Água Turva, um suspense ambiental no Rio Grande do Sul

Romance de Morgana Kretzmann traz três protagonistas fortes que lutam pelos seus próprios destinos
Obra de Iberê Camargo compõe capa do livro (Foto: reprodução)

Lançado recentemente pela editora Companhia das Letras, Água Turva tem como pano de fundo a região noroeste do Rio Grande do Sul, mais particularmente o Parque Estadual do Turvo, que faz fronteira com a Argentina, e a cidade fictícia de Dourados. É também o segundo livro da escritora e roteirista Morgana Kretzmann, vencedora do prêmio São Paulo de Literatura com sua obra de estreia, Ao Pó, em 2021. 

Na história, encontramos três personagens femininas fortes: a guarda-florestal Chaya, responsável por combater a caça exploratória de animais silvestres no parque; Preta, sua prima, separada da família ainda quando criança, e líder de um grupo de caçadores e contrabandistas, os Pies Rubros, que vivem no lado argentino da fronteira; e a jornalista Olga, assessora parlamentar de um deputado de um partido de origem progressista que se vendeu para a direita e que acaba tendo um papel muito importante na definição da trama ao longo do livro. Pairando por todos os personagens, há a figura mítica de Sarampião (não parece o nome de um personagem do Guimarães Rosa?), ex-guarda ambiental e protetor da mata. 

Na verdade, assim, como uma fronteira entre países que entrelaça e mistura costumes, todas essas personagens estão conectadas e suas ações influenciam na trajetória. O livro todo é costurado com capítulos que vão pulando no tempo, entre a década de 50, anos 90, anos 2000 e mais ou menos a época atual, na verdade, os bizarros anos do governo Bolsonaro. Há também uma divisão aparentemente temática entre Terra, Água, Fogo, Sangue e Fé. Então, as motivações das histórias vão se revelando aos poucos, com acontecimentos do passado reverberando no presente. 

A escolha da narração fragmentada e dos capítulos bem curtos dão uma sensação de fluidez, pois é como se corressemos juntos com os personagens que estão sempre se movimentando para algum lugar. Nesse sentido é um produtivo thriller de ação contemporâneo com uma história envolvendo a preservação do meio ambiente em  paisagem que não estamos acostumados a ver retratada na literatura que traz o Rio Grande do Sul.  

É notório a pesquisa que a autora fez para escrever o livro, pois o Parque é realmente um personagem da obra, o salto do yacumã e toda a fauna e flora que são descritas no livro transparece nos próprios sentidos dos protagonistas, principalmente de Chaya, Sarampião e Preta, que vivem e sangram pela natureza. São personagens que levam o princípio da luta que acreditam acima de tudo. É o principal motivo de sustentação e existência deles. Com isso, a personagem jornalista, Olga, é aquela que atravessa mais mudanças em sua trajetória, uma vez que ela está atrás de um sentido, de certa forma, o mesmo que une Chaya e Preta e Sarampião. 

Ganham destaque também as histórias de duas famílias tradicionais que ajudaram a formar a região. Mas os Romano e os Sarampião não compõem nenhum épico surreal: são pessoas simples, que trabalham, que bebem, que brigam e lutam dia a dia contra a pobreza. É uma história de tragédias de uma região construída por muitas mãos (brancas, negras, indígenas), mas também com muita injustiça social.

Outro ponto interessante é o fundo político, com a figura do deputado que planeja construir uma hidrelétrica na região do Parque que trará o tal “progresso” para aquela região. A figura do Deputado é também a mais plana, ele encarna todo esse mal simbólico muito atual, porque é abusivo em todas as áreas possíveis. Aliás, esse é um ponto que talvez tenha me pegado um pouco no livro: às vezes estamos tão dentro da ação da história, que, por vezes, não damos tanta importância aos destinos dos personagens, principalmente os coadjuvantes.

Água Turva é antes de tudo uma obra sobre domar o destino com as próprias mãos. Os arcos das três mulheres protagonistas evidenciam a encruzilhada entre seguir os caminhos que foram traçados no passado ou racionalmente fazer escolhas diferentes para o futuro. E tudo isso também tem a ver com pensar em construir desde já o horizonte que queremos também socioambientalmente.

Uma volta para a natureza é crucial para o mundo continuar a existir? Não sei se necessariamente uma volta para os costumes passados de uma sociedade pré-industrial, mas não existirá futuro sem uma troca de ponta de vista em relação ao modo de se viver, de olhar o mundo ao redor. E Água Turva faz dessa natureza sua principal força. 

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