Árido reúne time de escritores para mostrar um Brasil de elementos fantásticos e realistas

Livro traz escritores das cinco regiões do Brasil para dialogar com o clássico Vidas Secas, de Graciliano Ramos
Xilogravura de Gessica Ferreira/editora Rocco

É indiscutível que uma das forças de um clássico literário é a permanência. A obra Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos, permanece. O livro, publicado em 1938, continua sendo lido como uma produção incontornável da literatura em língua portuguesa. Ao narrar a história de uma família de retirantes do sertão, que foge da seca e da fome, explora dramas muito humanos e, portanto, universais. 

A prosa de Graciliano, lida e estudada sob a ótica do que se convencionou a chamar de “Romance de 30”, é mais do que uma reflexão sobre as desigualdades sociais. Quase um século depois, pode ser compreendida também pelo prisma dos efeitos das mudanças climáticas. Assim, Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais novo e o menino mais velho — e até mesmo a cadela Baleia, por que não — podem ser atualizados para a ideia de refugiados climáticos ou migrantes do clima, termos que designam pessoas que deixam seus lares em consequência de fenômenos relacionados à natureza e à ação do homem nos ecossistemas.  

O tema do meio ambiente aparecerá — mas não somente ele — em Árido, coletânea de contos lançada pela editora Rocco no final de 2024. O livro se propõe a contar “histórias de outras vidas secas”, em um diálogo direto com a obra clássica de Graciliano Ramos. São cinco escritores de diferentes partes do país, representando cada uma de suas regiões, a saber: Norte (Tanto Tupiassu), Nordeste (Cristhiano Aguiar), Centro-Oeste (Fabiane Guimarães), Sudeste (Ana Paula Lisboa) e Sul (José Falero).  

O primeiro conto da obra é da goiana Fabiane Guimarães. No conto “Os pioneiros”, ela repete sua prosa fluida já vista em Como se fosse um monstro (Alfaguara, 2023) e Apague a luz se for chorar (Alfaguara, 2021). Agora, Guimarães explora também a questão da passagem do tempo e a decolonialidade. É interessante pensar que, em Vidas Secas, o leitor não está diante de nenhuma personagem idosa. Mas Guimarães opta precisamente por centrar sua narrativa em uma mulher quase nonagenária, Fátima, que vive isolada em uma área rural. 

Fátima prepara sua casa simples para receber “o povo que lia cavernas”. Logo o leitor entende que a idosa irá receber uma equipe de cientistas que estudará pinturas rupestres de uma caverna pertencente ao seu rancho. O grupo, porém, opta por ficar acampado. Eles representam a dicotomia entre campo e cidade, tão presente no Romance de 30. Para Fátima, os estudiosos são uma oportunidade de socializar após tantos meses sozinha. O narrador onisciente revela que são 19 meses sem ver o filho, que está em Brasília. 

Não é raro que escritores recorram a algumas imagens já usadas em outros textos. Tal recurso às vezes serve como uma marca da escrita, como uma impressão digital. Em “Os pioneiros”, Fátima é descrita como uma mulher velha sem dentes. Damiana, personagem de Como se fosse um monstro, também: “Damiana sorria com as mãos na boca. É que meus dentes não são bons, nunca foram, e cansei de tentar arrumar, explicou já ao abrir a porta”. 

Uma das virtudes do conto é imaginar o contato inicial de uma criança — Fátima, no passado — com as pinturas rupestres de um tempo que, para ela, é imemorial. A menina, se não tem informação, tem imaginação e é puramente sentidos. Assim, a personagem sem estudos experimenta sua primeira fruição artística com uma forma de arte ancestral. 

Fátima detém um conhecimento que não é formal. Ela sabe a cor acentuada das pinturas quando iluminadas pelo fogo; ela sabe que em noites de lua cheia as figuras parecem ganhar destaque, como se pintadas ali nas profundezas com intencionalidade. O grupo de cientistas, entretanto, não está disposto a obter esse conhecimento de Fátima. As conversas com a idosa são evitadas, eles reclamam entre si de seu café doce demais e do cheiro que ela exala. Fátima percebe o incômodo. Sua libertação da atitude colonialista dos estudiosos é simbolizada pela manhã que decide não preparar café para os visitantes. Dali em diante, o que se vê é uma elaboração sofisticada bem aos moldes do gênero conto, que exige um final surpreendente e, nesse caso, povoado por uma epifania catártica. 

O segundo conto é do gaúcho José Falero, “A campanha”. Falero mostra mais uma vez por que é um dos principais nomes da literatura nacional. Reconhecido por seus romances e contos urbanos, com personagens que habitam a periferia de Porto Alegre — como em Vera (Todavia, 2024), Vila Sapo (Todavia, 2022) e Os Supridores (Todavia, 2020), e mesmo nas crônicas de Mas em que mundo tu vive? (Todavia, 2021) —, agora se aproxima da ficção de temática do campo que marca a literatura clássica sul-rio-grandense. 

