Museus Orgânicos aliam cultura popular a fonte de renda para mestres artesãos na Chapada do Araripe

Programa da região no Sertão cearense eliminou atravessadores, transformando as casas dos artistas e mestres em museus vivos
Foto: Acervo Fundação casa Grande - Memorial do Homem Cariri

Juazeiro do Norte (CE) — Encravada no Sertão nordestino, a Chapada do Araripe é um manancial de tradições culturais seculares. Bandas cabaçais, reisados, bacamartes, artesanato em couro e algodão, mosaico, e tantas outras tradições aportaram na região imbricadas aos migrantes que buscavam as bênçãos do Padre Cícero, mas decidiam ficar, pois além da proteção divina, encontravam água e trabalho. Essa mistura de riqueza artística e ambiental traduzida na arte popular, é que faz da Chapada do Araripe um território cultural. 

Esse conceito parte da ideia de que a cultura local não se limita a um mapa geopolítico, mas, sim, aos elementos do bioma. E neste caso, a Chapada do Araripe, formação geológica de mais de 350 milhões de anos que integra os estados do Ceará, Piauí, Pernambuco e Paraíba, é um território único. Para driblar o desafio de preservar as tradições seculares que emanam desse território e assegurar renda aos mestres, a região vem apostando em Museus Orgânicos, centros culturais que trazem os mestres como no centro da gestão. 

O diretor Comercial da Fundação Museu Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, o primeiro museu orgânico da região, em Nova Olinda, Cristiano Sousa, explica que o diferencial dos museus orgânicos em relação aos convencionais é o protagonismo do artista popular. “Ele [o museu] não é montado [apenas] por um museólogo que vem e define como as coisas vão ser. O Museu é orgânico porque conta com o protagonismo dos próprios mestres na sua concepção”, resume. Pelos ambientes internos do Museu Casa Grande, há fósseis, artefatos e objetos históricos dos primeiros povos da região, os indígenas da etnia Kariri. Além de indumentárias, fotografias, esculturas e objetos sagrados de nações africanas que também compõem a história local.

Mestre Espedito Seleiro produz peças em couro, mantendo uma tradição dos tempos do Cangaço – (Foto: Adriana Pimentel)

Esses espaços permitem aos mestres apresentarem e comercializarem a sua arte ao longo do ano inteiro, livre de atravessadores. Tal protagonismo é notório ao visitar o Museu do Mestre Espedito Seleiro. Ele recebeu o Nonada Jornalismo no batente da casa com um sorriso largo no rosto e uma satisfação que muitos atestam sua vocação de ser incansável. Na mesa onde confecciona as peças, a conversa foi longa. Além da oficina, o museu é composto pela loja e pela área de exposição de artefatos que carregam três gerações de história da arte do couro no Cariri. 

A semente desta história foi Virgolino Ferreira, Lampião, que precisou dos serviços da família para a confecção de artefatos estratégicos para a sobrevivência do bando de cangaceiros. Mestre Espedito conta que, aos 6 anos,  escutou essa história do pai e nunca esqueceu. “Raimundo Pinto de Carvalho, o meu pai, recebeu a visita de um vaqueiro enviado por Lampião, que lhe pediu para fazer um par de alpargatas. O meu pai disse que era seleiro e não sapateiro. Mesmo assim, uma hora depois, o homem chega com um bornal de onde tira uma curiosa sandália de couro”, conta Espedito. 

Um detalhe chamou a atenção do artesão. “A alpargata era quadrada e tinha o apoio do calcanhar na frente”, detalha. Sem questionar, o pai do Mestre Espedito pegou o serviço e, após um mês, entregou a encomenda. Neste momento,  ele descobriu que tratava-se de calçados a serem usados pelos cangaceiros, com o propósito de despistar a polícia, pois o formato quadrado e o apoio do calcanhar na frente da sandália, não revelava a direção da pegada. “Meu pai ficou meio assim [tremendo] quando soube o nome do cliente”, relembra.

Como pagamento pelo serviço, Seu Raimundo recebeu um punhal de Lampião que, até hoje, é guardado com cuidado no museu. Após a morte do pai, Mestre Espedito assumiu o molde das famosas sandálias deixado pelo pai. A fama da peça corre longe, o que faz com ela seja muito requisitada por turistas até do outro lado do oceano Atlântico. O grande encontro entre o sábio artesão e o rei do Cangaço segue como um farol que aponta um horizonte para o futuro da arte a partir do couro. 

A arte e os ciclos econômicos

Reisado das Mulheres em Juazeiro do Norte (Foto: Sesc Cariri/divulgação)

O Cariri Cearense já conta com 24 museus orgânicos, que abrigam variadas manifestações culturais cunhadas nos ciclos econômicos da região. O Museu do Doce, localizado em Juazeiro do Norte, cidade pólo da região do Cariri, tem origem na chegada do gado. Já o Museu de Dona Dinha, em Nova Olinda, que ainda produz redes em um tear manual, tem raízes no ciclo do algodão. 

Muitas das expressões culturais típicas da Chapada do Araripe são amálgamas dos grupos que migraram de uma região a outra. Na tentativa de recriar esse intercâmbio cultural, foi criada a Mostra Sesc Cariri de Culturas. O Nonada conferiu de perto a 27ª edição, realizada entre 21 e 24 de agosto, em Juazeiro do Norte (CE).

