Porto Alegre (RS) – A Cacica Iracema foi visitada pelos avós em sonho quando se deu conta de que ela e seu povo precisavam se reapropriar do território no Morro Santana, ponto mais alto de Porto Alegre, onde seus antepassados, dos povos Kaingang e Xokleng, viviam.
Assim, nasceu a Retomada Gãh Rê, que desde outubro de 2022 resiste em meio à derrubada de mata nativa na região, ao avanço da construção civil e ao aumento de eventos climáticos extremos. Além de proteção ambiental da vegetação típica dos biomas Pampa e Mata Atlântica ali presentes, a Cacica e a comunidade também tentam assegurar aos seus filhos e netos a chance de viver num mundo que não esteja em ebulição.
No estado do Rio Grande do Sul, as comunidades Kaingang são mais numerosas e predominantemente distribuídas na região norte do estado. Atualmente, o estado possui oficialmente 4 etnias indígenas principais, compostas por uma população total de mais de 35 mil pessoas, entre os povos Charrua, Kaingang, Mbyá-Guarani e Xokleng.
Desde que se tornaram escassos os cipós e as taquaras no território Retomada Gãh Ré, da etnia indígena Kaingang do Morro Santana, bairro da periferia de Porto Alegre, a cacica Kaingang Gãh Te/Iracema Nascimento e seu povo se viram diante de uma bifurcação. Ou a comunidade se rende à escassez da matéria prima de seus artesanatos, ocasionada pelas queimadas e pelos alagamentos que escorrem morro abaixo durante temporais, deixando para trás um rastro de destruição decorrente da derrubada de mata nativa para a construção de prédios; ou a comunidade se arrisca em territórios desconhecidos para coletar o material que colabora com o seu sustento.


No sofá da área de sua casa no território da Retomada, com as mãos e o pescoço adornados pelas pulseiras e colares de miçangas confeccionados por ela mesma, a cacica reflete sobre os impactos da devastação ambiental no território. “Por causa dessa falta, a gente acaba tendo que buscar outros espaços. E arriscando a vida, porque o morador não gosta que a gente entre no mato dele. Então tem que ir escondido pra tirar as taquaras”, diz a cacica.
Como se fossem intrusos na própria terra, porque o fazem sob os protestos de quem chegou no território muito depois dos povos ancestrais, a comunidade envereda pelas matas vizinhas em busca da manutenção de seus costumes. “A gente também costumava ir pegar cipó perto do Agronomia, da Lomba do Pinheiro. Mas agora os donos do cemitério por onde a gente entrava não querem mais permitir que a gente entre no mato”, relata.
Com o saber do artesanato mapeado na cabeça e a sua prática decorada no manuseio das mãos, cestos, anjos e filtros dos sonhos emergem do que antes eram partes de árvores, possibilitando o custeio de suas expressões culturais.
Atividades como as trilhas pelos arvoredos do Morro Santana, banhos de chás, discussões sobre plantas medicinais e encontro de cineastas indígenas dependem do retorno da venda do artesanato. Trata-se de uma cadeia econômica em que, para que suas partes funcionem plenamente, tudo precisa fluir. Mas, no contexto atual, a crise climática é sempre um fator a se considerar.
Para a Cacica Iracema, a mensagem está evidente há muito tempo. “Alguns estudantes vêm aqui e perguntam o que é preciso fazer para restaurar o equilíbrio climático. Eu digo, ‘vocês têm que voltar para trás, porque só tiraram, tiraram e tiraram e agora tá acontecendo’. Se você só tira, uma hora termina. É preciso reflorestar, conversar com o povo, com a comunidade”, aconselha, e logo emenda com o saber de que, mesmo que plante jabuticabeiras, gravioleiras e cerejeiras, não chegará a comer os seus frutos. Faz isso por um bem maior, de valor ancestral.

