‘Grande Sertão: Veredas’, um enigma literário e biográfico

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Por Camila Moreira Cesar

*Ilustrações originais de Poty Lazzarotto

Médico de formação, João Guimarães Rosa (1908-1967) foi também diplomata antes de se dedicar à literatura, tornando-se um dos mais célebres escritores brasileiros e lusófonos. Descrito pelo próprio autor como uma “autobiografia irracional” em entrevista ao jornalista alemão Günter Lorenz em 1965, o romance traduz a complexidade de seu idealizador, morto precocemente aos 59 anos e três dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, cerimônia que estranhamente adiou por quatro anos.

“Ele foi eleito em 1963 e adiou a sua posse até 1967. Quando finalmente decidiu marcar a festa da posse, escolheu uma quinta-feira, o que é bem estranho. Quem o acompanhava na época tinha a impressão de que ele estava se despedindo”, explica Marcelo Marinho, professor e pesquisador em Literatura Comparada na Universidade da Integração Latino-Americana (UNILA) e especialista da obra do autor. “Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem, elas se tornam encantadas. Então, no domingo seguinte à posse, ele também se torna ‘encantado’ ”, salienta o pesquisador, lembrando que, embora o laudo médico tenha apontado infarto, a morte de Guimarães Rosa permanece inexplicável.

A mistura entre a genialidade artística e a personalidade misteriosa do escritor levou Marinho a estudar a obra em profundidade. Em 20 anos dedicando-se ao tema, o pesquisador já passou por várias camadas de leitura do romance, descrito já nas primeiras páginas como um “almanaque grosso, de logogrifos e charadas”. Segundo Marinho, esta já seria uma especular pista de leitura sobre a própria personalidade do escritor, argumento que ele reforça por meio de uma análise minuciosa das ilustrações solicitadas por Rosa ao artista Poty Lazzarotto para as orelhas da segunda edição do romance. Os desenhos, sugeridos pelo próprio escritor, são repletos de grifos, logogrifos e hieróglifos que remetem à diversidade do Sertão e que revelam uma poesia profundamente autorreferenciada.

Em entrevista exclusiva ao Nonada, Marcelo Marinho conta como surgiu o interesse pelo autor e explica de que maneira em sua abordagem a busca por decodificar os inúmeros enigmas metapoéticos do romance pode ampliar a compreensão sobre a complexa biografia do romancista.

Muitos pesquisadores em literatura partem da biografia do autor para chegar a uma compreensão maior da obra, mas tu fazes o caminho inverso. O que te levaste a essa escolha?

Na verdade, foi um pouco uma questão de “serendipity”, que é a capacidade ou a condição que temos de encontrar aquilo que não estávamos procurando, uma ideia muito cara a Rosa. Por outro lado, também tenho uma postura muito crítica sobre o ensino da literatura. Não falo de crítica literária, mas do ensino da literatura em sala de aula, da tarefa de se fazer com que um aluno se encante com a obra. Isso dificilmente vai ocorrer se a gente disser “olhe este poema, ele é bonito assim porque, quando o autor tinha sete anos de idade, caiu do velocípede e bateu a cabeça e aí escreveu este poema bonito”.

Depois, pergunto na prova: “por que o poema tal é muito lindo?”, e o aluno tem que repetir a historinha do velocípede. É preciso sempre considerar que há um fosso muito grande entre a pessoa empírica, aquela que acorda e escova os dentes, e essa outra pessoa, o autor, que é aquela entidade ficcional que sobrevive quando a pessoa empírica morre e vira pó. Cabe aqui aquela pergunta do Ernesto Sábato: “Sócrates, quando está tomando sopa às seis horas da tarde com sua esposa, é Sócrates ?”. A resposta já ajuda a compreender a distância entre essas diferentes instâncias: o eu-lírico, o narrador, os personagens, a pessoa empírica e aquela outra pessoa que entra provisoriamente em um estado alterado de consciência, o autor. Essas duas pessoas tem o mesmo nome social, mas não deveriam. Por exemplo, Fernando Pessoa cria diferentes entidades autorais para marcar essa distância. A gente precisa tomar cuidado com essa distinção.

Mas no teu trabalho, tu analisas neste vai e volta entre a obra e a vida dele para compreender a maneira como se construiu o romance.

Sim, partimos do livro para interpretar o pouco que sabemos da vida do nosso genial romancista. As convergências são fatos verificáveis, mas em que medida aqueles fatos correspondem à uma realidade verificável? Essa relação permanece em aberto.