Uma multidão colorida, adornada, de várias idades, tamanhos, gêneros ocupou as ruas da cidade em uma marcha ao som de tambores, apitos, trombetas entrecortadas pelo estampido dos tiros de bacamarte. É o cortejo de artistas populares rasgando a rotina séria da cidade e anunciando o reinado da cultura popular. É possível ver mestres do Reisado Santa Terezinha duelando com suas espadas, seguidos de crianças, jovens, homens e mulheres que dançam junto. O Reisado é uma combinação de dança, música e encenação que celebra o nascimento de Jesus com referências nordestinas.

Em outro ponto do cortejo, o Grupo Bacamarteiros da Paz executa paços de xaxado, dança popular e ritmo do forró que rememora em uma encenação esfuziante a bravura dos nordestinos que lutaram na Guerra do Araguaia. Com 19 anos de existência, o grupo formado por 18 integrantes, sendo oito mulheres, é liderado pelo Mestre Nino, Francisco Gomes, artista popular desde os 12 anos. 

Vera Ribeiro, 48 anos, filha do Mestre Nino, há dez anos integrou, ofício do qual se orgulha. “Eu gosto, sempre participo! Gosto de ver o público aplaudindo a gente. Participo também do reisado, maneiro pau, várias culturas”, orgulha-se.

Tecido por artistas circenses, entre palhaços e cuspidores de fogo,  pernas de pau, e maracatus, o cortejo se impõe em pleno centro comercial de Juazeiro do Norte, cidade pólo da região do Cariri. Da porta das lojas, o público curioso admira. Sorri, tira foto, tampa os ouvidos para fugir do pipoco do bacamarte, celebra a riqueza cultural que toma conta da cidade. 

Ao final do cortejo, centenas de atividades artísticas ocorrem de forma simultânea em diversos pontos das cidades da região. Este ano, a mostra reuniu 216 grupos, 326 ações e 2.373 artistas ligados a diversas expressões culturais de 28 municípios do Cariri. “A mostra é um intercâmbio entre as mesas, que são as chapadas [montanha rochosa], onde são servidas uma diversidade de manifestações culturais”, detalha. 

Culturas que atravessam gerações

Criada em 1815, a Banda Cabaçal Irmãos Aniceto, com 205 anos de tradição e três gerações alcançadas, se orgulha de participar de mais uma Mostra. A banda cabaçal se assemelha a uma banda pífano, mas traz instrumentos adicionais como zabumba, tarô e prato. A banda cabaçal compõe músicas e esquetes que representam a fauna e flora do bioma. 

Cortejo de Mulheres em Crato, dentro da programação do festival (Foto: Sesc Cariri/divulgção)

O mestre do grupo, Adriano Aniceto, 51 anos, lista algumas das apresentações da banda. “A gente tem a dança do Caboré, do Caçador e da Onça Pintada, da Coruja, todos animais típicos da Chapada, que a gente reproduz o som nas apresentações”, explica o artista que “considera que a criação do museu orgânico ajuda a divulgar e manter a tradição”. “Poderia ter acabado, mas a gente vem mantendo. Vai nas escolas ensinar e está aí, há mais de 200 anos”, comemora.

Além dos ciclos econômicos, três figuras notáveis da região até hoje, fomentam a cultura local: Lampião, Padre Cícero e Luiz Gonzaga. Por esse vasto território de arte popular brotaram muitas sementes desses ícones nordestinos. O Grupo Lapinha Santa Clara, com 112 anos de existência, é um desses frutos. 

A Lapinha é um tipo de musical, que reconstitui e celebra o nascimento de Jesus à moda nordestina. Formada por 40 brincantes que dão vida a personagens como Reis Magos, cigana, pastores, essa manifestação se passa em uma batalha entre a noite e o dia, o sol e a lua, representadas pelas cores azul e vermelho. 

O tradicional grupo foi criado a pedido do Padre Cícero, por quem consideram ser abençoados até hoje. Todavia, a fundadora da Lapinha, dona Teodora era sogra de Seu Manoel, um dos produtores de punhais usados pelos cangaceiros. Esse vínculo com o Rei do Cangaço também orgulha os integrantes. Na terceira geração, o grupo está sob o comando de Damião Felipe, de 51 anos, viúvo de dona Maria Pereira da Silva, conhecida como Dona Tatai, filha da fundadora do grupo.

Guerreiro do reisado Santa Clara (Foto: Adriana Amâncio)

Ao percorrermos as ruas de Juazeiro do Norte, em cada esquina, as cores, formas, objetos encorpados em crianças, jovens, adultos e idosos, homens e mulheres, revela a cultura como gene da região, um museu vivo a céu aberto.

Os números provam que salvaguardar a cultura popular, além de manter a identidade do povo, aquece a economia. A 26ª do festival edição contou com 400 mil pessoas, sendo 52% turistas vindos de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, a maior parte composta por jovens e mulheres. Setores como hospedagem, alimentação, transporte, artesanato e comércio foram os mais impactados. O evento movimentou mais de R$ 140 milhões.

Esta edição aconteceu em meio à Campanha para que a Chapada do Araripe se torne Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura (Unesco). Na região, as Chapadas, formações rochosas gigantes, são conhecidas como mesas. Essa analogia explica a fartura de expressões culturais, que formam um banquete para o público nativo e visitantes.

“O Ceará é um estado murado. À esquerda tem a Chapada de Ibiapaba e, à direita, a Chapada do Apodi. Entre elas, fica o Caminho de Inhamuns, passagem da pré – história, dos primeiros indígenas. A Mostra Cariri é um intercâmbio dessas mesas”, simplifica Alemberg Quindins, Gestor Cultural do Sesc Ceará.

*A repórter viajou a Juazeiro do Norte a convite da Mostra Sesc Cariri de Culturas.

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