Encruzilhadas de território e clima
Diversas iniciativas mostram que a crise climática cria novos desafios para comunidades periféricas, agravando desigualdades. O relatório Encruzilhada Climática, recém lançado pela Oxfam Brasil, que integra um movimento global que atua contra a pobreza, a desigualdade e a injustiça, aponta que entre 2021 e 2023, o total de pessoas afetadas por eventos climáticos extremos aumentou significativamente, passando de 12 milhões para 20 milhões. Esse número equivale a cerca de 10% da população brasileira. Durante o período, cerca de 93% dos municípios brasileiros foram impactados por estes eventos, cuja maioria se trata de chuvas intensas, estiagem e seca, inundações, enxurradas e alagamentos.
Os grupos sociais mais afetados pelos eventos climáticos extremos, segundo o relatório, são populações negras, indígenas, tradicionais e de baixa renda, impactados de maneira direta, desproporcional e estrutural pelas múltiplas dimensões dos impactos socioambientais e das mudanças climáticas. O estudo ainda explica que essas desigualdades são consequência do colonialismo e do racismo ambiental, bases da injustiça climática no Brasil.
“Essa desigualdade climática está intrinsecamente ligada a um modelo de exploração e acumulação que expropriou e explorou terras indígenas, quilombolas, tradicionais, escravizou milhões de pessoas africanas e indígenas, e consolidou uma sociedade profundamente desigual. Hoje, comunidades quilombolas, aldeias indígenas, populações negras e periferias urbanas são as mais vulneráveis aos desastres climáticos, consequência de políticas públicas historicamente excludentes. A luta por justiça climática é, portanto, também uma luta social, antirracista e decolonial, pois não haverá transição justa sem reparação histórica e redistribuição de poder e recursos”, destaca o documento.
Já um mapeamento produzido pelo Núcleo Porto Alegre do INCT Observatório das Metrópoles cruzou dados que mostram a relação entre rendimento, cor e raça, para analisar os impactos do evento climático extremo ocorrido no Rio Grande do Sul em maio de 2024. A pesquisa mostrou que, apesar da tragédia ter afetado 90% do estado, no caso de Porto Alegre, as áreas alagadas são as mais pobres e com maior população negra da cidade.
“Queremos comida, bebida, mas também diversão e arte”
Entre os bairros periféricos que mais sentem esses efeitos, está o Arquipélago, de Porto Alegre, formado por 16 ilhas, como a Ilha das Flores, que ficou conhecida após o filme homônimo de Jorge Furtado. Um dos mais atingidos pela tragédia climática de 2024, o bairro periférico também ecoa cantos de resistência entoados através de manifestações culturais. Flutuando às margens do Rio Jacuí, que deságua no Lago Guaíba, e integrando o bairro, está a Ilha da Pintada.
A Ilha, apesar de historicamente sofrer com as cheias, nunca havia experienciado uma tragédia da magnitude do ano passado. Em 2015, a ilha, como todo o bairro, já tinha sofrido com enchentes. O final do segundo semestre de 2023 também foi marcado pela aflição provocada pelo avanço das águas sobre moradias. Em maio de 2024, que ficou marcado como o ano da maior tragédia socioambiental vivenciada por todo o estado do Rio Grande do Sul, essa série de eventos interligados atingiu seu clímax, impactando 3,9 mil pessoas só no bairro do Arquipélago, segundo dados da prefeitura do município. Sobre a ilha, a água chegou a mais de um metro de altura.

Ainda assim, seu povo canta, dança e reinventa novos modos de seguir habitando o território: seja através de encontros e festivais promovidos pelo coletivo Colaí Movimento Cultural; seja através das celebrações religiosas e eventos comemorativos para festejar, organizados pelo quilombo Unidos do Pôr do Sol. Mais do que isso, a Pintada mostra que, apesar da devastação climática que consome aos poucos e com cada vez mais intensidade sua geografia, a cultura no território é viva. Sua memória e identidades permanecem. Uma ilha também é um lar.
A praça Salomão Pires de Abraão é o principal ponto de encontro e de cultura de quem mora na Pintada. Após inundações mais extremas nos últimos anos, que destruíram espaços de lazer, os moradores do bairro já estão familiarizados com as mecânicas do ato de se reerguer: varrem o lixo deixado pela lama, restauram, e tentam cultivar seus festejos tradicionais, como o carnaval da Pintada e outras atividades que compõem a cultura local. Grande parte dessas celebrações é organizada pela Mestra Bia da Ilha, liderança do quilombo.
“A gente não quer só comida e bebida. A gente também quer diversão e arte”, diz a mestra. A Semana do Arquipélago, celebrada no fim de outubro, contou com apresentações musicais e de poesia, além de cortejo aos reis e rainhas do carnaval da ilha. O evento aconteceu após um hiato, já que a comunidade se recuperava dos efeitos.

“Nós do quilombo, por conta das inundações, sentimos a necessidade de demandar a celebração novamente. As pessoas aqui ainda estão muito machucadas, estão tristes. E tem muita gente querendo alegria.”
Através da inscrição em editais de fomento, a comunidade consegue os insumos necessários para tirar do papel os projetos. Porém, a burocracia desses processos, por vezes, acaba por ser um impeditivo.
“São muitas exigências. Tu tem que ter as três notas balizadoras. Tem que ter um CNPJ. Mas na periferia, quem tem?”, reflete. “Não se tem, quando muito um MEI. Mesmo que tu tenha um MEI, eles exigem que se tenha um CNPJ de uma produtora”, diz Mestra Bia.
Para ela, essas dificuldades representam tentativas de desmonte da cultura negra local. Só a Ilha conta com mais de 12 terreiros de religião de matriz africana. “Esses desmontes têm cor, endereço e CPF. E são os negros. São os pobres. São as comunidades tradicionais.”
Contra o silenciamento e pela cultura
Uma das preocupações da Mestra Bia é o deslocamento de moradores da Pintada em virtude das inundações frequentes, intensificadas, nos últimos anos, pela regularidade de desastres. Ano após ano, cheia após cheia, o cenário na ilha é o mesmo: o lago sobe, os lares inundam e os moradores ficam progressivamente mais consumidos pelos recomeços que não acabam, pelas moradias que não ficam de pé. Aos poucos, mudar de CEP parece ser a única alternativa possível de dar fim a esse ciclo.
Ainda em 2021, o povo da Ilha da Pintada apresentou ao governo do município um plano de contingência para as cheias que ocorriam no território. Mas a comunidade não foi ouvida. “Colocam a culpa na natureza, mas também teve crime. Porque se omitiram de fazer o que tinham que fazer. Colocar a culpa só na conta da mãe natureza não dá”, afirma a Mestra Bia.
Em março deste ano, a Defesa Civil da capital anunciou que a Pintada será o primeiro núcleo comunitário de proteção e defesa civil, “devido à sua alta vulnerabilidade a enchentes e à ausência de proteção contra cheias”. Garantir condições de permanência segura na ilha para os seus moradores é dever crucial de quem exerce o poder público.
“Se tu não tem pessoas na ilha, tu vai celebrar a cultura com e para quem?”, questiona a Mestra Bia. A Ilha Mauá, vizinha do território da Pintada, é um aviso constante do que a crise climática, associada ao descaso público, pode fazer com uma comunidade e sua cultura.