Sobre o famoso pacto com o diabo [feito por um personagem no livro], ele traz questionamentos que fazem refletir mais amplamente sobre questões de religião que tocam muita gente. Por exemplo, falar do diabo e da sua existência significa falar, igualmente, da existência de Deus. Sobre isso na obra, tu achas que eram questões que ele, Rosa, colocava-se enquanto pessoa empírica?

Acho que é interessante entender o autor, na medida em que entendê-lo corresponderia a compreender um pintor, um grande jornalista, um cozinheiro, um exímio operário. Entender um autor é entender a própria essência da natureza humana. Em literatura, há essa perspectiva de que entender o autor é entender a obra. Mas volto a dizer que há um fosso muito grande que dificulta essa tentativa de aproximação. Por exemplo, há um certo poeta do século XIX, cujos poemas faziam parte da cestinha de tricô das mocinhas da época. Eram poemas muito lindos, enalteciam a relação com a mãe, o carinho muito grande para com ela. Porém, quando esse indivíduo (a pessoa empírica) voltava para casa bêbado, o que ele fazia ? Espancava a mãe. É preciso insistir sobre a distância muito grande entre o que a gente deduz de uma obra sobre um autor e sua pessoa empírica, que é como qualquer um.

Por outro lado, talvez seja fundamental que não consigamos entender, senão transformaríamos a existência humana em mais algoritmos, e os computadores se transformariam em autores, artistas. Querer entender o autor é querer entender a raiz da genialidade do autor. Em que momento Sócrates deixa de ser aquele que toma sopa às seis da tarde e se torna Sócrates, o grande filósofo? Em que momento Guimarães Rosa deixa de ser o médico-diplomata para se tornar o grande escritor? Em que momento Drummond deixa de ser o funcionário público para se tornar o grande poeta? É nesse momento que se manifesta  o mistério, nessa passagem para um estado alterado de consciência, nesse clique transcendental.

Um dos pontos interessantes do teu trabalho é que tu tentas desvendar esse enigma que é o Guimarães Rosa, essa pessoa tão complexa, mas não ofereces conclusões, mas sim pistas para clarear este mistério.

Sim, não pretendo clarear esse mistério, gostaria apenas de poder torná-lo mais espesso. Porque me parece que essa é a perspectiva que encontramos em Grande Sertão: Veredas, que vemos nessa intrigante história da morte anunciada do Guimarães Rosa. Vemos aí uma profunda consciência dessa espessura e dessa indecibilidade próprias ao sentido da existência humana, ao sentido da natureza discursiva das diferentes camadas de personas que assumimos ao longo do dia, em diferentes situações.

E qual foi o caminho que tu percorreste? Quais foram as primeiras pistas que te permitiram traçar este plano na tua pesquisa? Tu começaste a estudar primeiro a obra em si ou as palavras, ou tu partiste das ilustrações?

Legal, obrigado por me fazer essa pergunta, porque já faz tanto tempo desde então… Mas o caminho se abriu a partir dessa relação com Platão e com o diálogo de Crátilo, que trata da formação da linguagem, da formação das palavras. A partir daí, comecei a fazer uma leitura transversal dos nomes dos personagens para ver se haveria outros indícios, provas de que Platão não era apenas uma coincidência incidental. Comecei a procurar outros indícios que remetessem ao universo da arte e da literatura.

Primeiro, escaneei e digitalizei o livro, e então pude fazer uma leitura diagonal. Por exemplo, os fatos que acontecem a cada vez que aparece o nome “cavalo”. Então, o computador encontrava a ocorrência da palavra e eu esmiuçava o texto para ver o que havia no entorno, sempre tomando notas, como se tratasse de um poema. E assim por diante, como com a palavra “arte”, por exemplo. Quando lemos de forma ingênua, sem procurar, nem prestamos atenção, mas fazendo essa leitura diagonal é possível identificar o que acontece em torno de uma palavra, a que se refere essa palavra no texto. O crítico Jean Starobinski diz que não é a palavra que dá sentido ao texto, mas o texto que dá sentido à palavra. Então, eu lia o texto e procurava o sentido que o texto atribuía àquela palavra.

A partir daí, as pistas se multiplicaram e permitiram essa leitura convergente com a “autobiografia irracional”, uma preciosa pista de leitura dada por Guimarães Rosa, mas até então ignorada pelos leitores. É possível que muitas pistas solitárias tenham sido encontradas pelos leitores, mas foram abandonadas por falta de outros indícios complementares.

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Tu disseste que este livro ele é uma grande metáfora do universo das letras. Podemos também identificar a referência a outros escritores. Com base em que elementos tu enxergas essa alegoria ?

