Lucas Veloso, especial para o Nonada Jornalismo*
Acostumadas a produzirem informação diariamente, as jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias sentiam falta de um noticiário que falasse do próprio quintal e dos vizinhos: a região Amazônica e seus habitantes. Foi com o desejo de mudar isso na prática que, em 2013, a dupla criou a agência Amazônia Real para incluir ribeirinhos, quilombolas, indígenas e os diversos povos da região na cobertura do jornalismo.
Doze anos depois de criado, o veículo se tornou um modelo de como o jornalismo “das margens” impulsiona a inclusão e o desenvolvimento local. Com mais de 2 mil reportagens e reconhecimento global, já formou mais de 200 comunicadores indígenas e ribeirinhos, fortalecendo o Norte do país, além de vozes pouco amplificadas do território.
Nesta mesma toada, nos últimos anos, veículos e iniciativas Brasil afora conquistaram espaços relevantes. Eles ampliaram a circulação de notícias sobre direitos humanos, diversidade e cidadania, impactando milhares de leitores e consolidando novos modelos de sustentabilidade no jornalismo brasileiro.
O impacto desses veículos abriu caminho para importantes reconhecimentos nacionais e internacionais, em especial das organizações de jornalismo sem fins de lucro, cujo principal propósito é ver a notícia como um bem público e não como um produto. A Agência Mural, veículo voltado à cobertura das periferias de São Paulo, conquistou em abril deste ano, a categoria internacional do prêmio AMIC de jornalismo local na Espanha pelo trabalho que realiza que a Mural realiza nos territórios. Na conta, a Amazônia Real também já ganhou o Prêmio Rei da Espanha, o mais importante prêmio de jornalismo ibero-americano, em abril de 2019.

Avanços e conquistas
Lançada em novembro passado, a pesquisa “Tijolo por Tijolo”, de Anderson Meneses, fundador da Agência Mural, ouviu 11 organizações no país. Segundo dados levantados, essas iniciativas já criaram mais de 60 empregos diretos e indiretos. O autor indica que “o jornalismo pode ir além do que produzir informação”, diz. “Podemos gerar pertencimento”, e que essas construções “legitimam, divulgam, sugerem pautas e fortalecem o impacto das organizações no Brasil”. Ainda segundo o estudo, as campanhas movimentadas por esses veículos apresentaram taxas de engajamento 30% superiores à média nacional.
O Atlas da Notícia, de 2023, revelou que o Brasil reduziu em 8,6% os desertos de notícias, com 256 municípios deixando essa condição. A expansão de veículos digitais e rádios comunitárias, muitas vezes lideradas por coletivos periféricos, foi essencial para essa transformação, impulsionando economias locais e democratizando o acesso.
De acordo com os dados, o Nordeste, por exemplo, viu 87 municípios saírem da condição de deserto de notícias em 2023. Do centro-oeste, em Mato Grosso do Sul, Tero Queiroz, responsável pela Teatrine TV, destaca que o veículo surgiu em uma região que se “afogava nas falsas notícias”, com a meta de “apresentar ao público o que havia de melhor na produção artístico-cultural do Centro-Oeste e seu impacto”.

