Na sala de aula do Quilombo Kédi, localizado no bairro Boa Vista, em Porto Alegre (RS), o silêncio é inconstante entre a meninada que observa com atenção as palavras ornadas com desenhos coloridos se formando na parede através do projetor: “Cine Quilombola”.
Ainda agitadas com as brincadeiras realizadas na festa junina do quilombo, que ilumina a noite do lado de fora, as crianças aos poucos acalmam os ânimos e assistem, com refrigerante e cachorro-quente em mãos, às cenas iniciais do filme Vamos em batalha, integrante do projeto conjunto Cinema de Griô e Cine Quilombola do Instituto Marlin Azul, que reúne 10 filmes produzidos por comunidades quilombolas a partir de oficinas de cinema realizadas em seus territórios.
Na tela projetada, o vento sopra forte as roupas que secam no varal às margens do canavial. Aliás, tudo é vento no documentário feito pelas comunidades quilombolas de Cacimbinha e Boa Esperança, no Espírito Santo. Vento forte e palavra que faz assimilar raça e território.
A exibição do documentário no Quilombo Kédi é uma iniciativa do projeto Quilombocine, organizado pela Frente Quilombola do Rio Grande do Sul e financiado pela Lei Aldir Blanc. Sandro Lemos, liderança do projeto e do quilombo Lemos, localizado na Zona Sul de Porto Alegre, compreende que o cinema possui força de mobilização e capacidade para fortalecer identidades e lutas coletivas entre os quilombos.
Mas ele também entende que as telas de cinema não estão dentro da realidade financeira de todo mundo, tornando o projeto ainda mais necessário. “É importante que a gente fale de assuntos que para nós é super sensível e urgente de falar, que é sobre a nossa história, o nosso território, as nossas tradições quilombolas, negras. E o cinema impulsiona isso.”

Ao todo, o Quilombocine já realizou exibições em 6 dos 11 quilombos de Porto Alegre, sendo eles os quilombos Lemos, Fidelix, dos Alpes, Kédi, da Família Silva e do Areal. Antes de levar adiante a ideia do projeto, a Frente Quilombola fez uma consulta prévia com as comunidades para saber se estavam abertas à iniciativa. O projeto foi bem recebido por todos os territórios por onde passou, incluindo as escolas, como o Colégio Estadual Paraná, na Zona Sul da cidade.
Estava claro para a organização que essa troca sobre raízes e ancestralidade não acontecia no ambiente escolar, sinalizando que era importante não apenas que esse espaço fosse transformado, mas que o próprio território de onde vinham essas crianças adotasse caminhos para mudar isso em sua própria origem.
Uma vez que a adesão às exibições do projeto é maior entre as crianças, essa força ganha ainda mais importância por carregar a possibilidade de promover identificação racial e territorial entre os pequenos desde cedo. “Tem várias crianças, e também adultos, que acham que ser chamado de quilombola é pejorativo. Com o Quilombocine, a gente utiliza filmes com linguagem acessível para que as crianças possam entrar já desde pequenas nessa vibe do pertencimento, do lugar onde elas vivem”, explica Sandro. Segundo ele, a aceitação de si se entrelaça na percepção dos pequenos com mais facilidade, e com isso “eles mudam a maneira de pensar, porque a sociedade é cruel”.
No quilombo Lemos, a exaltação das raízes negras é uma filosofia de vida. Mas o que era para ser uma saudação às próprias origens acaba se tornando, também, uma ferramenta para combater as visões preconceituosas da sociedade acerca do quilombo e do quilombola, que dificultam a assimilação racial e de território por parte das crianças.
“O Quilombocine proporciona que elas se vejam em outras esferas, como o filme do Luís Gama, que exalta a negritude. Elas percebem que, mesmo que a sociedade tenha sido desfavorável com a negritude, existiram negros e negras que são relevantes até hoje, como Zumbi e João Cândido. Para elas isso é como um espelho, um exemplo de que não estão sozinhas”, relata.
Vamos fazer um filme?