Essa grande alegoria do universo das letras parte de nomes de jagunços-poetas, alguns bastante óbvios, como Drumõo, Dos-Anjos ou Selorico Mendes, que é uma referência ao poeta e tradutor Manuel Odorico Mendes. O herói se chama Riobaldo, e na pronúncia sertaneja transforma-se em  “Riobardo”, ou seja, “R-io-bardo’, “Rosa-eu-poeta”. Há outros nomes mais camuflados. Os nomes dos lugares também colaboram nessa perspectiva, como o Liso do Sussuarão que é, obviamente, uma referência ao Ferdinand de Saussure. Há muito jogo de palavras nos nomes de personagens, como Diadorim, que também é Deodorina, ou “presente de Deus”, em grego. Literalmente, o próprio romance diz que Diadorim é a “alma”, enquanto Otacília é um “prêmio”. O pacto com o demônio resulta num prêmio, mas paga-se com a alma. São velhos logogrifos  de almanaque. A geração mais jovem trocou  pelos videogames os antigos jogos de palavras, como aqueles do Almanaque Fontoura, que faziam parte da cultura popular. O próprio Grande Sertão: Veredas indica essa pista, já na página 7, logo no inicio do livro, quando Riobaldo menciona um “almanaque grande de logogrifos e charadas”. Está ali evidenciada essa perspectiva de se jogar com as imagens e as palavras para se construir e agregar vários sentidos à obra.

E em relação à realidade cultural, essa ambientalização da obra em termos regionais. Se a gente compara com Os Sertões, do Euclides da Cunha, quais os paralelos e as diferenças que tu destacarias ?

O grande paralelo, do ponto de vista do Brasil e da história regional do Brasil, é que ambas as obras são extremamente representativas da cultura nacional. Os dois autores conseguiram transferir para o papel uma paisagem do Brasil. E como eles conseguiram traduzir essa paisagem do Brasil? Por meio das palavras. Ambos partem dessa língua herdada dos portugueses, mas que mudou profundamente no Brasil. Antes deles, os escritores escreviam basicamente com o português lusitano. Euclides da Cunha insere sistematicamente, em sua obra literária, uma ampla gama de palavras que fazem parte do português, mas que são originárias dos idiomas indígenas e africanos. Observa-se aí uma profunda consciência cartográfica verbal, até porque Euclides é engenheiro cartógrafo e escritor. Ele sabe que, para se fazer um mapa, é preciso traduzir a realidade do terreno por meio de elementos simbólicos. Um mapa do Sertão do Brasil é diferente de um mapa da Suíça ou da França, porque a natureza é diferente, o relevo é diferente.

A mesma condição ocorre com as palavras, fato que acentua a dificuldade para se traduzir uma obra para outros idiomas. Euclides sabe que os signos de origem lusitana não bastam para a construção daquele mapa poético, e acrescenta outros signos para representar essa realidade tão brasileira. Em Guimarães Rosa, essa consciência se acentua, razão pela qual ele sente a necessidade de criar palavras para representar  realidades para as quais ainda não há nome. Michel Foucault tem uma genial intuição quando diz que Dom Quixote sai pelas estradas e lê o mundo para confirmar sua leitura dos livros. Todo os seres humanos interpretamos aquilo que vemos por meio de palavras que já conhecemos. Mas pessoas como Guimarães Rosa e Euclides enxergam mais além, sua visão está liberta desse mundo preestabelecido por vocábulos preexistentes.

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Além de escritor, Guimarães Rosa foi médico e diplomata

Como surgiu o interesse pelo trabalho do Guimarães Rosa? Como foi o despertar para estudar este autor, em específico?

O interesse pelo Guimarães Rosa cresceu quando eu estava estudando na França, na Sorbonne, lendo a segunda tradução. Essa tradução tem a qualidade, mas também o defeito, de ser muito clara, de explicitar certos aspectos importantes da obra. Eu acompanhava a luta do Crotale (Urutu) contra Hermogène (Hermógenes), e esses nomes me acompanhavam o dia inteiro. Então, em um seminário do doutorado, o professor mencionou um dos diálogos de Platão, que trata do nascimento da linguagem, da formação das palavras, no qual Cratyle discute com Hermogène. Naquela hora, veio o estalo de Vieira: “Crotale e Hermogène – Cratyle e Hermogène?”, embora eu não tivesse a clareza de enxergar aonde isso poderia levar. E o meu doutorado, na verdade, era sobre outro tema. Eu ia estudar a imagem dos indígenas na literatura latino-americana. Mas quando eu tive esse clique, perguntei para o meu orientador, o Daniel-Henri Pageaux, e ele incentivou: “vai atrás!”. A partir daí, eu comecei a aprofundar a questão. O Paul Valéry diz que “a arte é o crescimento natural de uma flor artificial”. Grande Sertão: Veredas é uma flor artificial, como toda obra de arte. Mas toda leitura é natural, o que se faz dessa obra de arte natural. É fruto de leituras prévias, do encontro de ideias e de pessoas com aquela obra de arte. E foi esse encontro com o Crátilo de Platão que permitiu abrir mais uma possibilidade inédita de leitura para o romance, apesar dos 40 anos transcorridos desde a publicação, em 1956.