Diretora do laboratório da Énois, organização que apoia coletivos nascentes das periferias, Sanara Santos indica que vê novas possibilidades de fazer jornalismo surgindo nas últimas. “Há a ideia que o jornalismo está morrendo, mas acredito que as velhas práticas estão morrendo”, diz a diretora, que é a primeira mulher trans e negra a liderar uma organização de jornalismo no país. “A gente está vendo um nascer de novas práticas e outras formas de fazer, empreender com informação, de uma forma justa”.
Sanara ressalta a importância do vínculo e do impacto no território. “O jornalismo periférico mostra que a informação não precisa ser paga, mas precisa ter valor. E isso se constrói com vínculo e impacto no território”, observa. “As periferias estão mostrando que é possível fazer jornalismo com diversidade, com impacto, e também viver disso — não só sobreviver.”
Apesar dos desafios de sustentabilidade, como a escassez de editais contínuos e a sobrecarga de funções, essas organizações desenvolveram estratégias próprias. Anderson Meneses, da Agência Mural, aponta que uma das chaves está na diversificação das atividades. “Combinar doações com editais públicos e de organizações privadas, parcerias com empresas, venda de produtos, prestação de serviços e até negociação com as mídias tradicionais pode trazer uma múltipla entrada de recursos”.
A Agência Mural, por exemplo, combina recursos de editais, parcerias com empresas, venda de produtos e serviços e iniciativas como o Clube Mural. A Teatrine TV, no Centro-Oeste, segundo Tero Queiroz, se mantém com editais e doações recorrentes da comunidade, destacando que “formatos inovadores custam caro”.
“Não encaramos como contra-narrativa”
A luta por espaços próprios de narrativa se manifesta em todas as regiões do país. Criada em 2017, a TV Quilombo surgiu em um cenário de apagamento midiático e violações constantes de direitos básicos nas comunidades quilombolas do Maranhão. Sem visibilidade na mídia, e enfrentando dificuldades no acesso à saúde, educação e políticas públicas, a comunidade decidiu construir seu próprio veículo de comunicação. “A gente vivia um processo de violação e como vive ainda hoje, mas nesse período era ainda mais intenso. Então criamos nosso próprio espaço de visibilidade”, afirma Raimundo Quilombo, fundador da organização.

Partindo do Quilombo Rampa, em Vargem Grande, estado do Maranhão, a proposta do veículo é o que eles chamam de “comunicação de dentro para dentro”: um processo em que a própria comunidade conta sua história, sem mediações externas. “A gente não encara como contra-narrativa, nem como nova narrativa. É a narrativa real, que sempre existiu. Não é dar voz a ninguém — é garantir que as vozes que já existem sejam ouvidas, do jeito que têm que ser”, resume o responsável. Essa autonomia narrativa se articula com a luta por direitos e o fortalecimento da identidade quilombola.
A inovação da organização também está na forma como incorpora o que chamam de “tecnologia ancestral”: câmeras feitas com papelão, tripés de bambu, drones artesanais, microfones construídos com gravetos. “A tecnologia moderna precisa se adaptar à nossa realidade. A gente conecta o ancestral com o presente, de forma fiel à nossa essência”, explica.
Autossustentável desde o início, a TV Quilombo se mantém com apoio direto da comunidade e colaborações pontuais de editais. “A gente tem uma lógica de circularidade. Se entra um real, é dividido entre todos. Se um dia entrasse um milhão, seria também. Não é sobre emprego no modelo tradicional — é sobre acolhimento”, conta Raimundo. A força doa iniciativa está, segundo ele, na capacidade de construir visibilidade sem depender das estruturas que historicamente inviabilizam os quilombos.
Do local para o internacional
A transformação constante é uma característica das iniciativas criadas com o objetivo de ampliar o acesso à informação. Em 2013, quando os jornalistas Ronaldo Matos e Thais Siqueira criaram o Desenrola e Não Me Enrola, não imaginavam que uma década depois estariam falando dele para o mundo. Fundado como um blog focado na cobertura jornalística das periferias de São Paulo, o Desenrola evoluiu para um portal de notícias, em 2017, e hoje atua como laboratório de formação crítica e combate aos desertos de informação.
Uma da siniciativas de maior projeção foi o Território da Notícia, criado em 2021. A iniciativa exibe conteúdos jornalísticos de diversos veículos das periferias, como o Periferia em Movimento e a Agência Mural, em totens digitais instalados em pontos de grande circulação de São Paulo — como hortifrutis, açougues, farmácias e mercados de bairro. Hoje, a iniciativa impacta cerca de 350 mil pessoas por mês — o equivalente a 4,2 milhões de acessos por ano — com conteúdo produzido por coletivos periféricos, além de abrir espaço para divulgação de comércios e serviços locais.

