Crédito da foto destaque: Rovena Rosa/Agência Brasil
A histórica estação de trem da Luz, a Pinacoteca e a Sala São Paulo são espaços conhecidos da capital paulista. Esse território frequentado pela população ao longo do dia, transforma-se à noite. Quem passa pelas imediações da Luz e da Santa Ifigênia no período noturno, depara-se com o oposto do slogan de “cidade que nunca dorme”. Após às 18h, os museus e os famosos comércios de roupas e produtos eletrônicos fecham as portas. Quem ali passa, caminha por ruas desertas.
O que garante o movimento do bairro é um complexo feito com mais de 10 containers marítimos, localizado em uma praça na Rua dos Gusmões. Este endereço fazia parte da Cracolândia, região no centro da cidade reconhecida pela intensa venda e consumo de drogas, principalmente o crack.
O Teatro de Contêiner Mungunzá chama atenção de quem passa pela rua com sua estrutura diferenciada e janelas de vidro. Da calçada, é possível ver o ator dentro do camarim antes de começar a peça. Pela sustentabilidade e relação com o espaço público, a construção é considerada uma referência nacional e internacional de inovação arquitetônica.
Planejado e construído pelo núcleo artístico da Cia Mungunzá de Teatro, em 2016, o espaço apresenta peças de teatro, shows, apresentações de dança, mostras de cinema, encontros formativos, entre outros tipos de ações culturais. Já foram mais de 4.000 atividades desde a sua inauguração.

Há duas semanas, na quinta-feira (19), o clima de lazer foi substituído por tensão. Após nove anos de atividades no endereço, agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) entraram em um prédio anexo ao Teatro, que a Cia utiliza para guardar figurinos. Os guardas exigiram a desocupação do espaço devido à uma ordem de despejo emitida pela prefeitura de São Paulo em 06 de agosto, com prazo de quinze dias. Na notificação, o subprefeito da Sé afirma que o prazo é “improrrogável sob pena da implementação da gradação coercitiva”.
Após intensa manifestação do setor cultural, a Justiça de São Paulo concedeu liminar que garante a permanência, por 180 dias, do Teatro de Contêiner Mungunzá e do Coletivo Tem Sentimento no imóvel. Além disso, a decisão manteve a programação do teatro confirmada até dezembro deste ano. Além da ministra da Cultura Margareth Menezes, outros nomes importantes já se manifestaram a favor da permanência do Teatro de Contêiner, como as atrizes Fernanda Montenegro, Marieta Severo e Fernanda Torres.
Truculência com a cultura
De acordo com Marcos Felipe, um dos fundadores e integrantes da Cia Mungunzá, a ação da polícia foi truculenta. “Eles nos tiraram a força. Foi muito violento e evidenciou o descaso da prefeitura e do governo com o nosso trabalho.”. Vídeos nas redes sociais do teatro mostram o momento da chegada dos agentes com uso da força e spray de pimenta.
A ação ocorreu dias após a Cia Mungunzá enviar um ofício à Subprefeitura da Sé pedindo para que o prazo da desocupação fosse prorrogado para 120 dias com o intuito de garantir a continuidade da programação cultural já aprovada em editais públicos e em execução.
Desde 2023, a manutenção do Teatro de Contêiner Mungunzá foi contemplado pela 41ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura, cujo período de vigência se encerra em dezembro de 2025. Até essa data, o Teatro de Contêiner já tem diversas programações agendadas, incluindo um circo com crianças de escolas públicas.
O Teatro de Contêiner foi construído em 2016, após o grupo realizar um mapeamento dos terrenos públicos ociosos na cidade de São Paulo. De acordo com Marcos, desde o início, o grupo estabelece contato com o poder público e solicita uma regularização permanente.
“Embora não estivéssemos legalizados do ponto jurídico, para a cessão do espaço, sempre houve uma relação amistosa. Nós recebemos diversos programas públicos vinculados à Secretaria Municipal de Cultura. A relação mudou após a atual gestão”, explica.