No documentário Vamos em batalha, as vozes das crianças que narram suas cartas escritas para parentes e amigos se misturam ao vento, que não para de soprar. Foi depois da oficina de cinema promovida pelo Instituto Marlin Azul nas comunidades quilombolas de Cacimbinha e Boa Esperança que o filme passou a ser produzido, em maio de 2022. O projeto conjunto Cinema Quilombola e Cine Griô surgiu depois da última sessão de exibição de um projeto audiovisual chamado Revelando os Brasis.
“Um dos espectadores da sessão era quilombola, e nessa exibição nós passamos um filme que tinha sido produzido pelo Marlin Azul. Quando terminou a exibição, ele ficou muito curioso e perguntou como fazia para ver filmes quilombolas”, conta uma das oficineiras do projeto, a cineasta Mariana de Lima.
A partir daí surgiu a ideia de fazer uma mostra só com filmes quilombolas, que se resumia em realizar exibições nos quilombos do Espírito Santo. Mas a ideia se transformou e ganhou uma nova proporção: por que não promover oficinas de cinema nas comunidades e fazer filmes nos próprios territórios? E assim nasceram os dez filmes que compõem o projeto.

A equipe de produção era variada, indo desde crianças até idosos. Mariana explica que a predominância entre crianças e adultos na produção dos documentários dependia de quem tomava as rédeas primeiro. “Quando a oficina começa com crianças, ela vai ser um filme das crianças. Nessa ocasião, parece que existe por parte dos adultos um respeito silencioso que é tipo ‘tá, deixa os meninos brincarem então, vamos deixar eles fazerem os filmes deles’”, explica.
Como forma de ir agregando aos poucos a subjetividade das crianças da comunidade para compor na narrativa a sua identidade, Mariana propôs a escrita de cartas trocadas entre as duas comunidades, endereçadas a amigos e familiares. Dona Fia, uma das matriarcas de Cacimbinha, recebeu as oficineiras com a hospitalidade de quem sabe que quem chega, chega para agraciar os filhos. Colocou uma grande mesa debaixo de um pé de manga e jogou sobre ela uma toalha rosa, onde as crianças escreveram, concentradas, suas cartas, segurando o papel sob a palma da mão para que o vento não levasse. Esse é o mesmo vento que se mistura aos versos na leitura das cartas, que guiam o curso do filme.
Para Mariana, o objetivo era desnudar o cotidiano e as subjetividades das crianças em conversação com a geografia e com a comunidade, intuindo uma produção que fugisse de discursos prontos sobre vivências quilombolas, muitas vezes despertados através de perguntas simplistas como “Qual a importância da vivência quilombola para você?”, ou “O que o seu território representa?”.

É com a leitura das cartas que apresentam uma comunidade a outra que o filme se inicia. “Olá, vizinhança! como vocês estão? Espero que estejam bem”, diz a voz de uma criança enquanto dois meninos jogam futebol num descampado. “Nesta carta vou contar um pouco sobre o bairro onde eu moro. Nome: cacimbinha. Eu quero falar porque Cacimbinha tem esse nome”, diz outra voz.
E assim, na sucessão de vozes que desdobram a história de Cacimbinha – cujo nome foi dado por um tataravô ao observar a grande quantidade de cacimbas de água que foram feitas no território por não haver muitas fontes de água no local -, a história da comunidade se revela de maneira íntima no decorrer do documentário. Essa apresentação permite conheça o território através das sutilezas. “Aqui em Cacimbinha tem jongo, capoeira e boi pintadinho.”
Embora a oficina tenha um tempo curto de duração (quatro dias), a escrita das cartas, segundo Mariana, permite o acesso a um atalho que antecipa uma relação de intimidade com a comunidade. “A gente participa de uma relação que não é nossa. De repente, a gente tá ali no meio daquela troca que revela o cotidiano”, comenta. “Não é nosso interesse fazer um vídeo institucional sobre o que é importante em Cacimbinha e Boa Esperança. A gente quer saber o que as crianças têm como grandioso, né? Pode ser uma coisa minúscula do dia a dia delas, e é isso que é a grandeza”, acrescenta.
