Maryane Martins, especial para o Nonada Jornalismo*
Caruaru (PE) – Todas as culturas olham para o céu. E cada povo o vê do seu próprio modo. O céu orienta o tempo, não só o do relógio, mas o da vida. É dali que vêm os sinais: do tempo de plantar e de colher, das chuvas e das secas. Da porta do quarto onde vive no Agreste Pernambucano, o mestre ceramista Joel Galdino tem o céu como fonte de inspiração. Para ele, olhar para cima é encontrar uma espécie de criatório. Nas nuvens, enxerga figuras, terrenas e fantásticas. Depois, as modela no barro.“ Eu olho pro céu, vejo uma imagem e boto no barro”, diz. As nuvens são seus moldes. O barro, sua tradução.
Aos 54 anos, Joel é o último filho vivo de Mestre Galdino, um dos mais importantes ceramistas do bairro Alto do Moura, em Caruaru (PE), e do Brasil. A região é conhecida como terra do bairro, por ter sido chão para ceramistas que fizeram história na tradição artística da arte popular. Falecido em 1996, Mestre Galdino deixou com Joel o estilo único na manufatura com o bairro, que rompe com o figurativo e adentra o surreal.
Ele herdou a sensibilidade criativa do pai, mas também a responsabilidade de manter, quase sozinho, uma linhagem que carrega tanto memória quanto silêncio. Enquanto outros artistas do Alto do Moura ocupam a avenida principal — cercados por vitrines, turistas e placas — Joel vive um pouco mais afastado, fora do eixo mais visitado. Não tem loja, nem letreiro. Suas peças secam no chão do quarto, muitas vezes sem queima, por falta de forno.
A importância histórica do pai não se traduziu em garantias materiais e financeiras para o filho que dá seguimento ao legado. Atualmente, ele não tem nenhuma obra do pai e vive em condições de vulnerabilidade social.

O quarto onde Joel dorme é o mesmo lugar onde cria as peças. A casa simples com paredes de barro sem pintura, piso de cimento, e uma televisão de tubo dos anos 90, revela um lar onde muita coisa falta, enquanto sobra a criação. A televisão ligada é mais que distração: é testemunha de seus dias em que o imaginário se materializa no barro. O espaço é uma mistura entre abrigo, ateliê, altar e refúgio. Além das peças, o ritmo de trabalho foi também herdado. “O que eu mais gostava era acordar às 6 horas da manhã junto com ele, sentar ao lado dele e começar a trabalhar”, conta.
O Alto do Moura foi o lugar em que pai e filho aprenderam a dar forma ao que, muitas vezes, não tem nome. Ali, entre o visível e o que se sente, fizeram da realidade um relevo moldado em barro, com gestos, texturas, marcas, expressões, silêncios. O bairro, do Agreste de Pernambuco, nasceu às margens do Rio Ipojuca, de onde se retira até hoje o barro, matéria viva que se forma em arte.
Mãos de sonho
Foi no início do século XX que a cerâmica começou a ser usada por louceiras, mulheres do território que fabricavam utensílios domésticos — panelas, potes, moringas. O precursor na arte do barro foi Vitalino Pereira dos Santos, o Mestre Vitalino, que transformou o barro em linguagem, tratando das realidades dos sujeitos nordestinos e das cenas da vida rural e urbana. Suas obras moldaram o cotidiano em pequenas figuras: cenas de vaquejada, carros de boi, cangaceiros, bandas de pífano.

Surgiria mais tarde o pai Galdino, Manoel Galdino de Freitas, com um estilo oposto e complementar. Enquanto Vitalino narrava a realidade, seu aprendiz criava a partir do campo do onírico. Um fazia memória. O outro, sonho. Enquanto Vitalino representava o mundo do lado de fora, Galdino inventava o de dentro. Suas peças escapavam do real e ganhavam contornos viscerais, quase míticos. Assim, nasciam figuras fantásticas, criaturas imaginárias, máscaras e seres híbridos que ele dizia nascerem da “parede do juízo”, o lugar onde suas ideias habitavam.
Joel bebeu dessa mesma fonte. Décadas após o falecimento do pai, ele segue produzindo figuras que aprendeu com ele, como o Mané Pãozeiro, personagem criado pelo artista, inspirado na figura de um primo padeiro. Ele também cria as próprias imagens, guiado por uma força poderosa: a da intuição. “Às vezes eu sonho com a peça. Acordo e faço. Do jeito que vem na cabeça. Enquanto estou criando, o nome delas já aparece junto”, conta Joel, que não trabalha com figuras tradicionais. “Não sei fazer figurativo. Meu negócio é a imaginação. Se me pedir pra fazer um boneco figurativo, eu nem sei pra onde vou.
No dia em que conversou com o Nonada, era possível avistar uma fogueira da janela de casa, lembrando que era dia de São José. No catolicismo, o santo ampara os trabalhadores e protege o lar. No Candomblé, a data também reverbera a energia de Xangô Aganju, o Xangô menino, orixá da terra, do fogo e da criação impulsiva.
Dentro do quarto, Joel moldava como quem responde a todos esses chamados. “Se eu passo um dia sem fazer uma peça, me dá uma agonia. Parece que falta alguma coisa”, disse. A chama lá fora anunciava o santo. Dentro, o barro esperava. A criação, mesmo sem queima, seguia acesa.
O Mestre enfrenta dificuldades para viver
Como o barro cru que precisa do fogo para se firmar, a vida de Joel também caminha entre o que já é e o que ainda não pode ser. Até pouco mais de um ano atrás, vivia numa antiga associação de moradores do bairro voltada a pessoas em vulnerabilidade social.
Hoje mora em uma casa emprestada com a filha Jakeline, de 32 anos, e o neto Benjamin, 3 anos, na mesma rua onde está o Memorial Mestre Galdino, museu público que expõe fotografias, painéis informativos, peças e poesias originais em memória do artesão e poeta popular.

