras e voltado para as arquibancadas, o anfiteatro móvel soube explorar o estádio remodelado e suas linhas curvas, garantindo ao espetáculo um visual retrô-futurista, quase um sonho avermelhado. O tempo frio e seco completou um cenário que beirava a perfeição.

Futuro papai, Camelo estava sorridente mas pouco interagiu com a plateia (Foto: Ricardo Almeida/Nonada)
Futuro papai, Camelo estava sorridente mas pouco interagiu com a plateia (Foto: Ricardo Almeida/Nonada)

Foi nessa vibração que, com 15 minutos de atraso e muita festa, os integrantes subiram ao palco na noite de 17 de outubro. Como de praxe, Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba correram para o abraço já na primeira música, “O Vencedor”, onde até as linhas de sopros eram acompanhadas pelas 12 mil vozes presentes. O povo levantou das cadeiras e, como manda o figurino, permaneceu em pé até o final. Ponto para ele.

A sensação de piloto automático que arranhou levemente a imagem da turnê anterior foi sendo pulverizada ao longo da noite. O que se viu foi um grupo de músicos mais vibrante e aberto a aventuras, com alguns novos arranjos especialmente no trio de metais. Todo sorrisos, Camelo demonstra visível maturidade vocal. A figura irrequieta de Amarante continua sendo o núcleo mais rock’n’roll da apresentação – seja comentando ao microfone sobre o cheiro de churrasco que cortava o estádio, seja emendando guitarraços com a bateria ensandecida de Barba, este mais veloz e percussivo que nunca.

Com esse jogo de cintura contagiante (ok, o tecladista Medina segue com jeitão de boneco de Olinda sempre que tenta arriscar uns passos), bastou à equipe técnica equilibrar climas festivos e intimistas, utilizando-se de jogos de luzes e um telão sem firulas.

Com quase 30 canções, o setlist passeou por todas as fases sem deixar margem para  reclamações. Analisando o repertório mais friamente, já não restam dúvidas de que Ventura é a grande obra-prima  do Los Hermanos, o conjunto de canções que ao vivo faz ecoar os gritos mais emocionados. É o OK Computer deles. Prova é que, em uma noite já recheada de grandes momentos, a banda resolve engatar uma trinca de moer o coração mais desavisado: “De Onde Vem a Calma”, “Conversa de Botas Batidas” e “Último Romance”, todas do álbum de 2003. Lágrimas rolaram, e a gente entende. “A Flor”, empolgante dueto entre Camelo e Amarante que costumava encerrar os shows desde a época do Bloco do Eu Sozinho (2001), agora vem antes do bis. As luzes se apagam.

O carisma amalucado de Amarante garantiu momentos de catarse em "Quem Sabe" (Foto: Ricardo Almeida/Nonada)
O carisma amalucado de Amarante garantiu momentos de catarse em “Quem Sabe” (Foto: Ricardo Almeida/Nonada)

Minutos depois eles reaparecem. No bis, as novas gerações que cresceram fazendo coreografias  para “Anna Júlia” nos bailes de carnaval finalmente têm a chance de ouvi-la ao vivo. Em “Quem Sabe”, outra preferida do álbum de estreia, Amarante dispensa a guitarra, rodopia, salta entre caixas de som, ensaia um mosh à beira do palco. Com a derradeira “Pierrot”, as rodas de pogo nos bares enfumaçados de outrora dão lugar a uma cantoria light no gramado colorado.

Observando de perto o transe coletivo protagonizado por essa plateia tão dedicada quanto multifacetada, cantando de peito aberto com uma devoção quase redentora, é fácil perceber que sim, o Los Hermanos ainda tem muito a dizer. Seguem instigando e remoçando seu público mesmo longe da mídia e sem uma única música inédita na manga. Se houver um novo reencontro no próximo triênio, não duvide que eles possam ocupar o estádio inteiro. Porque esses caras são um fenômeno, e fenômenos não se questionam.

Anfiteatro passou no teste

E assim o Beira-Rio, que não abrigava um concerto de rock desde a histórica apresentação de Paul McCartney em 2010, passou no novo teste com louvor. O anfiteatro ofereceu acesso fácil, boa visão do palco, conforto e uma acústica quase cristalina. Passa a ser uma alternativa de luxo para shows de médio porte na Capital. Dentre tantos méritos, uma ressalva: uma garrafa de água mineral a R$ 10 é algo que certamente merece vaias, vamos combinar.

Compartilhe
Ler mais sobre
Entrevista Processos artísticos

GG Albuquerque fala sobre a imaginação radical das estéticas periféricas do Brasil

Processos artísticos Reportagem

Elis, uma multidão: onde está a cantora no imaginário de Porto Alegre?