Foi então o fato de estar na França lendo a versão em francês que te abriu essa perspectiva?

Sim. No Brasil, eu dificilmente iria fazer a passagem de Urutu para Crótalo e, por fim, para Crátilo. É preciso atravessar essa ponte. Em francês, a tradução é tão explicativa que me poupou uma etapa para essa possibilidade de interpretação do romance.

Já que tu falaste de tradução, tu leste apenas a versão em francês ou também leste outras? Porque uma das grandes perguntas que se faz quando se pensa nessa obra é a dificuldade de tradução devido ao grande numero de neologismos.

Quando a gente lê as duas versões francesas, parece que são duas obras completamente diferentes. A primeira tradução, que é de 1963, se eu não me engano, optou pela oralidade que se encontra no discurso do Riobaldo, o que é interessante. Há duas versões em espanhol, e a segunda saiu há dois anos, na Argentina. Elas não são muito diferentes, porque tenho a impressão de que o tradutor recorreu muito à primeira versão, reaproveitando soluções que o primeiro tradutor tinha encontrado. Trabalhei também com a tradução italiana, que foi acompanhada pelo Guimarães Rosa. Só que o Guimarães Rosa sempre dizia “isso mesmo, está bom assim”, ele nunca corrigia, apenas encorajava. Há também uma questão de vaidade. Ela é um dos sete pecados capitais, mas pode ser algo positivo. Tudo de bom ou de mau que se faz é em função da vaidade, sobretudo na arte. Em Rosa, podemos observar esse fato na elaboração de uma obra que vai exigir muitas traduções, como acontece com as milhares de versões da Bíblia. Prefiro sempre evitar a expressão “intenção do autor”, mas transparece em Grande Sertão: Veredas esse desejo de construir uma obra a ser traduzida pelos próximos séculos. Cada nova tradução será diferente da anterior, porque há muitas possibilidades de leitura, e cada tradução dará conta de uma camada de leitura. Por exemplo, a palavra “arte” aparece quase 70 vezes no romance. Os tradutores, não sabendo o que fazer, do porquê dessa palavra aparecer por ali, o que fazem eles? Suprimem. A palavra “arte” desaparece nessas traduções. Às vezes, aparece em português como interjeição, mas os tradutores são obrigados a suprimir, porque eles não conseguem ver como encaixar a palavra no texto. O próprio sentido da obra muda em função da tradução e em função do tempo.

Sobre essa ideia do sentido da obra mudar conforme o tempo, que leitura poderíamos fazer hoje dessa relação um tanto ambígua entre o Riobaldo e a Diadorim? Como tu achas que essa problemática pode se integrar nos debates atuais sobre questões de gênero, por exemplo?

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Eu ainda não tinha trabalhado sobre este aspecto, mas é justamente o tema de um trabalho que eu vou propor para uma revista gaúcha. Quando eu preparava minha tese, achava estranho que o romance tivesse sido traduzido como “Diadorim” para o francês, pois o título já direciona o leitor. Inclusive, houve um jornal belga que publicou uma matéria muito elogiosa sobre Grande Sertão: Veredas e ilustrou com uma fotografia de dois homens abraçados. O título da matéria era “Grande Sertão: Veredas, o ápice da literatura homossexual no Brasil”. Na minha opinião, essa é apenas uma leitura. Não é a personalidade do autor e suas questões mais íntimas que fazem uma obra-prima. Todo mundo tem preocupações, mas somente alguns poetas, alguns artistas vão transformar essas preocupações, angústias, em um quadro, em um filme. O que importa não é o sentimento, a dúvida, a angústia, mas como transformar esses sentimentos em alguma coisa que tenha significado para todo mundo. Por isso eu não tinha me preocupado até então sobre a questão de gênero, mas essa é a próxima etapa que pretendo trabalhar dentro da pesquisa.

Pensando em tudo o que descobriste até agora e cruzando com outras pesquisas, o que tu pretendes ainda desenvolver? Tu falaste da questão do gênero, que tu vais trabalhar um pouco agora, mas há outros pontos que tu pretendes aprofundar?

