Antes de começar, eu tenho três recados: Recado número um: racistas, saiam. Recado número dois: racistas, saiam. E finalmente, recado número três: racistas, saiam
Com essas frases, o poeta Nelson Maca abriu sua performance no Sarau Bem Black, em Salvador, no início dos anos 2010. A fala imediatamente impactou a atriz gaúcha Vera Lopes, que levou para a outra ponta do país o que viu e ouviu. Não era só um aviso. Era um rito. “Naquele dia o sarau estava lotado, as pessoas ocupavam um salão inteiro do bar Sankofa, no Pelourinho. E o Nelson iniciou sua fala sabendo de onde ele ia falar e para quem. Isso é muito potente”, lembra.
Inspirada por essa experiência, Vera levou a ideia para Porto Alegre e incentivou a criação de um sarau nos mesmos moldes. Assim nasceu o Sopapo Poético, um importante espaço de celebração e resistência da palavra negra no Sul do país e que resiste desde 2012.
Assim como ela, Maca inspira artistas a se conectarem com suas ancestralidades. Existe um provérbio africano que diz: “Para saber para onde você vai, é preciso saber de onde você veio.” Em muitos sentidos, essa máxima ecoa o próprio caminho de Nelson Maca, que nasceu no Paraná, mas, já adulto, mudou-se para a Bahia, mergulhou na cultura afro-brasileira e, desde então, tem trilhado um percurso de retorno simbólico à África.
O poeta costuma dizer: “Quem não pode ir à África, que vá à Bahia.” A frase resume bem seu afeto pela cidade e pela cultura negra que ecoa em cada esquina soteropolitana. Vera Lopes que também saiu do sul e há 13 anos mora na Bahia concorda e completa: “Eu costumo dizer que o Brasil é muito mais africano do que gostaria de ser“, afirma Vera.
Poeta, performer, professor e militante da palavra, Maca fez da literatura uma encruzilhada: lugar de confronto, memória e reinvenção. Ele construiu, ao longo da última década, uma obra que cruza denúncia, ancestralidade e pulsos de resistência. Gramática da Ira (2015) é um livro de poemas que fere a estrutura do racismo com palavras afiadas.
Em Go Afrika (2019), o diálogo é com a ancestralidade africana e com a cultura negra contemporânea, uma poesia que caminha com tambores e referências. Já em Relatos da Guerra Preta ou Bahia Baixa Estação (2020), ele mergulha em contos sobre a tensão cotidiana nas ruas de Salvador. E em Ani: Todos os Felas do Mundo (2021), experimenta o romance para tecer narrativas positivas e possíveis para a negritude.
Exu nas sutilezas

Agora, em 2025, lança Thank You, Exu, livro de poemas escrito durante uma residência artística no Instituto Sacatar (BA). A obra é uma oferenda poética e aponta para outras dimensões do orixá Exu: não só o senhor da rua e da malandragem, é também da criação, da cura e da pausa. Entre as páginas, é possível conhecer um Exu que se inscreve nas folhas, nos gestos cotidianos, no sopro ancestral, longe da figura demonizada pela cultura ocidental.
A capa dura, em grande formato, estampa a imagem de um galo, símbolo da transformação e da comunicação. São 21 poemas organizados em três blocos de sete textos, número consagrado a Exu. Thank You, Exu não é apenas um livro: é objeto. Ritual gráfico. O projeto, como toda a obra do autor, foi feito de forma independente. As ilustrações, assinadas por Francisco Benevides, designer e cientista social, mergulham nos animais-símbolos que atravessam a narrativa: o galo, o bode e o konkém, mais conhecido como a galinha da Angola.
A obra se estrutura em três movimentos. O primeiro, “Da forma, da formação, do movimento”, olha para a gênese segundo as narrativas nagô e o pensamento iorubá, onde o mundo começa como água e depois barro, esse primeiro barro seria Exu. O segundo, “Da língua, da linguagem, do fundamento”, explora as categorias do orixá: o comunicador, o andarilho, o que promove encontros. E no terceiro, “Da linha, da linhagem, do pertencimento”, a poesia se torna mais provocadora, mais incisiva, voltada ao enfrentamento do racismo.
Na visão de Maca, Exu é semente. É aquele que dá início, que move, que silencia e prepara. Como no itan do Chapéu de duas cores, Exu não é apenas riso ou ruído: pode ser gargalhada e silêncio. É múltiplo, ambíguo, transitório. Pode provocar confusão ou trazer clareza, dividir caminhos ou apontar direções. No conto nagô, Chapéu de duas cores, dois irmãos se desentendem ao verem cores diferentes em um mesmo chapéu usado por Exu. A essência do orixá está justamente nessa possibilidade de coexistência dos contrários. E é isso que Maca tenta mostrar com seu livro: um Exu que é folha, barro, cura e recolhimento.
A ideia de conceber esse livro nasceu da urgência em abordar o Exu das sutilezas, da beleza e da inteligência. “Não sou iniciado no candomblé, mas sou próximo da religião. Minha intenção é justamente fazer arte, poesia, não fugir disso.” Maca reconhece que ainda há pouca produção artística que trate das questões afro-religiosas com profundidade, e parte do seu gesto é esse: propor um livro que seja ao mesmo tempo político e poético, ritual e arte.
“Aprendi no movimento negro desde os 14 anos que o cristianismo foi braço da colonização”, afirma. Exu, para Maca, é o centro simbólico e poético ideal para essa travessia: “Entre os orixás, eu acho Exu bom moço. Inclusive pelas questões contraditórias.” Ele completa: “Exu é o único orixá que sabe todos os segredos. Ele circula entre todas as esferas: dos curandeiros, dos guerreiros e dos adivinhos.”
Poesia que faz tremer
Observar Maca em atuação é ir ao encontro de uma pessoa presente e generosa.A escuta acontece com todo o corpo, fala com as mãos, partilha seus poemas como quem entrega algo que não pode guardar só para si. O tempo todo ele gesticula enquanto declama, na tentativa de explicar com as mãos o que apenas a palavra não dava conta de dizer. Maca fala com o corpo. Não de forma ansiosa, mas como quem busca intensidade no que se diz ou serenidade no que acabou de ser dito. No palco, não é diferente: ele performa cada vírgula, cada ponto final.