Em março deste ano, Bangalore, no sul da Índia — conhecida como o ‘Vale do Silício indiano’ sediou um dos mais relevantes encontros globais voltados à inovação em soluções para desafios complexos da sociedade. Entre os participantes esteve Ronaldo, como representante do Brasil em uma imersão internacional com foco na interseção entre jornalismo e educação midiática.
O evento reuniu lideranças e organizações comprometidas em enfrentar questões como o analfabetismo midiático, a desinformação e os desertos de notícia. “Estamos traduzindo as urgências globais a partir das lentes da quebrada. Não é só sobre estar no debate — é sobre mudar o enquadramento”, afirma Ronaldo.
Ele destaca a relevância de estar conectado com iniciativas de impacto global. “Isso evidencia como a tecnologia da notícia tem ampliado o alcance e a influência do jornalismo periférico em um contexto internacional, gerando uma disputa histórica por narrativas que enfrentam as desigualdades”.
Para além dos modelos inovadores de fazer a notícia chegar, as iniciativas também redefinem a imprensa no país. Um exemplo prático é que, em contraste com os tradicionais veículos de imprensa, onde profissionais brancos ainda predominam em cargos de liderança, essas organizações independentes promovem a diversidade em sua estrutura e comando.
De acordo com o estudo Perfil Racial da Imprensa Brasileira”, de 2021, 20,1% dos jornalistas nas redações se autodeclaram negros (pretos e pardos), enquanto 77,6% são brancos. A discrepância é ainda mais acentuada nos cargos de chefia: 61,8% dos profissionais brancos ocupam funções gerenciais, como editores e chefes de reportagem, contra apenas 39,8% dos negros. De 2024, um levantamento do Reuters Institute mostrou que, entre os principais meios de comunicação do país, nenhum era comandado por uma pessoa negra na posição de editora-chefe.
Por outro lado, as organizações feitas a partir das margens, como a Agência Mural, reportam que sua equipe é majoritariamente feminina (55%) e negra (57%), conforme dados da própria organização. O mesmo cenário é replicado nas demais redações presentes nesta matéria.

O periférico como presença permanente
O programa “Sobre Nós”, da TVE-RS, do Rio Grande do Sul, com a jornalista Clarissa Lima, mostra que o desejo de criar espaços mais plurais na imprensa não pode ser uma tarefa apenas das organizações do terceiro setor. Locado em uma emissora pública, o programa indica uma abertura de espaços específicos para que mais vozes ecoem no jornalismo feito também por uma TV pública.
No ar desde março de 2024, o semanal com a apresentação da jornalista Clarissa Lima visibiliza projetos e pessoas que valorizam a diversidade e combatem as desigualdades sociais. “Todos os assuntos de alguma forma, de outra, atravessam as questões periféricas, porque quando a gente fala de racismo, a gente está falando das pessoas que são mais atingidas, que são as pessoas que residem nas periferias”.
No outro extremo do país, em Belém, às vésperas da COP30, o papel dessas mídias que transformam as narrativas se torna ainda mais estratégico. Enraizadas em comunidades historicamente excluídas das decisões globais, são elas que traduzem para a linguagem local temas como justiça climática, bioeconomia, segurança alimentar e adaptação comunitária.
“Será a primeira vez que a COP ocorre na Amazônia, e a Amazônia Real vai estar em casa. Estamos desde 2024 intensificando a cobertura dos temas da conferência porque nossos leitores cobram isso: querem entender a crise climática a partir da realidade da floresta e dos povos que nela vivem”, resume Kátia Brasil.
“O jornalismo feito pelas periferias e pelas pessoas negras têm ensinado que a informação precisa ser levada até as pessoas. Quem produz a informação precisa se preocupar com onde ela chega — é isso que o jornalismo periférico faz todos os dias”, finaliza Sanara.

Lucas Veloso
É jornalista audiovisual, documentarista e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como TV Cultura, UOL, Folha de S.Paulo e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.