Entre os cheiros da história (2022), de Josely Carvalho (Foto: divulgação)

Conheça obras de artistas brasileiros que trazem o olfato como proposta sensorial

A representação do corpo, seja a partir do ponto de vista biológico ou psicológico, seja a partir de uma perspectiva espiritual, é uma constante no meio artístico. Nas artes visuais, onde impera o ocularcentrismo, essa representação comumente toma forma através daquilo que se pode ver: uma imagem, uma escultura, uma instalação. Mas há quem busque maneiras alternativas de reproduzir a estrutura na qual tudo converge. Há quem utilize o cheiro como transmissor primário do sentido, em que o olfato atua como protagonista do velejar no mar aberto da arte, cativando através da memória e cunhando o que é conhecido como arte olfativa. 

Enquanto se aprofundava nas dualidades ausência/presença e memória/ esquecimento que constituem o seu trabalho, a artista visual Karola Braga, em meio às suas tentativas de criar um corpo em seus processos artísticos, se deu conta de que não há nada mais corpóreo do que a presença de um perfume. “O cheiro está intrinsecamente ligado a essas dualidades. Ele é tanto presença como ausência, tanto uma memória como algo que vai se apagando”, diz. Auto declarada pesquisadora olfativa, Karola faz do olfato o sentido principal na conexão do público com as suas obras – e na conexão de si mesma com o que trabalha.

Essa realização da potência do cheiro na materialização de um corpo não ocorreu à artista de maneira espontânea. Ainda na graduação, Karola estava apaixonada. A pessoa que despertou  sua paixão não se encontrava em território brasileiro, e desse modo o debate da presença-ausência não deixava de tamborilar em seus pensamentos. “Eu pensava ‘como é que eu posso me fazer presente estando ausente? Como eu poderia construir sutilmente uma presença através da ausência física do corpo?’.” Nessas indagações, a artista percebeu que, ao mesmo tempo que o cheiro cumpre com essa construção do corpo, ele o faz de maneira sutil, abrindo espaço para que o erótico se sobreponha ao pornográfico. “O erótico te dá vestígios, te dá uma ideia. Ele te dá margem para você imaginar o que é aquele objeto. Já o pornográfico é o contrário, ele é completamente dado”, explica. 

Foi a partir dessa premissa que Em suas mãos, assim como outros de seus trabalhos, nasceu. Na obra, a artista explora cheiro e narrativa através do aroma familiar de sabonete concentrado em saboneteiras de latão de superfície dourada, acompanhadas de pequenas placas do mesmo material onde se inscrevem textos que narram envolvimentos afetivos. Ao fazer uso dos sabonetes, o interlocutor interage com os cheiros descritos nos textos através da memória que se tem deles. Além de criar uma experiência imersiva através de um sentido tão pouco explorado nas artes visuais, Karola também tem como objetivo ampliar a perspectiva e a percepção do interlocutor sobre o olfato e o seu uso como uma linguagem artística. 

O olfato é ligado ao sistema límbico, cuja responsabilidade é controlar as memórias e as emoções do ser. O sistema límbico é o único sistema cerebral por onde a racionalidade não passa, e por essa razão as emoções nos ocorrem sem qualquer interferência racional. Mas isso não impede a memória de relacionar e assimilar situações de prazer e medo. No trabalho Volátil, o artista visual Cildo Meireles trabalha a iminência de um desastre, real ou imaginário, utilizando o olfato como sentido que capta nuances de perigo. A artista multimídia Josely Carvalho é outro exemplo que se destaca na arte olfativa brasileira. Com uma produção artística de cunho feminista ativista, a artista explora vivências através de memórias. Na obra Entre os cheiros da História, Josely utiliza 20 canhões do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro e coloca, em suas bocas, cheiros que remetem a aspectos da narrativa de fundamento do Brasil. 

