Ana Luiza Rigueto*
Rio de Janeiro (RJ) – A poeta e tradutora Angélica Freitas é autora, entre outras obras, de Um útero é do tamanho de um punho, lançado em 2012 pela Cosac Naif e reeditado pela Companhia das Letras. O livro se tornou um marco na poesia contemporânea brasileira, influenciando gerações com seus poemas críticos, bem-humorados e feministas.
Além de Um útero é do tamanho de um punho (vencedor do Prêmio APCA), a autora também publicou Rilke Shake (2007, vencedor do Best Translated Book Award nos Estados Unidos, em 2015), Canções de Atormentar (2020) e Mostra Monstra (2025)..
Angélica Freitas nasceu em 1973, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Aos 15 anos, leu Ana Cristina César pela primeira vez, passando a ter a poeta de À teus pés como forte influência. É graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, profissão que exerceu durante alguns anos, com passagem pelo Estadão. Antes disso, chegou a cursar Letras mas abandonou o curso – um professor disse que ali não era lugar para quem quisesse escrever e ela concordou.
Outro acontecimento importante para sua literatura foi uma viagem à Argentina, quando decidiu fazer um livro de poemas como projeto, sobre algo importante para si – ser lésbica e mulher. Então surgiu Um útero é do tamanho de um punho.
A entrevista que se segue foi concedida, em um primeiro momento, com exclusividade para a segunda edição do jornal Sola Grossa, um jornal impresso literário e cultural LGBTQIAPN+, idealizado por Caroline Fernandes e do qual sou uma das editoras. A edição do jornal, de alcance mais restrito, passou a circular em dezembro de 2024, um mês antes da publicação de Mostra Monstra em janeiro de 2025 pela Círculo de Poemas, seu mais recente livro. Agora está também na íntegra no Nonada Jornalismo, para que alcance ainda mais leitores.
Na entrevista, Angélica Freitas fala, entre outras coisas, de como ser lésbica está intimamente ligado ao modo como usa a linguagem: “Durante boa parte da minha vida precisei tomar muito cuidado, porque meus relacionamentos eram segredo. Era isso ou a porta da rua. Ou, talvez, uma surra e a porta da rua. Ser lésbica me levou a ter carteira assinada com 16 anos de idade. Nos anos 1990, a palavra para lésbica em Porto Alegre era ‘entendida’: alguém que precisava captar finos sinais, ler nas entrelinhas, entender os códigos.”
Confira a entrevista na íntegra:
Nonada – O que você anda lendo ultimamente?
Angélica Freitas – Estou numa fase literatura húngara, porque acabei de visitar Budapeste. Tenho lido Laszlo Krasznahorkai (Seiobo down below, em inglês) e uma poeta que descobri por acaso na biblioteca, Agnes Nemes Nagy. É maravilhosa. Leio muitos livros ao mesmo tempo, leio devagar, desisto de livros. Gosto de aleatoriedade.
Nonada – Camila Sosa Villada diz que nossa infância dita o que escrevemos na idade adulta. Você acha que algo da sua infância ainda dita a sua poesia hoje?
Angélica Freitas – Tenho certeza disso. Nunca me livrei totalmente de algumas primeiras impressões do mundo, que aconteceram já no jardim de infância: a predominância de brutos e idiotas, por exemplo. Talvez a minha escola tenha sido mais punk que a média? Para não falar nas tiranias familiares. Foi todo um esforço para ver o bom do ser humano e mais tarde um esforço maior ainda para aprender a não julgar. Ainda fico pasma com a burrice e a maldade; o amor me emociona. A grande improbabilidade de estar aqui eu entendi desde pequena, e me emociona.
Nonada – Pela sua experiência com oficinas de poesia, o que faz uma oficina literária ser boa?
Angélica Freitas – Quando faz as pessoas escreverem muito. Na minha experiência, as pessoas não querem escrever muito, nem fazer exercícios. Querem já uma apreciação, uma resenha. Talvez elogios. O que também faz uma oficina ser boa é a disposição de quem participa, a abertura, a curiosidade, a escuta. Mas a minha oficina ideal é aquela que te põe pra lixar o chão feito Karatê Kid.
Nonada – Na vida ou nas artes, o que é engraçado, o que te faz achar graça?