A relação entre corpo e poesia é uma das características marcantes de seu trabalho, segundo o amigo e escritor pernambucano Marcelino Freire. Ele descreve a literatura de Maca como “um fervor, uma espécie de transe, uma urgência”, diz. “Ele geme, ele treme. Baixa nele ali o espírito da palavra mais terrena, mais terreiro. Isso é dele. Essa palavra comprometida, essa palavra que está correndo no sangue do poeta.”
Marcelino Freire lembra que conheceu Maca em Salvador. O ano era 2011 e Maca o convidou para conversar com seus alunos universitários sobre o livro Contos Negreiros (2005) que eles haviam lido e trabalhado em aula, naquele semestre. Ao chegar, Marcelino percebeu uma sala de aula com alunos muito entusiasmados, sinal, segundo ele, de que Maca também é um excelente professor.
“Em certo momento desse nosso encontro, os alunos começaram a pedir que Nelson Maca interpretasse um dos seus textos, ele não queria, mas após alguma insistência, assim o fez. E eu fiquei pasmo com a poesia dele. Uma poesia corporal, uma poesia que sabe cada palavra que está dizendo, cada entonação, cada gesto.” recorda. Naquele mesmo dia, ao final da aula, Marcelino o convidou para participar da Balada Literária — evento que criou em São Paulo, em 2006, para reunir escritores, músicos e leitores em encontros livres. Foi o início de uma parceria e de uma amizade que ainda rende encontros e palcos compartilhados.
Tamborismo: ancestralidade que pulsa do corpo
Professor de literatura, Nelson Maca é também questionador das formas com que aprendemos a nomeá-la. Seu conceito de tamborismo nasce como resposta à ideia de que toda poesia precisa ser “lírica”. “Tudo o que a gente aprende, numa história muito única da literatura é que a literatura toda vem da Grécia. Como lá se usava a lira, um instrumento de cordas usado para acompanhar os recitais poéticos, chamamos de lirismo. É como se a gente reduzisse tudo que é feito no mundo ao lirismo. Aí, eu pergunto: e a poesia africana tradicional? E a chinesa? E a pré-colombiana?”
O tamborismo é, antes de tudo, essa fratura no discurso dominante. Um gesto de retorno ao corpo, ao ritmo, à voz. Uma outra origem possível para a poesia. “Tem poesia que não vem da lira. Tem poesia que vem do corpo e do tambor. O tamborismo é a minha metáfora desconstrutora do lirismo. É a maneira negra de fazer poesia a partir dos pulsos, dos ritmos. É pensar outros jeitos de dizer “, aponta.
Para Maca, o conceito é também presença. Ele se manifesta em cena, no corpo que declama, nos sons dos tambores que não acompanham, mas dialogam. A parceria com o Mestre Jorjão Bafafé, fundador do bloco afro Badauê, é exemplo disso. “A gente faz um diálogo. Não é um fundo musical, é um diálogo”, diz. A palavra vibra junto com o toque, se expande no canto, no gesto, na dança. “É a reintegração de posse da oralidade, da corporeidade, da memória ancestral.”

Essa poética que pulsa no agora carrega um olhar para o passado. Maca caminha em direção ao futuro buscando o que ficou nas encruzilhadas do tempo. Seu pensamento se aproxima do princípio de sankofa, símbolo da tradição Akan, da África Ocidental, que ensina: às vezes é preciso voltar atrás para seguir adiante. “Essa talvez seja uma das minhas principais características. É uma construção que a gente mira no futuro, mas o que a gente está buscando está atrás. Quanto mais à frente eu vou, mais eu chego na África.”
Entre as figuras que Maca admira e com quem compartilha afinidades estéticas e existenciais, uma se destaca: Miró da Muribeca. Poeta pernambucano de versos viscerais e corpo em transe, Miró foi, como ele, um artista da palavra encarnada. “Quando vi o Maca pela primeira vez, lembrei imediatamente do Miró”, contou Marcelino Freire. “Essa coisa que vibra… Eu só tinha visto no Miró da Muribeca.” Os dois se conheceram na Balada Literária, em 2011, e construíram uma amizade que atravessou os anos. Como se a poesia tivesse selado um pacto entre eles. Quando Miró faleceu, em 2022, Maca esteve presente em sua despedida, no Recife.
Mas suas referências não param por aí. Maca reverencia nomes como Vera Lopes, Hamilton Borges, Conceição Evaristo e Cuti, vozes que atravessam seu percurso com potência. Entre as leituras mais recentes, destaca Anajara Tavares, Cizinho Afreeka, Carlos Moore e Bruno Negrão.
Maca se alimenta de artistas que fazem da palavra um corpo vivo. Carlos de Assumpção, GOG, Thaíde, Fela Kuti, Jards Macalé, Luiz Melodia, Itamar Assumpção e o próprio Marcelino Freire são presenças marcantes em seu repertório afetivo e criativo. Gente que partilha da ideia de que a palavra não basta dita: ela precisa ser vivida.