Quando conta a história de um adolescente faminto que pede comida em um restaurante de beira de estrada, na região da campanha do Rio Grande do Sul, Falero estabelece uma relação com um dos contos mais canônicos da literatura gaúcha, a lenda do Negrinho do Pastoreio, contada por Simões Lopes Neto. No conto de Falero, o menino tenta em vão receber alguma doação dos clientes ou donos do restaurante. Fora dali, descobre uma plantação de bergamotas onde pode aplacar sua fome. O guri, todavia, não contava com a punição por colher algumas frutas. 

Assim como em Lopes Neto, onde o menino negro reza à Virgem Maria durante seu castigo, o adolescente igualmente negro de Falero entoa uma oração, desta vez um Padre nuestro, em espanhol. Isso porque o menino havia nascido em Quaraí, fronteira com o Uruguai de Bella Unión. Há diversas intervenções em língua espanhola no texto de Falero, que o aproxima de uma tradição gaúcha marcada por Aldyr Garcia Schlee, Sergio Faraco e Tabajara Ruas, para citar alguns, que também exploram a fronteira cultural e linguística do Rio Grande do Sul.

Ao contar o drama do jovem Carlito, Falero expõe também o racismo. Seu narrador anuncia uma “ausência pungente” na província de São Pedro, como o estado era chamado o estado no período do império. 

O Norte surge representado pelas populações ribeirinhas e o imaginário de seres encantados. Em “A Chuva lenta”, terceiro conto da coletânea, de Tanto Tupiassu, temos um fenômeno oposto ao de Vidas Secas. No conto, há uma enchente. É a abundância de água e não a sua ausência o maior problema. Uma casa sobre palafitas, no rio, é invadida com a cheia, obrigando seus moradores a abandoná-la. A história é narrada em primeira pessoa por uma garota adotada por um casal mais velho. 

“Eu me perguntaria por que me abandonaram, por que me deram de presente a Mariinha, que, mesmo me criando e se sacrificando, nunca me beijou a testa antes de dormir desejando bons sonhos”, questiona-se a garota. Sua origem é o mistério que é revelado ao final do conto.

Tal qual Baleia, a cachorra de Vidas Secas que sonha com um mundo farto em preás para caçar e comer, a menina de “Chuva lenta” também sonha. Mas, nos seus sonhos, surge uma mulher-peixe e um baile que parece povoado por seres do fundo do rio. O conto explora, em alguma medida, elementos de horror e inova ao mesclá-los com a cultura ribeirinha. 

Foto: editora Rocco

Por sua vez, o Sudeste surge no conto “O menino mais novo”, da carioca Ana Paula Lisboa. O título do conto é uma referência direta ao capítulo de Vidas Secas  que trata justamente do filho menor do sertanejo Fabiano. Tanto em Graciliano como em Lisboa, o garoto não tem nome. Violento e, ao mesmo tempo sensível, o conto começa com a imagem da brutalidade que diariamente é noticiada no noticiário. “A cabeça estourada pela nuca”. É como se o narrador afirmasse que não é possível escapar da desumanidade que assola o lugar. Mas, o conto leva o leitor para outro caminho. Um em que a resposta à violência é a experiência humana do afeto. 

Assim, o conto de Lisboa devolve a subjetividade a quem foi tomada. A felicidade do almoço de domingo, com fartura, é uma experiência brasileira compartilhada que aparece na história. A mãe do menino mais novo costumava lhe contar a história do orixá Iroko, do tempo. O tempo acaba servindo como metáfora de todas as vidas que poderiam ser e não foram por causa da violência.  

Por fim, a coletânea encerra com o Nordeste de “Sítio Ruim’, do paraibano Cristhiano Aguiar, autor do elogiado Gótico Nordestino (Companhia das Letras, 2022). A história traz um tema caro à uma geração que vem conquistando direitos para a população LGBTQIA+ com uma personagem que é uma mulher trans. Enquanto é muito contemporâneo, ao tratar de uma personagem em transição de gênero, faz também um elo com a tradição ao evocar elementos da literatura de cordel. 

O narrador evoca o folheto “Peleja de Manoel Riachão com o Diabo” e traz o pacto com o demônio para dentro da sua história familiar e um misterioso contrato. A família é descrita como uma “procissão de amaldiçoados”, com sucessivas mortes dos homens e a prosperidade das mulheres. 

É no mundo onírico que o conto faz referência à Vidas Secas, quando o narrador sonha ser Fabiano. “Eu e minha família: minha mulher, meus dois filhos, uma cachorra magricela. Para sobreviver, a gente destroçou um papagaio, o outro bicho de estimação da família”. Mas logo o sonho se volta à resolução do mistério estabelecido no conto.

Árido é capaz de reunir excelentes escritores e escritoras da nova geração, das diferentes regiões do país, para mostrar um Brasil de elementos fantásticos e realistas. O livro prova que alguns dilemas sociais, como a fome e o racismo, ainda não foram superados.

Compartilhe
Mais sobre →

Relacionadas