A matéria-prima vem das margens do Rio Ipojuca. Joel não usa aditivos. “Do jeito que o barro sai do rio, a gente usa com a mão”, explica. Cria com o que tem: grampo, garfo, caneta. Faz incisões, cortes, dobra e transforma. Improvisa tudo. Até a queima. Quando consegue, as peças vão para o forno de Dona Terezinha, artesã que mantém um ateliê no Alto do Moura. É lá que, às vezes, Jakeline leva as obras para queimar. “Se eu tivesse um forno, era outra história. Eu mesmo sei queimar”, diz Joel. Hoje, depende de favores, de espaços emprestados, de pessoas dispostas a ajudar. E mesmo assim, é cobrado. Às vezes, para queimar uma peça, paga dez, quinze reais. “E nem sempre eu tenho.” O fogo que transforma também custa.
“Se a peça for queimada, o preço melhora. Mas a gente nem sempre consegue. Tem que pedir, e às vezes a pessoa cobra. Tenho vergonha de ficar pedindo”, conta Joel, que entre as injustiças e as perdas, também acumula dores físicas. Há cerca de três meses, perdeu parte da sensibilidade nas pernas. “A sandália sai do meu pé e eu nem sinto. Já me machuquei e não percebi.” A realidade é mais rasteira, a renda é curta.

Desde 2000, Joel Galdino recebe um salário mínimo da Fundação de Cultura de Caruaru pelo reconhecimento de seu fazer cultural. Ele é um dos mestres considerados Patrimônio Vivo pela prefeitura de Caruaru, reconhecimento dado a fazedores de cultura com trajetória comprovada pelo poder público.
O valor que Joel recebe é o que sustenta ele e a família. A filha Jake explica que ela é responsável por cuidar da saúde e da produção artística do pai. É ela quem vende as peças e toma conta das entregas, levando tudo como pode, às vezes pedindo emprestado um carro de mão. “É uma agonia arrumar. Mas é o que tem. A gente vive do barro, come do barro”, diz, com um sorriso cansado.
Sem poder trabalhar fora, ela depende do que conseguem vender e, frequentemente, da doação de cestas básicas. “Às vezes mandam um peixe, uma carne. Quando consigo vender alguma peça, é o dinheiro de comprar o que comer. Teve um dia que a gente pediu ajuda pra comprar pão, ovo e mortadela porque meu filho tava pedindo, e eu não tinha. Dá um aperto no coração.” Jakeline enfrenta crises de ansiedade e depressão. E mesmo assim, permanece ao lado do pai e da esperança de que, um dia, o reconhecimento chegue.
Essa esperança, no entanto, é constantemente posta à prova. O barro, para Joel, não é só matéria. É também memória, sustento, resistência. Mas sem estrutura, a criação vira luta. “Já fiz 10 Mané Pãozeiros e tive que vender a R$10 cada, por necessidade. Depois soube que foram revendidos por R$300 numa galeria em Recife. Fico desgostoso, mas precisava do dinheiro. Aqui no Alto do Moura, o povo sabe o valor. Mas se aproveita. Porque sabe que eu passo necessidade”, conta. Teve ainda o caso de um casal de artistas que moravam no próprio bairro, que encomendou 32 peças. Joel entregou todas. Nunca recebeu por nenhuma. “Ela ainda passa por mim como se nada tivesse acontecido. Vive aqui, mora aqui e ainda montou um ateliê numa das ruas principais. E eu fico calado. Porque a gente já tem vergonha demais pra carregar.”
Em resposta ao Nonada, a Fundação de Cultura afirma que Joel está amparado. “Ele é um artista importante, filho do mestre Galdino, e recebe um salário da Fundação”, afirma o presidente Hérlon Cavalcanti. “Mantemos o Museu Mestre Galdino com exposições, recentemente reformado, e temos parceria com Dona Terezinha, que queima as peças dele. Joel é chamado para oficinas e atividades culturais”

