Sopapo Poético: o tambor no peito da comunidade negra de Porto Alegre

Tá na hora meu amigo antes que você esqueça/De mandar pra todo mundo o que “ce” tem nessa cabeça/Tá na hora de dizer a verdade/Abrir seu peito e cantar bem forte/Pra toda cidade ouvir

A última terça-feira do mês tem um significado especial para quem cultiva a cultura negra na Capital: é dia de Sopapo Poético. Uma noite dedicada à poesia e música negra que vem ganhando força na comunidade e começa a expandir seus seguidores. Tudo isso, a fim de celebrar o protagonismo negro em uma roda de atuações, reflexões e de convivências afrocentradas. Com homenagens a símbolos da resistência da cultura negra no Rio Grande Sul, como Oliveira Silveira e Bedeu. Qualquer um que entenda a importância do movimento negro pode ser o centro das atenções e falar a verdade, o que se passa na sua cabeça. O Sopapo Poético é o ponto negro de poesia em Porto Alegre. A atividade é dividida entre o Sarau, a Feira Afro e o Sopapinho. O encontro do mês de outubro, à convite da professora Cláudia Duarte, foi sediado pelo Instituto de Educação Flores da Cunha.

Fundadores do Sopapo Poético: Vladimir Rodrigues, Vera Lopes, Pâmela Amaro, Maria Cristina Santos, Evandoir Santos, Kyzzy Barcelos, Eliane Gonçalves, Naiara Silveira, Antônia Marisa Carolino, Horácio Lopes, Lilsi Roza, Mãe Norinha de Oxalá, Jorge Onifade, Renato Borba, Leandro Machado e Sidnei Borges.

História

O Sopapo Poético teve início em março de 2012 com o propósito de ser um lugar onde negros pudessem, através de poesia e música, expressar seus sentimentos. A ideia de criar um evento que primasse pela negritude surgiu da necessidade. Apesar de Porto Alegre ter iniciativas culturais como saraus, na época não existia uma atividade voltada para essa causa. Então, os membros da Associação Negra de Cultura (ANdC) resolveram botar em prática tudo isso que lhes fazia falta.

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Os fundadores do Sopapo Poético (Crédito: Vladimir Rodrigues/Arquivo Pessoal)

Pâmela Amaro, atriz e cantora, foi uma das idealizadoras do projeto. “Em 2009 comecei a fazer recitais de poesia negra a convite da atriz e militante Vera Lopes. Em seguida, juntamente com os demais integrantes da Associação Negra de Cultura, nos reunimos para pensar o primeiro sarau do Sopapo, inspirados em outros saraus negros do país, principalmente o Bem Black, de Salvador. Sugeri o nome ‘Sopapo Poético’, pensando que esse nome deveria trazer um símbolo da identidade afro-gaúcha, então, me veio o nosso Grande Tambor, o Sopapo! Participo do sarau desde o seu planejamento até o encontro propriamente dito, cantando e recitando, musicalizando e incentivando as pessoas a ocuparem esse espaço de poder direcionado ao protagonismo negro através da arte”, explica.

A primeira dificuldade apresentada foi o local. O lugar para que uma reunião de negros acontecesse, precisa de identidade. Segundo Vladimir Rodrigues, músico, esse foi um dos empecilhos para dar início ao Sopapo Poético. “Infelizmente a gente tem essa problemática do material. A gente tem poucos espaços. Geralmente as nossas famílias não têm aquela reserva técnica, tipo assim, não tem um casarão lá do tio do Fulano que ninguém usa. Não, a gente não tem essa situação. É muito difícil. Os bares que a gente conhecia, a grande maioria dos donos eram pessoas brancas. Então, a gente ficava assim: ‘bom, a gente vai pedir pra fazer um sarau em um lugar cujo proprietário é branco, e a gente vai falar as nossas questões da forma que a gente quer? Talvez não seja bem entendido e a gente não vá se sentir à vontade’”, problematiza.

A primeira casa a acolher o Sopapo foi a Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul (AECPARS). Um local com alguns problemas, como água e luz cortada, mas que correspondia à proposta do Sopapo. Após alguns ajustes feitos pela equipe da ANdC, a associação dos carnavalescos ganhou força e passou a realizar outras atividades. Entretanto, a última terça-feira do mês era sagrada. Dia de poesia negra. Foi assim até setembro de 2014, quando a Prefeitura de Porto Alegre fez uma vistoria e interditou a associação. A partir daí, o Sopapo adotou uma rotina itinerante, passando por outros pontos de cultura negra da cidade – o Boteco do Caninha e o Acadêmicos da Orgia são alguns exemplos. Nas última edições, o Sindicato dos Municipários (Simpa) também abrigou a atividade.