Além do trabalho Em suas mãos, Karola Braga também esteve com Lágrimas, terra e crisântemo exposta na 13ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, 2022. Na obra, “um lençol embebido em cheiro de luto pende de um varal em frente ao rio Guaíba enquanto um cheiro delicado permeia o espaço através do movimento do lençol provocado pelo vento”. O trabalho faz referência ao luto, e ao mesmo tempo em que busca transmitir a dor da perda, também busca transmitir “desejos, esperanças, memórias e a presença etérea de um adeus”.

Quando esteve em Porto Alegre para a Bienal, um dos primeiros instintos de Karola foi ir ao mercado para comprar um creme corporal qualquer, contanto que o cheiro nunca tivesse sido usado em seu corpo. A artista fez uso do creme enquanto fazia a montagem de suas obras e, quando sente o seu perfume, é levada de volta para os dias na cidade. A reação biológica do cheiro no corpo humano e como esse cheiro afeta as pessoas é um dos principais interesses da artista. “Quando eu dou um cheiro, eu estou falando sobre você, não estou falando sobre mim. A partir da minha memória eu coloco um cheiro para você, mas a questão é para onde esse cheiro vai te levar. Isso é um retorno para aquilo do erótico, onde eu te dou margem para que isso te leve a imaginar os seus lugares”, enfatiza. 

Conheça 8 trabalhos de artistas:

Floresta de Infinitos (2023) – Ayrson Heráclito e Tiganá Santana
Floresta de Infinitos (Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo)

A instalação dos artistas baianos Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, presente na 35ª Bienal de São Paulo (2023), imortaliza “os guardiões humanos e não humanos; entidades africanas, afro-brasileiras e indígenas; aqueles que vivem e os que morreram para defender as matas e seus povos”. A obra revela um caminho ladeado por bambus que guiam o interlocutor às imagens de personalidades imortalizadas na proposição dos artistas. Instalada em um ambiente fechado, a obra permite que o cheiro úmido dos bambus se espalhe pelo recinto, remetendo à terra, à floresta e às entidades indígenas e africanas retratadas na instalação, ao mesmo tempo que reconstitui uma floresta do sagrado onde ancestralidade e decolonialidade são pilares centrais.  

Volátil (1980) – Cildo Meireles 
Volátil de Cildo Meireles (Foto: reprodução)

Utilizando um cenário fechado com o chão coberto com talco, o artista posiciona uma vela acesa no centro do ambiente, cujo ar está impregnado pelo cheiro de combustível inflamado. Cildo instiga a percepção de perigo no interlocutor através do cheiro do composto t-butil-mercaptano, utilizado para sinalizar vazamento de gás natural em áreas urbanas. Segundo o Museu de Belas Artes de Houston, Estados Unidos, “muitos espectadores associaram Volátil às câmaras de gás do Holocausto, enquanto o próprio Meireles descreve andar sobre a substância talco como andar sobre nuvens. Essas respostas vastamente díspares ressaltam a complexa natureza metafísica do trabalho e suas inúmeras associações que ficam em algum lugar entre o sensorial, o horrível e o sublime”. 

Deixar ir (2024) – Dan Lie
Deixar Ir, de Dan Lie (foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo)

Em Deixar Ir, a artista paulista Dan Lie utiliza materiais como flores, tecidos e outros elementos naturais que se transformam ao longo do tempo, evocando ciclos de vida, morte e renascimento. Enquanto flora e fungos brotam da instalação, outros elementos morrem e se decompõem, criando uma atmosfera de cheiros que se tornam cada vez mais fúnebres conforme o avanço do tempo, convidando o público ao exercício de convívio com esses seres e seus ciclos. A obra de Dan Lie, exibida na Pinacoteca de São Paulo, propõe uma reflexão sobre desapego, transitoriedade e a conexão entre o humano e o não-humano.