Uma mensagem das águas
Se a história de homens negros que lideraram batalhões e de mulheres negras que reescreveram a história inspiram os pequenos, a exemplo do líder da Revolta da Chibata João Cândido e da escritora Maria Firmina dos Reis, que dirá a história de um menino quilombola negro que atravessa os rios do Vale do Jequitinhonha para transmitir uma importante mensagem.
É o exemplo do filme A mensagem de Jequi, que conta a história de uma criança quilombola do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. No longa, Jequi, o protagonista, tenta denunciar para o maior número possível de crianças através de uma mensagem em uma garrafa as mazelas socioambientais que os ideais de progresso econômico trazem para a região, a exemplo da exploração de recursos naturais, como as águas.

“Depois do filme, eu comecei a cuidar melhor da água”, conta Kaique Silva, que interpreta Jequi. Na comunidade quilombola de Vila Nova, em São Gonçalo do Rio das Pedras, onde Kaique reside, as infâncias transcorrem a céu aberto, com brincadeiras como pega-pega e esconde-esconde e jogos como futebol sendo a ordem do dia, além dos estudos. Tudo dentro do que se espera para uma infância.
É por esse motivo que, para Kaique, o extraordinário de seu filme não reside no fato de que é uma criança quilombola negra quem denuncia ameaças socioambientais, já que, em suas palavras, ele é uma criança “completamente normal”. Para ele, o extraordinário é poder viajar, promovendo o filme, para Belo Horizonte, Diamantina, Rio de Janeiro, Porto Seguro, Ouro Preto. No dia em que foi entrevistado pelo Nonada, Kaique estava de malas prontas para viajar até a comunidade quilombola do Ausente, para espalhar a mensagem de Jequi.
Kaique foi uma das cerca de 22 crianças que participaram da oficina de cinema e educação climática promovida pelo Instituto Mundos, ministrada pelo seu fundador e diretor do filme, o cineasta e ativista pelas águas Igor Amin. Morador de São Gonçalo do Rio das Pedras, Igor é próximo da comunidade quilombola de Vila Nova, onde tem amigos com quem aprende sobre raízes ancestrais e outros ensinamentos tradicionais, como os aprendizados que adquiriu sobre as águas.
Na oficina, que durou um mês, a água estava por toda parte, desde as pinturas realizadas pelas crianças em garrafas pet que carregavam uma mensagem sobre a importância de sua preservação até o conteúdo geral da oficina. Em A mensagem de Jequi, a exemplo do que aconteceu com as comunidades de Cacimbinha e Boa Esperança, em que o vento assume protagonismo, é a água que ocupa um lugar de destaque.
Igor, ao final da oficina, fez a proposta para que Kaique protagonizasse o longa. “No começo eu fiquei tímido e disse não”, ele explica. “Mas depois o Igor disse que iria chamar outra criança, aí eu disse ‘então eu quero’.” Ainda que para Kaique a sua presença por si só não configure uma extraordinariedade na narrativa, Igor reconhece a potência que existe na representação de uma criança negra quilombola denunciando violações socioambientais.
“Muitas vezes a gente encontra protagonistas nas telas que não representam as crianças em toda a sua diversidade e pluralidade. Então, quando a gente convida uma criança negra quilombola de oito anos para ser protagonista, é uma oportunidade de a gente abrir um espaço na tela de cinema para que essa criança se reconheça com a sua importância, a sua ancestralidade, tudo que ela carrega como bagagem que vem como ensinamento de seus antepassados e suas raízes”.
Enquanto realizava as gravações do filme, Igor notou que a criança, ao ser protagonista, se dá conta de que ela também pode contar a sua própria história, assim como a criança do filme, que narra a si mesmo ao embarcar numa cruzada com o intuito de preservar o meio ambiente, convocando seus pares a se juntarem à luta. “E além disso, ela também pode mostrar que é um agente de transformação da nossa sociedade”, ressalta o diretor.