Angélica Freitas – Às vezes eu me surpreendo rindo alto de uma coisa que vi no Instagram e sinto um pouco de vergonha se estou, por exemplo, no ônibus. Mas também adoro quando isso acontece: é um espasmo! Uma coisa do corpo. Minhas irmãs e minha namorada vivem me mandando memes brasileiros, são os melhores do mundo.
Nonada – Li uma entrevista em que você menciona que é importante separar o autor da obra. Como acha que ser lésbica entra na sua poesia?
Angélica Freitas – Ser lésbica me preparou para usar a linguagem. Para pensar no que se oculta, no que se revela. Com minha primeira namorada, trocávamos cartas cifradas. Durante boa parte da minha vida precisei tomar muito cuidado, porque meus relacionamentos eram segredo. Era isso ou a porta da rua. Ou, talvez, uma surra e a porta da rua. Ser lésbica me levou a ter carteira assinada com 16 anos de idade. Nos anos 1990, a palavra para lésbica em Porto Alegre era “entendida”: alguém que precisava captar finos sinais, ler nas entrelinhas, entender os códigos.

Nonada – Dos livros que você escreveu, tem um preferido? Por quê?
Angélica Freitas – Não tenho um livro meu preferido! Não consigo.
Nonada – No ensaio “A imagem”, Octavio Paz diz que um poema só pode ser escrito de uma única maneira, qualquer modificação o torna outro. O que não aconteceria na prosa, que por diversos caminhos pode chegar a um mesmo lugar. Por isso, talvez, sugerir edições em poemas seja mais sensível – ou poetas são mais sensíveis. O que acha disso tudo? Poetas são sensíveis demais?
Angélica Freitas – Eu não acredito em editar excessivamente um poema. Algum corte, sim, alguma troca de palavras. Para mim um poema bom já nasce quase pronto, e é fruto de muito trabalho feito antes. É fruto talvez de outros poemas que não deram certo, que serviram de todo modo como exercício. Poetas são sensíveis demais, poetas precisam ser sensíveis demais, não tem jeito, mas é preciso aprender a se cuidar, contudo.
Nonada – Existe uma relação entre poesia e música no seu trabalho. Seu conterrâneo Vítor Ramil musicou seus poemas, no álbum Avenida Angélica. Seu último livro se chama Canções de atormentar. Há uma parceria, também musical, entre você e Juliana Perdigão, sua namorada. Onde começa a música e termina a poesia no que você faz? Se é que é possível falar nesse limite.
Angélica Freitas – A música sempre foi importante na minha vida, talvez tenha sido mais importante que a literatura. O que mais me nutriu foi certamente a música. Sempre prestei muita atenção nas letras, copiava-as em cadernos, traduzia, “tirava as letras” numa era pré-internet: escutava a canção e ficava anotando as palavras em inglês. Quem faz isso hoje? Tenho certeza que isso também me ensinou a escrever. A emoção de cantar também pode ser levada para uma leitura de poemas.
Nonada – O que você tem escrito, como está a vida de escritora na Alemanha? Vem livro novo pela Círculo de Poemas, né?
Angélica Freitas – Está boa a vida de escritora na Alemanha. É o meu quarto ano aqui e este foi o melhor em termos de trabalho. Também tenho ajudado a organizar um ciclo de leituras, o Probador de Poesías, com a poeta venezuelana Regina Riveros. Temos a nossa comunidade poética latino-americana aqui, e fiz amizades maravilhosas. E sim, em janeiro publico uma plaquete de poemas e desenhos, fiquei feliz com esse convite da Círculo de Poemas.
Nonada – Vamos fazer um ping-pong, jogo rápido. Diga um poema bom:
Angélica Freitas – Shibboleth, de Michael Donaghy.
Nonada – Uma poeta sapatão?
Angélica Freitas – Christa Reinig.
Nonada – Um poema que te ensinou algo sobre escrever?
Angélica Freitas – Poetry, de Marianne Moore.
Nonada – Uma canção bonita?
Angélica Freitas – Il Cielo in una Stanza, cantado por Mina ou por Franco Battiato.
Nonada – O último filme que amou?
Angélica Freitas – Perfect Days.
Nonada – Um/a/e poeta de poemas engraçados?
Angélica Freitas – James Tate.
Nonada – O que acende um poema?
Angélica Freitas – O fogo!

Ana Luiza Rigueto
Ana Luiza Rigueto é jornalista, crítica literária e poeta. Transita entre comunicação, criação literária e pesquisa. Publicou “Entrega em domicílio” e “Bodybuilder”.