Heranças que escorrem pelas mãos
Quem ouve Joel e Jakeline percebe uma sucessão de faltas: de estrutura, visibilidade e de permanência de apoio. Falta alguém que, de fato, olhe para ele como o que é: não “apenas” um filho de Galdino, mas um mestre vivo. A história de Joel é uma repetição do que já havia acontecido com o pai, que pouco usufruiu do prestígio dado ao próprio trabalho por instituições de arte e colecionadores. “Eu estava morando no Espírito Santo quando meu pai morreu. Quando voltei, meu irmão tinha vendido tudo. Fiquei sem nada.” Agora, tenta impedir que o mesmo alcance a filha e volte a marcar a própria história. “Hoje eu penso assim: toda peça que eu fizer, vou tentar fazer duas. Uma pra vender, outra pra minha filha guardar.”
Para evitar que reproduzam obras de Galdino sem autorização, Joel registrou os direitos autorais em cartório. “Eu não deixo fazerem peça dele, não. Registrei tudo. Aconteceu isso com Vitalino, e a família ficou sem nada. Eu não vou deixar acontecer com meu pai”, defende. Apesar dos esforços, as obras de pai e filho seguem sendo vendidas por galerias no mercado de arte Brasil a fora, nem sempre com porcentagem destinadas aos artistas.
Jakeline escuta isso com atenção. Ela sabe que o barro é, também, herança. “Nunca pensei em abrir mão do meu pai. Se hoje eu tô no mundo, é graças a ele.” O gesto de guardar, de dobrar o tempo entre gerações, de não deixar que a história evapore, é também um modo de luta. Luta contra a morte simbólica, contra o esquecimento, contra o tempo. “As peças do meu pai foram embora. Eu não vou deixar isso acontecer comigo”, diz Joel.
A luta para não desaparecer
A fala do artista ecoa a preocupação que a pesquisadora Rosângela Vitorino registrou em seu estudo sobre Galdino: o medo de que a memória se dissolva. Para ela, Galdino não apenas inventou um estilo — ele rompeu uma tradição centrada no figurativo e inaugurou uma estética do imaginário. Uma arte que nasce de dentro: da intuição, dos sonhos, do que não se explica. Segundo a pesquisadora, sua obra se aproxima do grotesco, do sagrado, do surreal. Joel, herdeiro direto dessa linguagem, mais do que continuar um gesto, guarda um tempo. Tudo isso precisa mais do que a técnica, exige um esforço para salvaguardar.
É desse compromisso que vem sua rotina. Joel se alimenta de barro, céu e sonho. E, com eles, atravessa os dias. Trabalha com os quatro elementos. A terra, onde tudo nasce, onde o barro é encontrado, denso, vermelho, vivo. A água, que mistura, que molda, que dá movimento. O fogo, que queima, que transforma o frágil em permanente. E o ar, que o inspira e carrega as imagens das nuvens que ele traduz com as mãos. O céu indica o tempo. Mas é o barro que o segura.

Mas nem tudo se sustenta só com a poesia. Há demandas que pesam. Mestre Galdino falava que a criação surge da “parede do juízo”. Joel carrega essa parede, junto com suas rachaduras. A bebida, que tomou o pai, os dois irmãos e uma companheira, também embaralhou os seus dias. “A bebida pra mim é destruição”, desabafa.
Apesar de tantas limitações, Joel segue. O tempo passa por suas mãos. Suas peças são formas de falar. Figuras, criaturas e santos criados pelo ceramista são como janelas para o mundo que ele vê. Entre elas estão peças intituladas de forma única: “O Mundo dos Três Mestres”, “Monstrinho Geográfico”, “Seres da Natureza”, “A Lobinha”, “Carranca Espantalho”.Há também “São Jorge e o Dragão”, uma das muitas em que continua o que o pai começou.
O sobrenome Galdino permanece. Mesmo à margem, sua história segue sendo contada. Não em museus, mas no cimento do chão, nos olhos da filha, nas mãos que ainda modelam. Como toda criação verdadeira, as peças que elabora carregam uma força que impressiona. Não se explica, apenas acontece.

E é por isso que ele insiste. Porque há algo que não se pode roubar, nem vender por dez reais: a imaginação. A capacidade de olhar para uma nuvem e enxergar um mundo. De moldar esse mundo com as próprias mãos. De transformar céu em barro. Dor em forma. Memória em permanência. Sua arte é um modo de não desaparecer.
O céu continua lá. O neto Benjamin corre no quintal. Joel Galdino olha para cima. Talvez já tenha visto a próxima peça.

Maryane Martins
Repórter freelancer, redatora publicitária e também produtora cultural. Filha de Cachoeirinha, Agreste pernambucano — terra do couro, do aço e de muitos artistas e artesãos que transformam matéria bruta em beleza e sustento. Tem textos publicados em veículos como UOL, Revista Piauí, Revista Continente, Marco Zero Conteúdo. Também pesquisadora nas áreas de arte e comunicação, com investigações voltadas à cultura popular, à presença das mulheres na arte e à potência dos territórios. Escreve e fotografa com afeto, intuição e curiosidade — três jeitos de olhar o mundo.