Petra Costa: “A equação da maternidade e da paternidade é muito desigual”

Olmo e a gaivota
O Olmo e a Gaivota é retrato sincero da gravidez (Crédito: Busca Vida Filmes/ Divulgação)

O cinema de Petra Costa tem a habilidade de se expor. Em Elena, a cineasta foi capaz de mostrar toda a dor e as transições da vida a partir de uma perspectiva única. Olmo e a Gaivota, seu novo filme em parceria com Lea Glob, não é diferente nesse quesito. Nele, Olívia Corsini, uma atriz do Théâtre du Soleil, de Paris, engravida e seus nove meses são relatados na tela. Sem nunca simplificar ou menosprezar todos os sentimentos pelos quais a futura mãe está passando, a produção é sincera ao lidar com um tema tão delicado e todas as escolhas e conflitos que o momento envolve. Com ineditismo, somos apresentados a um universo talvez não tão simples e mágico, mas real.

Por telefone, Petra Costa conversou com o Nonada sobre o novo filme, questões referentes à maternidade e também feminismo. Confira abaixo a entrevista e a crítica publicada pelo Nonada clicando aqui.

Nonada – Em Olmo e a Gaivota, a gravidez é retratada a partir de uma perspectiva sem tanta idealização. Como surgiu a inspiração para conceber um filme nesse formato?

Petra Costa – Na verdade, eu comecei a ler muitos depoimentos de mulheres que passavam pela gravidez e conversei bastante com a minha atriz. Percebi que, na verdade, existia um estereótipo do momento como algo simples e maravilhoso, mas muitas mulheres sentem algo bem diferente. Sentem que é mais complexo. Tem também a questão de como equilibrar a maternidade e o trabalho. Hoje em dia a gravidez é uma escolha, um dilema, não é algo natural e simples. Isso não é retratado em quase nenhum filme que eu tenha visto. E há o estranhamento, a princípio, com a mudança do corpo e com esse bebê que você não conhece e que vai aprendendo a amar aos poucos. A mulher acabava sofrendo uma espécie de opressão por se sentir diferente desse trato quase imaculado da gravidez.

Nonada – Nos créditos, eu vi que a criação dos personagens está ligada com a Olivia Corsini e com o Serge Nicolai, os protagonistas. Eles são atores que interpretam um casal ou um casal de atores vivendo parte dessa realidade?

Petra – Eles são atores que interpretam eles mesmos.

Nonada – Então eles são casados…?

Petra – Eles são casados e ela estava realmente grávida.

Nonada – O processo foi acompanhado desde o início?

Petra: Acompanhei todo o processo, desde o início. Desde antes de ela ficar grávida.

Nonada – Em vários momentos tem uma quebra, como se ela fosse se dirigir ao público e parece que ela se dirige a vocês [as diretoras]. Foi um flerte com o documental? Como foi essa opção?

Petra – É como se nós fossemos um terceiro personagem dentro da intimidade desse casal. Somos agentes provocadores. O filme é muito sobre a encenação, e eles, como atores, estão interpretando a própria vida, mas muitas vezes encenando. Essa interação ou provocação nossa era para entrar em lugares que fossem além dessa encenação, lugares que fossem mais profundos, mais íntimos.

E há o estranhamento, a princípio, com a mudança do corpo e com esse bebê que você não conhece e que vai aprendendo a amar aos poucos. A mulher acabava sofrendo uma espécie de opressão por se sentir diferente desse trato quase imaculado da gravidez.

Nonada – Uma das frases ditas pela Olívia é que a gravidez, inicialmente, é muito abstrata. Achei que isso refletiu muito essa desidealização. Tu ouviu alguma crítica quanto a isso ou como foi a aceitação dessa perspectiva já que a maternidade ela é tão naturalizada?

Petra – Não teve críticas em relação a isso, porque eu acho que o filme mostra que ela passa por tudo: pelo estranhamento, pelo amor, pelo anseio, pelos sentimentos de um ser humano no encontro com outro. Essa simplificação da maternidade é construída e não existe. Nada é um mar de rosas. Isso é uma forma opressiva de olhar pra vida, pois qualquer coisa que não esteja de acordo faz com que você se sinta desadaptado, sendo que somos todos desadaptados. O que é ser adaptado? É um pouco como o conto O Alienista do Machado de Assis, né? Se começa a analisar, somos todos loucos.

Nonada – Sobre o Serge, o companheirismo dele é bastante evidente no filme, mas ainda assim, a vivência diária daquele momento é da Olívia. O que ele representa nessa situação?