Estruturação do Self (1976) – Lygia Clark 
Estruturação do Self (Foto: reprodução)

Na obra terapêutica, a pintora e escultora Lygia Clark (1920 – 1988) dispõe sobre o interlocutor aquilo que chamava de objetos relacionais, conduzindo sua participação ativa na proposta artística. Os objetos utilizados são marcados por cheiros característicos, que dentre a densidade de suas dimensões, carrega no aroma um dos principais aspectos da instalação no que diz respeito à estruturação de si mesmo a partir da interação desses objetos com o corpo. Uma recriação da obra da artista foi apresentada na 13ª Bienal do Mercosul em Porto Alegre, 2022.

quem procura o que não guardou, quando encontra não reconhece – JeisiEkê de Lundu (2024) 
Foto: reprodução

Nesta instalação, a artista nascida nas limitações entre Minas Gerais e Bahia articula visão e olfato ao trazer uma árvore feita de papel craft suspensa sobre um círculo oráculo de serragem, açafrão da terra e urucum, que derrama pelo recinto um cheiro que transforma o ambiente. Sobrepostos a estes elementos estão pratos de cerâmica com café, espelhos, cascas de insetos e uma escultura feita por cupins dentro de um aquário. Uma vez que a instalação dividiu espaço com outras obras, o cheiro emanado de sua composição se espalhou por toda a galeria, afetando a percepção do público das demais. Para JeisiEkê, a obra fala “sobre uma inquietude em descobrir mais sobre a história de meu povo, dos mundos que compõem o meu corpo. Dessa maneira, acabo por tocar na própria história do Brasil, da colonização. Porque toco em um dos temas mais sensíveis nessa terra: a memória”.

Entre os cheiros da história (2022) – Josely Carvalho 

Nesta obra, a artista multimídia paulista Josely Carvalho usa os canhões históricos do Pátio dos Canhões do Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro para explorar a memória por meio do olfato. A artista propõe um novo olhar sobre a história, destacando a respiração como um ato de pensamento crítico acessível a todos. Com um trabalho voltado para a condição feminina, Josely questiona a visão masculina dominante na narrativa histórica, revelando a violência esquecida das guerras, especialmente contra mulheres e crianças. Ao transformar a boca do canhão em um “túnel do tempo” olfativo, o trabalho conduz o público a uma experiência sensorial e reflexiva sobre o passado do Brasil. 

Cura Bra Cura Té (2019) – Ernesto Neto
Foto: Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

Em Cura Bra Cura Te, instalação construída para sua mostra Sopro na Pinacoteca de São Paulo, Ernesto Neto traz um tronco de árvore envolto em tecido de crochê repleto de substâncias orgânicas por dentro. Parte do projeto indigenista do artista que desde 2013 tem imergido na experiência povo huni kuin, do Acre, a obra conta com cinco pontos de ativação coletiva abertas ao público e traz em sua proposta a interação com as cosmogonias indígenas e da floresta, em que o humano e o não humano são vistos como parte de um todo. No espaço-ritual da instalação, o público se reúne para, através de uma energização coletiva promovida com ciranda e sacolejo de maracás, curar o tronco. As ervas espalhadas pelo chão instigam o olfato a expandir a percepção espacial do lugar por meio desse sentido, convidando o público a entender para além daquilo que pode ser visto, além de estimular a consciência coletiva sobre as raízes indígenas e africanas do Brasil.

Em suas mãos (2022) – Karola Braga
Foto: divulgação

A obra da artista olfativa Karola Braga é composta por saboneteiras de latão, textos e sabonetes líquidos instalados em alguns dos banheiros do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, durante a 13ª Bienal do Mercosul em 2022. As fragrâncias variam entre aromas familiares e abstratos, estimulando o visitante a revisitar memórias ou criar novas a partir das curtas narrativas presentes em pequenas placas posicionadas logo acima das saboneteiras. “O título do trabalho faz uma alusão a responsabilidade individual do sujeito da própria prática de lavar as mãos, que ganhou ainda mais notoriedade na luta contra a Covid-19 como também da possibilidade de que existe um algo a mais em suas mãos, no caso os cheiros, e para onde eles podem te levar, só depende das memórias individuais de cada um”, diz a autora na descrição da obra. 

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Estudante de Jornalismo na UFRGS. Repórter em formação. Gosta de escrever sobre o Outro. Na mesa de cabeceira há sempre um romance. Cearense no Sul.
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