“Vai mais para a direita. Vai mais para trás. Está difícil de te posicionar. Tua cor destoa do figurino. Tem certeza que tu quer dançar?”. Essas frases foram ouvidas por uma menina de 14 anos que ensaiava para um espetáculo de flamenco. Quem as conta é Ana Medeiros, também conhecida como La Negra, bailaora e professora de dança flamenca em Porto Alegre (RS). Esse relato ela ouviu de uma aluna que, insegura de ser posicionada na fileira da frente de um espetáculo, compartilhou essa história do passado. Aquela menina, vítima de uma agressão racista, poderia ser qualquer outra que tivesse tido a vontade de dançar e a infelicidade de encontrar um espaço nada seguro para isso.
Esse episódio é encenado no espetáculo de La Negra intitulado Flamenco Negro. A obra permite refletir acerca da influência e diáspora negra no flamenco enquanto revela o que os artistas dessa manifestação cultural sentem na pele, a partir das experiências compartilhadas.
“Através das minhas perseguições e das perseguições de companheiras que, como eu, tinham a negritude, eu comecei a pesquisar essa corporalidade. Tenho que te dizer que eu incomodo. Tem gente que fala que não é flamenco, mas cada vez mais eu pauto os meus estudos em artigos teóricos, livros. Também tem um momento que a gente entende que a perseguição foi grande, que se alguém não fizer alguma coisa, não vai ser feita”, conta Ana.
O espetáculo, que surgiu em 2021, foi recebendo novos contornos, como conta a bailaora: “Eu não quero ser a única negra dançando Flamenco. Em 2024, eu lancei a abertura de vagas para mulheres negras para fazerem Flamenco. Para minha surpresa, eu abri dez vagas e tiveram 26 interessadas. E dei essas vagas para essas 26. Essas bolsistas fizeram participação no espetáculo Flamenco Negro. Isso é revolucionário, isso não teve em lugar nenhum, tantos negros dançando flamenco ao mesmo tempo”.
Ana Medeiros explica que a influência negra do flamenco está nas origens da manifestação. Ou seja, não seria possível demarcar o momento em que essa contribuição acontece, pois ela seria constituinte da dança, faria parte de suas raízes. Munida do conhecimento da tradição e em conexão com sua ancestralidade, Ana Medeiros também toma liberdade de demarcar seu próprio espaço no flamenco: “o flamenco é um bem imaterial da humanidade. Sendo assim um bem imaterial da humanidade e sendo uma arte viva, uma arte em movimento e uma arte que não é de uma só vertente cultural, que é um grande caldeirão cultural, eu me permito de estar em Porto Alegre e fazer um espetáculo de dança flamenca contemporânea, com a minha contribuição.”
O Atlântico Negro

O Flamenco é uma das diversas manifestações culturais dos continentes europeu e americano que sofreram influência das culturas originárias de países africanos. Desse movimento náutico entre África, Europa e as Américas, surgiu o que o sociólogo inglês Paul Gilroy chama de Atlântico Negro, conceito através do qual tenta definir a modernidade a partir da diáspora negra. Essa perspectiva contesta as ideias nacionalistas que simplificam as formações dos países que conhecemos hoje, ignorando a pluralidade de culturas e grupos étnicos que os formaram.
Giuliano Souza Andreoli, professor de licenciatura em dança na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), ambientado com as discussões oriundas da teoria de Gilroy, diz que a discussão acerca das origens e influências negras estão atravessando múltiplas danças. “A gente tem essa falsa ideia que o africano foi retirado lá na África e levado para o Brasil. Outro africano foi retirado e levado para os Estados Unidos. Outro foi retirado e levado para a Espanha. Mas não foi bem assim que aconteceu. O que acontecia é que eles eram levados de um lado para o outro, que eles eram moedas de troca. Eles não eram considerados seres humanos. Eles eram considerados algo que era para fazer comércio. Então os africanos podiam ser escravizados em um ponto lá de uma determinada nação africana e ser levados primeiro para um lugar, depois para outro, depois para outro”, explica.
Nessa comercialização de sujeitos, povos distintos de diferentes línguas e culturas eram misturados em um mesmo navio com a finalidade de evitar revoltas que poderiam ser organizadas a partir da comunicação daquelas pessoas escravizadas. O professor relembra que mesmo com essa estratégia, táticas de resistência não puderam ser evitadas, destacando que a história da escravidão foi marcada por rebeliões com início nos próprios navios negreiros. “A gente vê que submetidos à mesma situação terrível de estarem escravizados, eles se entenderam. Aquelas diferenças que eles tinham antes na África não importaram mais. Muitas vezes essas nações lá que eram rivais, que lutavam entre si lá na África, se uniram”, conta Giuliano.