Atualmente, a prefeitura é comandada por Ricardo Nunes (MDB) e o governo está a cargo de Tarcísio de Freitas (Republicanos). De acordo com Marcos, Nunes já ofereceu outros terrenos para a construção do teatro, mas ambos não possuem a dimensão ou as estruturas adequadas por serem inóspitas ou ruidosas, o que atrapalharia o projeto.
Conjunto habitacional
Segundo comunicação oficial de Ricardo Nunes em suas redes sociais, o terreno do Teatro de Contêiner será desocupado para a construção de um conjunto habitacional.
Desde 2021, o teatro tem como vizinho o Complexo Mauá, um conjunto com duas torres. Os 210 apartamentos foram entregues na promessa de um processo de revitalização do centro de São Paulo, com a participação da Prefeitura e do Governo Estadual, por meio de uma parceria público privada (PPP) e financiamento da Caixa Econômica Federal.
Plataformas online de aluguel oferecem uma unidade de apartamento no Complexo no valor total médio de R$2.000,00, ressaltando sua localização próxima à Estação da Luz e Sala São Paulo.
Com a chegada de novos empreendimentos imobiliários, em maio, o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de SP emitiu um ofício à prefeitura e à secretaria de cultura, expondo preocupação com a possibilidade de remoção do Teatro de Contêiner.
“Pedimos ao senhor prefeito e ao senhor secretário, que protejam o referido equipamento cultural dos arroubos vinculados à especulação imobiliária, bem como, que o mesmo seja regularizado e vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa de São Paulo para que não sofra com políticas públicas escusas momentâneas”, diz a nota.
Teatro de Contêiner não é o primeiro
O documento enviado pelo Sindicato também cita o Teatro Vento Forte, que foi demolido pela prefeitura em fevereiro deste ano, causando repercussão nacional.
O Teatro Vento Forte foi fundado em 1974, no Rio de Janeiro, pelo ator e dramaturgo Ilo Krugli. Uma década depois, foi transferido para São Paulo e se fixou no Parque do Povo, localizado no bairro do Itaim Bibi, zona sul de São Paulo.
Ao longo de quatro décadas, o projeto utilizou três espaços do parque, sendo um deles cedido à Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul e Roda de Capoeira do Mestre Meinha. Após o falecimento de Ilo Krugli, em 2019, as atividades do teatro estavam pausadas, porém, o espaço guardava todo o acervo do Teatro Vento Forte, incluindo figurinos e cenários. A capoeira, entretanto, seguia em funcionamento normalmente.
Ao chegar no espaço no dia 13 de fevereiro para dar aula, Mestre Meinha se deparou com o caos. Paredes derrubadas, instrumentos jogados, objetos e figuras sagradas quebradas. Ele alega que não houve qualquer aviso prévio direto. Mestres de capoeira de todo Brasil demonstraram indignação e apontaram a ação como racista por agir com truculência em um espaço destinado à uma manifestação cultural da população negra.
Messias do Santos, mais conhecido no mundo da capoeira como Mestre Meinha, iniciou na capoeira no ano de 1966 e é considerado uma referência na história da capoeira de São Paulo.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) emitiu uma nota pública lamentando a demolição e ressaltando a importância da Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul. O Ofício de Mestres e Mestras de Capoeira e a prática da Roda de Capoeira são bens registrados como Patrimônio Cultural do Brasil desde 2008 e como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade desde 2014.
O Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito civil para investigar a demolição. No inquérito, consta que o Iphan e o Ministério da Cultura também se manifestaram contra a remoção dos equipamentos culturais e pediram ações para sua reconstrução.
A prefeitura foi procurada pela reportagem para explicar a ação da Guarda Civil Municipal no Teatro de Contêiner e a demolição do Teatro Vento Forte e da Escola de Capoeira Angola, mas não retornou até o fechamento do texto.
Diversidade cultural é central na atuação
Após a ação da Guarda Civil Municipal no Teatro de Contêiner, o espaço foi frequentado por seus admiradores e movimentos sociais e estudantis. Na noite após a entrada dos agentes, membros da União Estadual dos Estudantes de São Paulo pernoitaram no teatro e realizaram assembleias para ocupar o espaço.
“O teatro de contêiner é uma ferramenta muito importante para a organização do movimento cultural na cidade. É muito contraditório o que a prefeitura de São Paulo alega porque a cidade tem mais imóvel vazio do que gente na rua, então existem opções. O teatro é um movimento que faz parte dessa região”, conta Tawan Antunes, um dos organizadores da UNEE.
Essa relação do Teatro de Contêiner com o território que contorna o bairro da Luz também é apontada pelo articulador cultural Hever Alvz. Ele conta que o espaço é agente difusor de ações culturais pela articulação com coletivos, como o Tem Sentimento, uma organização sem fins lucrativos que atua no território da Cracolândia oferecendo capacitação em corte, costura e economias criativas, além de assistência para mulheres cis e trans em situação de vulnerabilidade.

O espaço também é frequentado para os ensaios do Blocolândia, Bloco de Carnaval organizado por trabalhadores, militantes e usuários do território conhecido como Cracolândia. “Para além da parte artística, o Teatro de Contêiner vem para minimizar adversidades sociais”, ressalta.
Hever Alvz também é responsável pela curadoria artística do Negras Melodias Show, um dos eventos de maior destaque do teatro. Criado em 2021, o projeto oferece ao público uma curadoria de artistas que exploram a diversidade da música negra, com foco em música autoral.
“Nós oferecemos pockets shows e bate papo com os artistas que estão construindo o cenário da música contemporânea da cidade. A ideia é registrar essas sonoridades e mapear o diálogo entre o passado, presente e futuro da música afro-brasileira; além de promover a valorização e visibilidade desses artistas. São pessoas de diversas regiões de São Paulo, do centro à periferia, de outros estados e até países”, conta.
Para o público é uma oportunidade de adentrar no teatro, que apresenta um clima intimista, acompanhado de um vinho ou cerveja vendida da casa, e conhecer novos artistas do soul ao funk, passando pelo jazz e o rap. As apresentações costumam acontecer às quintas-feiras.
Ao longo desses nove anos de atuação, o Teatro de Contêiner tem privilegiado a diversidade em sua programação, incluindo apresentações culturais de artistas negros, LGBTQIAPN+, coletivos de redução de danos para usuários de drogas, entre outros.