Não saberia dizer de maneira precisa, porque esses pontos de interesse surgem sempre por acaso. A própria perspectiva de gênero surgiu durante o lançamento da versão inglesa do livro História da Virilidade, do Alain Corbin. A conferência desse historiador lançava várias pontes para se ler Guimarães Rosa a partir dessa ótica. O ponto central era o fato que as manifestações simbólicas da virilidade são uma construção social. Esse fato se manifesta nos personagens de Grande Sertão: Veredas, inclusive nos femininos, como Diadorim, por exemplo. Ela é marcada por atributos simbólicos da virilidade, e tal condição merece um estudo mais aprofundado.

E pensando no teu método, tu não enquadraste teu estudo dentro de uma teoria literária específica? Houve alguma delimitação nesse sentido?

Os métodos e teorias devem sempre se adaptar ao romance analisado, ao que me parece. Com Rosa, foram essenciais as ferramentas da estilística, o estudo das figuras de linguagem, hoje um pouco fora de moda, é preciso reconhecer, enquanto se espera o retorno de leituras mais centradas nos aspectos intrínsecos da obra literária, em convergência com a análise dos aspectos contextuais. Como Guimarães Rosa elabora uma obra profundamente metapoética, a análise das figuras de linguagem contribuem para se dar início à compreensão do texto.

Por quê? Tu achas que é mais livre, mais democrático no sentido de leitura da obra?

Porque os aspectos linguísticos de uma obra poética fornecem um bom ponto de partida, inclusive para se compreender o mundo em que a gente vive. Por exemplo, uma figura de linguagem  recorrente em Guimarães Rosa, mas que também ressurge amiúde em Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Manoel de Barros e Clarice Lispector, é o oxímoro (reunião de palavras na qual se realiza a convergência de contrários, a junção de duas ideias que se contrapõem sem se anularem mutuamente). Na obra desses escritores, o oxímoro ajuda também a melhor compreender a cultura brasileira, resultante da convergência de contrários. A estilística contribui para para se pensar o mundo em que vivemos, muito além de se oferecer como uma simples categoria para se explicar a literatura. Em sala de aula, o professor de literatura pode partir da realidade concreta de seus alunos para interpretar um oxímoro na obra do autor analisado. Com Paulo Freire, esse professor pode ajudar seus alunos a compreenderem o mundo, a compreenderem a si mesmos, a sua humana e contraditória condição.

Tu tens alguma informação sobre o nível de leitura ou procura dessa obra hoje, no exterior?

Olha… Na América hispânica, raramente se lê Guimarães Rosa, e só há dois anos surgiu uma  tradução na Argentina. Na Espanha, houve uma tradução em 1967, posteriormente publicada em versão de bolso. Na França, em livro de bolso, o livro é um sucesso editorial, assim como na Alemanha e na Itália. A tradução em inglês resultou em verdadeiro fiasco, em 1963, e o livro jamais foi retraduzido.

Na tua opinião, seria simplesmente uma barreira de tradução ou talvez também de interesse de escritores brasileiros de valorizar nossa produção?

Creio que é, sobretudo um problema de interesse nosso, de brasileiros, mesmo. Por exemplo, um Prêmio Jabuti de Literatura foi atribuído a uma certa vigésima melhor tradução do Ulisses, de James Joyce. Por que razão não se traduz Grande Sertão: Veredas para outras línguas? Me espanta o fato de que se dedique tanta energia no Brasil para se traduzir reiteradamente James Joyce, por exemplo, ao invés de se concentrar esforços para uma nova tradução em inglês do nosso maior romancista… O próprio Haroldo de Campos, acreditando fazer um elogio, disse certa vez que Guimarães Rosa era o maior autor latino-americano, pois era o que mais se aproximava de Joyce. Creio que esse julgamento é revelador no que refere às hierarquias eurocêntricas que se estabelecem no âmbito do sistema literário brasileiro. Fica aqui um desafio amistoso aos amantes da cultura brasileira: novas versões em inglês, mas sobretudo em espanhol latino-americano, para essa genial obra palimpséstica e meta-romanesca, cujos 60 anos comemoramos com um orgulho literário mais que brasileiro.

Marcelo Marinho é autor de João Guimarães Rosa (Paris, L’Harmattan) e GRND SRT~: vertigens de um enigma (Campo Grande, Letra Livre). Doutor em Literatura Comparada pela Sorbonne, lecionou na Universidade do Quebec em Montreal e na Universidade Eötvös Lorànd de Budapest.

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