Esse processo dá origem a uma cultura diferente daquelas presentes no continente africano, mas ainda assim influenciada pelas múltiplas culturas de lá originárias. Giuliano explica: “a gente tem uma cultura que não é brasileira, não é cubana, estadunidense, espanhola. Ela é uma cultura atlântica, porque todas essas trocas vão fazendo com que esses ritmos musicais, essas danças influenciem muito uns aos outros.”
Sobre o Flamenco, por exemplo, o professor fala de três etapas dentro do discurso histórico: “A primeira etapa, que era bem folclorista, eram pessoas com pensamento do folclore, e elas diziam que o flamenco era uma arte puramente espanhola. No segundo momento, começaram a enfatizar a origem cigana. E agora, estudos mais aprofundados sobre as letras das músicas, sobre as estruturas musicais, têm enfatizado uma origem múltipla”.
Contribuições afro-ibéricas
Há dez anos vivendo na Espanha e envolto pela arte flamenca, Gabriel Matias compartilha a percepção das influências da dança no país europeu: “Para muita gente é difícil reconhecer que os negros aportaram a sua cultura também”.
O bailaor – nome dado aos dançarinos de flamenco -, nascido em Porto Alegre, destaca que o flamenco teve suas origens na periferia, mas que ao contrário da influência dos povos ciganos, árabes e judeus, as raízes afro-ibéricas da manifestação cultural parecem não receber o devido destaque.

“O flamenco tem influências de várias culturas, porque a Espanha tem várias culturas. Teve árabes, teve judeus, teve negros. Não podemos esquecer que a escravidão foi muito presente. Cádiz era um porto muito importante na Europa. A Espanha está de frente para a África. A Espanha teve muitas colônias na África, então negros e uma infinidade de povos que viveram no sul da Espanha criaram essa combinação perfeita para que surgisse esse movimento e essa arte”, diz Gabriel.
O bailaor explica que os diferentes ritmos do flamenco são chamados de palos. Dentre eles, os tangos e fandangos se destacam pela contribuição das culturas africanas. A cadência de doze tempos é outra influência das danças africanas facilmente percebida no flamenco, tendo em vista que outras danças tradicionais na Europa costumam contar com passos de quatro tempos. Outros elementos em comum com danças ancoradas em culturas africanas são o sentido coletivo, a falta de separação entre artista e público e entre dança, música e teatro, a improvisação, expressão pessoal e muitos outros que dão seguimento a essa lista.
Cádiz, mencionada por Gabriel, integra as cidades portuárias ibéricas que foram responsáveis por 97% de todas as viagens com origem na Europa que transportavam pessoas negras escravizadas. Essas pessoas eram retiradas de seus territórios no continente africano, levadas à península e então enviadas para as Américas. Esse passado escravista parece esquecido pelos espanhóis, segundo o relato de Gabriel: “Acho que a Espanha parece que não reconhece que teve escravidão. Não se fala muito que teve escravidão em larga escala. Em larguíssima escala. É como se esse passado e essa influência ficassem meio de lado. Não se fala.”
O protagonismo afro no Choro
Processos semelhantes ocorreram com gêneros latinos, como o tango argentino e o candombe uruguaio. No Brasil, é consenso que a contribuição africana deu origem a diversas manifestações socioculturais que estão na base da identidade brasileira, como o samba, o choro, o maracatu, o carimbó e outros. Como escreve Beatriz de Oliveira na reportagem “Origem popular e negritude apagada: como se formou o choro?”, a música instrumental de ritmo pulsante, melodia cativante e carregada de improvisação tem origem popular. No entanto, passou por um processo de embranquecimento e distanciamento dessa origem no imaginário comum.
“No século XIX, a gente tinha um trânsito de músicas que vinham da Europa que eram para serem dançadas nos salões. E uma classe operária, que não tinha acesso ao contexto mais nobre de músicos de orquestra, criou as chamadas orquestras de pau e corda, com instrumentos de madeira. Era a flauta, o violão e o cavaquinho, o trio básico do choro”, conta Anna Paes de Carvalho, cantora, compositora, pesquisadora de choro, na matéria publicada no Nonada.
“Esse embranquecimento que o choro sofreu vem como uma opção ao projeto eugenista pós-abolição que em teoria não teve êxito como planejado, mas, afetou severamente a classe de músicos negros das orquestras que eram, até então, a maioria entre os anos 1930 e 1940”, explica a pesquisadora.
Desde a infância, Ana Medeiros sabia que o choro era negro e popular. O avô tocava a viola e a vó as castanholas do flamenco. Essas duas expressões, aparentemente distantes em cultura, podem apresentar uma mesma origem: o continente africano. É essa união entre as manifestações culturais apresentadas na casa dos avós que Ana Medeiros pretende levar para o palco em seu novo espetáculo, articulando o choro e o flamenco em um diálogo.