Petra – Sim, a Olívia falava que dizem que uma mulher espera um filho, mas na verdade quem espera é o homem. A mulher cria o filho, cria os cílios, cria o fígado. É ela quem fica ali, criando esse ser mesmo dentro da barriga. E o Serge disse numa entrevista recentemente que, logo no começo, ele percebeu que o lugar dele nessa equação ia ser de saco de pancadas, de amortecedor das tensões. Que ele ia surgir ali, nessa explosão de hormônios da Olívia. Então, ele é um homem muito evoluído, muito compreensivo nesse sentido de entender o lugar da mulher. Mas ao mesmo tempo, tem essa questão que ele pode seguir trabalhando. Ele não se questiona em nenhum momento se deve trabalhar ou não. A Olívia, na vida real, teve que sair do Teatro du Soleil porque ela não tinha condições de pagar uma babá. Lá, eles trabalham doze horas por dia e uma babá ia ganhar mais do que ela. Ela teve que sair e ele nunca teve que se fazer esse tipo de questão. A equação da maternidade e da paternidade é muito desigual.

Sim, a Olívia falava que dizem que uma mulher espera um filho, mas na verdade quem espera é o homem. A mulher cria o filho, cria os cílios, cria o fígado. É ela quem fica ali, criando esse ser mesmo dentro da barriga.

Nonada – E como vocês se conheceram? Tu, o Serge e a Olívia?

Petra – Eles vieram em turnê para o Brasil em 2011. Eu estava terminando o Elena, mostrei pra eles, que gostaram. Então, falaram “vamos fazer um filme juntos”, e eu era grande admiradora do Teatro du Soleil. Percebi como eles eram ótimos atores e fiquei com muita vontade de trabalhar em conjunto. Eles são mestres da improvisação e eu já tinha um desejo de longa data de fazer um filme que tivesse muito atores autores, atores que improvisassem, que criassem.

Nonada – E quanto do filme é improvisado?

Petra – Bastante do filme é improvisado.

Nonada – Tem um vídeo de divulgação na internet agora, com vários atores como Bárbara Borges, Julia Lemmertz e Alexandre Borges, falando sobre essa relação da gravidez e da mulher com outras questões, como o aborto, usando um dos figurinos da Olívia.

Petra: Sim

Petra Costa e Lea Gob dirigem O Olmo e a Gaivota (Crédito: Página do Facebook Olmo e a Gaivota/ Divulgação)
Petra Costa e Lea Gob dirigem O Olmo e a Gaivota (Crédito: Página do Facebook Olmo e a Gaivota/ Divulgação)

Nonada – A hashtag é #AgoraÉqueSãoElas, e muita gente compartilhou.  Queria saber como que surgiu essa campanha junto com o filme?

Petra – Na verdade, eu tinha pensado em fazer um vídeo que falasse justamente dessa falta de representação da gravidez e das mulheres em geral no cinema. Da falta de voz. Quando eu fiz o meu discurso na premiação do Festival do Rio, eu dediquei o filme às mulheres e falei que nenhuma mulher sofra machismo físico ou verbal, da presidenta à doméstica, e que toda mulher tenha soberania sobre o próprio corpo, seja pra interromper uma gravidez com o aborto, que já é legal na França, nos Estados Unidos, em Cuba, há mais de quarenta anos, seja pra entrar numa gravidez com todos os direitos para que isso aconteça da melhor forma. E depois, quando a gente postou no Facebook, na página do Olmo [e a Gaivota], vi muitos comentários machistas, justamente o que eu pedi pra não ter. Vi uma enxurrada de comentários como “vadia”, “se não quer ter filho fecha a perna”, e eu fui incorporando esse texto e o vídeo é uma resposta também a essas agressões. E também um desejo de que a voz da mulher seja ouvida em todos os seus âmbitos.

Eu comecei a fazer cinema por causa disso. Porque eu era atriz, e me via quase sempre sugerida ou convidada pra fazer papeis que estavam nessa dicotomia ou da santa ou da mulher profana, puta. E não eram papeis que me diziam respeito, na verdade. Não eram papeis que falavam das coisas que eu queria falar. Então pensei: “vou ter que criar esses papeis”.

Nonada – E como é o espaço das mulheres protagonistas no cinema? E também na direção e produção dentro da indústria, até em filmes independentes.