Feira Afro, Sopapinho e Sarau

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As três partes do evento não se dividem, se completam, pois todas reforçam o protagonismo do negro (Montagem: Ismael Fonseca/Nonada)

Estabelecida no Sopapo Poético, a Feira Afro reúne pessoas que desejam expor seu trabalho e comercializar seus produtos. Uma aposta no empreendedorismo negro. Roupas, artesanato, comida, são diversos itens que representam a negritude. Hararre Delfino (à esq.) é proprietária da Feito no Brazil, uma loja de artigos, vestes e instrumentos de percussão que preservam as crenças africanas e afro-brasileiras. “Eu já tinha ouvido falar no Sopapo, mas não tinha me aproximado ainda. Este é o nosso primeiro ano na Feira, e a minha relação com o Sopapo é a loja mesmo, além da cultura afro que pertencem as nossas raízes”, conta. A feira não se caracteriza apenas por comércio. Ali, histórias são compartilhadas tanto por que expõe quanto por quem se interessa pelos produtos. A troca proporcionada por um lugar que coloca o negro em primeiro plano, repercute em todos os cantos. Quem está passando na Feira Afro acaba conhecendo, e bem, os expositores. O corredor de tendas faz com que a pessoa que passou por ele adquira um pouco mais de bagagem sobre identidade negra.

Lá na mata tem cachorro do mato, caxinguelê/Chamei minhas crianças para vim me defender. A canção “Caxinguelê das Crianças”, geralmente interpretada por Pâmela, anuncia a chegada do Sopapinho. O Sopapinho é o espaço destinado às crianças. Ele tem por objetivo desenvolver o interesse pela cultura e pela poesia negra nos pequenos, propiciando um momento lúdico que incentive sua criatividade e imaginação. Sempre visando o fortalecimento da identidade étnica e da autoestima das crianças negras. As tarefas propostas pelas educadoras do Sopapinho envolvem brincadeiras coletivas, atividades artísticas visuais, canto, contar histórias e a participação da roda de poesia do sarau. No momento de interação com o grande grupo, os pequenos têm a oportunidade de se colocarem frente aos adultos, mostrando seus trabalhos ou simplesmente se apresentando, dizendo seu nome e idade. Os membros do Sopapo Poético consideram essa interação importante no processo de construção de afirmação e autoestima da criança negra, e também, como forma de incentivar a desinibição ao longo do ano.

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O microfone está ao alcance de qualquer pessoa que tenha um tambor no peito (Montagem: Luiz Silveira/Nonada)

O Sarau é o alicerce do Sopapo Poético. Uma roda de poesias, conversas e performances com duração de, aproximadamente, duas horas. Começa com a leitura das poesias. Cada interessado em se expressar pega o microfone e declama o texto em suas mãos. Essa é a hora de soltar o tambor do peito. Falar, por meio de palavras já consagradas ou próprias, a verdade, aquilo que lhe representa ou não, denunciando o racismo. São enunciados versos conhecidos como os de Oliveira Silveira e Nelson Mandela. Para os que arriscam interpretações, monólogos e versos de sua própria autoria, a atenção é ainda maior. O silêncio que se forma no sarau quando uma nova pessoa se aproxima do microfone é alto. Um sinal de respeito. A única exigência para ler ou falar algo é que tenha como protagonista o negro.

Quem não se preparou durante o último mês para declamar, poesias também são oferecidas. Basta querer ler. Além da leitura de poesias e do Sopapinho, toda edição do Sopapo conta com convidados. Nomes que praticam negritude na sociedade, nas mais variadas formas possíveis.  Cantores como Paulo Dionísio, Mombaça e Luis Vagner. E também grupos de ativismo negro, como o Coletivo Negração e o elenco da peça “Qual a diferença entre o Charme e o Funk?”. O público do Sopapo passa a conhecer e/ou ratificar quem são as pessoas que lutam pelos direitos dos negros pelo Rio Grande do Sul. Em outubro, o escritor Jorge Fróes e o artista Moisés Patrício foram os convidados da vez. Fróes estava lançando seu livro “Estamos Quites”, enquanto Patrício faz parte da Mostra X, da Galeria Ecarta, e participava do Sopapo Poético com a finalidade de mostra sua arte.

