Reprodução revista acadêmica Arteologie

Do ventre da árvore do mundo vem “O som do rugido da onça”

Rico Machado*

Foto: Representação de Izabella Miranha e Juri, jovens indígenas amazônicos capturados pelos exploradores Martius e Spix (Reprodução revista acadêmica Arteologie)

Talvez a principal tarefa humana – não somente de pesquisadores ou intelectuais – na contemporaneidade seja reencantar o mundo. Trata-se de dar mais uma volta no parafuso da humanidade, repensar nossos problemas e dilemas para além da razão moderna. Demasiado tarde nos damos conta que não há cultura e natureza como entidades ou categorias previamente dadas e que seus estatutos dependem de um relacionismo (não relativismo) incontornável. O som do rugido da onça (Companhia das Letras, 2021), romance da escritora pernambucana Micheliny Verunschk, é um convite a uma reflexão profunda e atenta sobre quão incivilizado é aquilo que há séculos chamamos civilização.

O livro conta a história de dois adolescentes indígenas – uma jovem da etnia Miranha e um rapaz da etnia Juri – que em 1820 foram levados à Munique, na Alemanha, após a expedição de J. B. von Spix e C. F. P. von Martius. A protagonista da história é a menina Iñe-e ou Izabella, como foi chamada pelos exploradores. Seu destino foi marcado, ainda na tenra infância, por um sumiço de sua aldeia e um encontro cosmopolítico, quando foi localizada, horas depois, próxima de uma onça.

À época era costume que algumas lideranças indígenas “trocassem” pessoas com os brancos, especialmente jovens órfãos ou filhos de inimigos capturados em combate. Esses câmbios tinham como contrapartida mercadorias e ferramentas de trabalho. Igualmente era costume dos exploradores levar “exemplares” de humanos – mas também animais e vegetais – para serem exibidos em seus países de origem. Aos propósitos científicos, somava-se uma moralidade cristã que compreendida o tráfico humano, não chamado desta forma, como um gesto de “salvação”. Tudo isso está registrado em relatórios ao rei Bávaro, a quem Spix e Martius prestavam contas.

Mais de um século e meio mais tarde, quando Roland Barthes, em sua aula inaugural no Collége de France, em 1978, disse que “a língua (…) não é nem reacionária, nem progressista: ela é, simplesmente: fascista; o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”, ele chamava atenção sobre como o modo sob o qual damos significação ao mundo pode ser violento. O que os diários de Spix e Martius revelam, antes das descrições etnográficas dos povos que conheceram, é a tenacidade dos humanos com algum poder – ainda que no caso dos exploradores fosse mais simbólico que econômico – em reduzir o mundo à própria perspectiva. Sob o signo da “civilidade” crianças foram arrancadas de sua terra, de seu povo e da própria vida em nome do progresso científico. E do fascismo da língua se fez objetividade científica, e da objetividade científica se fez desencantamento, e do desencantamento se fez a mais atroz das barbáries, como um ensaio macabro do que Josef Mengele faria cem anos depois, transformando humanos em experimentos.

Foto: divulgação

Mas voltemos ao livro. A tragédia dos jovens nativos do Brasil capturados há 200 anos e levados para o velho mundo é o retrato da barbárie colonial. A cauda longa dos horrores civilizatórios se estende aos dias atuais e conecta os povos indígenas do passado aos do presente, em um triste fio de sangue do genocídio e etnocídio que nunca cessa. Tudo isso é tratado no livro com um lirismo que convoca o que há de melhor da tradição literária de um Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, e de A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, de Davi Kopenawa.

Assim como do pó viemos e ao pó voltaremos, como diz na profecia bíblica, não deixa de ser paradoxal que a barbárie constrói e destrói seus próprios monumentos. Quando o menino Juri morreu, foi feita uma autópsia e sua cabeça foi arrancada do tronco e colocada em um pote de vidro com conservantes químicos que, com o passar dos anos, a solidificaram como uma pedra. É possível que a cabeça petrificada tivesse sobrevivido até os dias atuais, não fosse o bombardeio, em 25 de abril de 1944, que lançou sua fúria sobre Munique e atingiu a sala da universidade onde estava.

Se é do ventre da árvore do mundo que vem a onça que ruge sobre nossas cabeças, ouvir os trovões deixa de ser um exercício sensorial e transforma-se em um gesto perspectivo. E nisso está o convite que este livro nos faz, o de pensar como há histórias, como diz Itamar Vieira Junior na contracapa da publicação, que “nos parecem familiares e ao mesmo tempo distantes”. O som do rugido da onça é muito menos uma obra de realismo fantástico e muito mais um exercício de expansão das fronteiras entre a literatura ficcional, a antropologia e a historiografia. Micheliny Verunschk nos oferece, com as palavras de Iñe-e um verdadeiro tratado sobre a urgência de reencantar o mundo. É um romance belo e duro, instigante e desconfortável, histórico e cosmopolítico. Há que se abrir os ouvidos – na tentativa de ouvir os rios, o que dizem os animais e os espíritos – para que se possa ler esta obra. Há que reencantar.

*Jornalista, mestre em Comunicação e Especialista em Filosofia pela Unisinos. Doutor em Cultura e Significação, pelo PPGCom da UFRGS. Escreve sobre Comunicação, Semiótica, Cultura, Antropofagia, livros e arrisca algumas linhas sobre Perspectivismo Indígena e Antropologia. Escreve no Antropofagias.

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