Petra – Vem aumentando, mas, por exemplo, em documentários, tem 40% dos filmes dirigidos por mulheres. Em ficção, esse número diminui pra 10% ou 5%. Um dos motivos é que quem controla essas finanças são as produtoras, que tem maioria de homens e eles geralmente procuram pessoas como eles pra dirigir os filmes que eles idealizam. Falando principalmente do cinema de Hollywood, é raríssimo um produtor falar “vou escolher uma mulher pra dirigir esse filme”, a não ser que o filme trate de uma questão extra feminina. Mas mesmo assim, existe essa desigualdade. E, além disso, acabam fazendo filmes com personagens femininas que ocupam esse papel clichê da mulher que não fala, e quando fala, é sobre homens ou com homens. O cenário está mudando, mas ainda tem um longo caminho para a mulher exercer um papel no cinema mais profundo. Eu comecei a fazer cinema por causa disso. Porque eu era atriz e me via quase sempre sugerida ou convidada pra fazer papéis que estavam nessa dicotomia ou da santa ou da mulher profana, puta. E não eram papéis que me diziam respeito, na verdade. Não eram papéis que falavam das coisas que eu queria falar. Então pensei: “vou ter que criar esses papéis”.

Nonada – E percebe alguma diferença dentro do Brasil e fora do Brasil nessa questão?

Petra – Eu acho que o Brasil ainda está mais atrasado nessa questão do que, por exemplo, os Estados Unidos, que tem a série de TV Girls há um tempo. Tem também diversos filmes que tem protagonistas mais fortes. Mas no Brasil, eu consigo pensar agora no Que Horas ela Volta e o Central do Brasil.

Nonada – E tu te considera uma feminista?

Petra: Sim, me considero feminista. Apoio totalmente que as mulheres conquistem seus direitos.

Os atores Olivia Corsini e Sergei Nicolai "interpretam" a si mesmos
Os atores Olivia Corsini e Sergei Nicolai “interpretam” a si mesmos (Crédito: Página do Facebook Olmo e a Gaivota/ Divulgação)

Nonada – Como o Olmo e a Gaivota pode ser um auxílio para que se tenha uma postura mais democrática em questões de gênero e feminismo?

Petra – Acho que se as pessoas vão ao cinema e assistem ao filme, elas passam por uma jornada que é uma jornada ignorada, apesar de ser a que trouxe elas para o mundo. Então, ele leva a pessoa a perceber o quão complexa é a maternidade. E espero que leve os homens a cuidarem mais das suas mulheres grávidas, assumir mais essa paternidade e não as abandonem, como há muitos casos no Brasil. O aborto que a gente mais sofre é o aborto masculino, os pais que abandonam seus filhos. E eu espero que o filme traga um pouco de consciência para o direito da mulher e do seu do próprio corpo.

Nonada – Tem alguma referência especial da tua vivência no filme?

Petra – Muita coisa. Não sei nem por onde começar. Por exemplo, se você for ver o Elena, era muito sobre essa dificuldade na transição da adolescência para vida adulta e de achar que você tem direito a ter voz, a ser uma artista, a falar, a ser mulher. E com esse desejo, em contrapartida, tem uma enxurrada de emoções e de pressões da sociedade querendo te afogar. Aí a dificuldade de sobreviver a isso. Esse filme [Olmo e a Gaivota] é sobre o próximo rito de passagem da vida de uma pessoa, que acho que é a maternidade e a paternidade. Você tem que abandonar aquela identidade conquistada pra uma nova identidade surgir. Mas não vai ser a mesma.

Nonada – Como começou a te envolver com teatro e cinema?

Petra – Com 14 anos eu comecei a fazer teatro.

Nonada – Aqui no Brasil?

Petra – Aqui no Brasil. Fiz teatro com algumas pessoas, com a Rosana Seligman, com o Edilson Castanheira, e minha primeira peça foi fascinante. Eram poemas do Fernando Pessoa, que, enfim, me identifiquei muito, e me apaixonei.

Nonada – E quais são teus próximos projetos?

Petra – Vou atuar num filme em Nova Iorque, dirigido por uma argentina chamada Julia Solomonoff, e vou depois para o Egito onde estou produzindo e coescrevendo um filme chamado The Ladies Brigate, a Brigada das Senhoras, que fala muito do pós-primavera árabe e esse impasse que a juventude está vivendo lá. Também estou escrevendo um filme de ficção, chamado Estranha Fruta, que se passa no Brasil e produzindo um documentário dirigido pela Moara Passoni, que se chama Um Vidro sobre a Minha Pele, que é a jornada de uma mulher que sofre de anorexia.

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