As Mulheres

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As figuras femininas presentes no Sopapo representam força, vibração e identidade (Crédito: Luiz Silveira/Nonada)

Ao falar em protagonismo negro, é necessário falar de quem faz o Sopapo Poético acontecer: as mulheres negras. Elas estão em maior nome no grupo de fundadores e em presença no público. Dão cor e vida à Feira Afro e encabeçam as atividades do Sopapinho. “As mulheres sempre estiveram presentes, desde a fundação são a maioria do grupo organizador. E a gente sempre teve essa preocupação de colocar a cara da mulher negra ali, numa forma de sujeito, de estar com o seu discurso, com as suas demandas. Isso favorece as mulheres negras, que se sentem à vontade de vir com seus turbantes, com seus blacks, seus afros, suas roupas coloridas. Acho que isso tem facilitado muito a fluência das pessoas, é um fator cultural muito bacana”, relata Vladimir.

A fundadora Pâmela Amaro diz: “Somos muitas mulheres negras dentro do Sopapo Poético, atuamos nas mais variadas frentes, somos compositoras, por exemplo, como Delma Gonçalves e Fátima Farias, somos poetisas, escritoras, como Ana do Santos e Lilian Rocha, somos cantoras e músicas como Marietti Fialho, Kizzy Barcelos, somos arte-educadoras e psicólogas como Silvia Ramão, somos produtoras, empreendedoras e manifestamos nossa religiosidade de matriz africana como Cristina Yami e como tantas outras mulheres que fortalecem nossa luta. Somos muitas e estamos ocupando todos os espaços, inclusive temos por princípio alternar os convidados, se num mês vai um homem, no outro vai uma mulher, para que sejamos igualmente contempladas. Fazemos valer nossa presença contra os estigmas inferiorizantes do racismo. No sarau temos toda visibilidade, mostramos nossos talentos, denunciamos o machismo e convocamos outras mulheres a escreverem sua história através da poesia.”

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Da esq. para a dir.: Cláudia Duarte, Maria Cristina Santos, Lilian Rocha e Pâmela Amaro (Montagem: Ismael Fonseca e Luiz Silveira/Nonada)

A professora Cláudia Duarte acompanha o Sopapo Poético desde seu início. No Instituto de Educação Flores da Cunha, em 2005, a professora Cláudia Duarte foi quem liderou as atividades que iam ao encontro da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. A medida estabeleceu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Rede de Ensino do Brasil. “O grupo de professores da área de humanas se reuniu e percebeu que a gente não sabia nada de África. ‘O que a gente vai ensinar para esses alunos?’ O que eles já sabem, a escravidão? O sofrimento? Não. Então, a gente fez várias reuniões, discutiu, e voltamos para a academia. Daí não tem material, não tem bibliografia, todas essas questões foram colocadas. A gente foi fazer um curso de pós-graduação na Fapa (Faculdade Porto-Alegrense) de História da África, eu e uma colega. Outra já estava fazendo um doutorado em quilombos, então a gente acabou se reunindo e fazendo um grupo bem legal. E desde de 2005 a gente vem desenvolvendo um projeto (de cultura negra). Todos os anos, cada ano tem uma tema, então os alunos se preparam ao longo do ano, a partir do segundo semestre, para chegar e apresentar em novembro”, diz. O convite de Cláudia, para que o Sopapo Poético acontecesse na escola que leciona se transformou em uma das edições mais especiais do ponto de poesia negra de Porto Alegre.

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Apesar de não ser um sopapo original, a conga representa a figura do instrumento no encontro (Crédito: Ismael Fonseca/Nonada)

Sopapo

O nome “sopapo” pode parecer um trocadilho para “Só papo”, mas não. O sopapo é um instrumento que representa a identidade negra no Rio Grande do Sul. O Sopapo consiste em um tambor com mais de um 1m de altura, feito de couro animal (cavalo, gado), esculpido em tronco de árvore e marcado por ter um som grave. É um instrumento totalmente gaúcho, criado a fim de buscar um elo com a África. Um instrumento que define a ancestralidade. Surgiu no sul do Estado, em Pelotas. Estava presente em muitas ocasiões festivas, como em festas religiosas e no Carnaval. Porém, com o tempo, o sopapo caiu no ostracismo, chegando em 1999, a ter apenas três no Rio Grande.

Com o intuito de chamar a atenção para a possível extinção do instrumento, o músico Giba Giba – um dos maiores difusores do sopapo – organizou o projeto Cabobu. A ação realizada em Pelotas repercutiu na sociedade, que comprou a ideia e difundiu a proposta. O Coletivo Catarse, em convênio com o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), desenvolveu o projeto “Tambor de Sopapo – Resgate histórico da cultura negra do extremo sul do Brasil”. O documentário O Grande Tambor conta a história do projeto e das pessoas que não deixaram o sopapo morrer. Na primeira edição do Sopapo Poético, Giba Giba foi o convidado.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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