A ilha, que já chegou a ser habitada por cerca de 90 famílias, hoje é um território fantasma que sustenta na ponta do Arquipélago e às margens do Guaíba os vestígios do que sobrou de sua existência: o chão de terra batida. Com o deslocamento de seus habitantes para outros lugares através do programa federal de compra assistida, as moradias remanescentes foram demolidas e os terrenos limpos. A Mauá agora é um reduto de silêncio.
O remanso, entretanto, não combina com a Pintada. “Se a gente ficar todo mundo quieto e não fazer nada, parece que nós estamos dizendo ‘sim, tá tudo bem, pode fazer o que quiser com o nosso território’”, comenta Bia. Embora a ilha esteja acontecendo para si e para os seus, levar seus festejos para as redes sociais é um caminho de espalhar a sua cultura e se fazer ser vista pela parte do município que fica do outro lado do Guaíba. “Isso é uma forma de dizer ‘olha, nós estamos aqui, as coisas estão acontecendo e nós não vamos parar’”, pontua.

Identidade e memória que não se apagam
A bibliotecária Francine Conde Cabral, presidente do coletivo Colaí Movimento de Cultura, observa que o problema maior de seguir com as práticas culturais da ilha não se trata de uma questão de organização. “A grande dificuldade é dar continuidade ao que a gente fazia. Com a estrutura da ilha prejudicada, e também com o esvaziamento da ilha, fica difícil fazer esse trabalho sendo que as pessoas sequer estão conseguindo ficar no seu território.” Francine ressalta que ninguém sai da ilha porque quer, “é mais pela necessidade mesmo, porque perderam tudo”.
Para os que ficam, e junto destes, são realizados esforços para que se mantenha a celebração da cultura local, com direito à cultura e oficinas artísticas. O Colaí na Praça, evento organizado pelo coletivo de Francine, acontece três vezes por ano ao longo de uma tarde e início de noite de um domingo. Boa parte das apresentações que ocorrem no evento são musicais e teatrais. Mas para a próxima edição, marcada para acontecer no dia 15 de novembro, um dos objetivos do evento é ampliar a diversidade artística e promover oficinas de dança de rua, de desenho e de dobradura. Além das atrações, o evento também realiza brincadeiras diversas com crianças e adolescentes.

A falta de financiamento segue sendo um grande entrave nas comunidades periféricas. No caso da Pintada, a remuneração a artistas que trabalham no evento ainda é uma realidade distante. “São artistas voluntários, que se disponibilizam a ir lá e tocar. O que, por um lado, é muito legal, porque a gente consegue conhecer artistas mais jovens que a gente, que têm pensado sobre arte, cultura e sobre viver na ilha”, destaca Francine.
É durante o evento que muitos dos talentos da Pintada têm a chance de subir num palco e mostrar ao público ao que veio. Leonel, ou Dimel, como é conhecido artisticamente, é um desses artistas. Para ele, sobrinho de Mãe Bia, a Pintada é o lugar mais extraordinário do mundo. Mas, a exemplo de muitos, precisou sair da ilha em decorrência dos eventos extremos – e também por motivos profissionais. A ausência de uma estrutura musical na Pintada, bem como o difícil acesso ao centro de Porto Alegre, é um obstáculo no deslanche de uma carreira musical.
“Logo eu comecei a entender a dificuldade da galera de fazer um som na Pintada, de conseguir manter algo cultural. A arte precisa ser espalhada. Isso é diferente de tu querer fazer alguma coisa no teu quarto. A arte impacta as pessoas. A ilha da Pintada é um lugar muito bom, mas é um lugar muito pequeno”, observa Dimel.

Para Dimel, a pouca atenção dada ao campo artístico e cultural no contexto da crise climática se deve ao fato de que, no imaginário social, arte e cultura são coisas muito subjetivas. “Sendo que a arte é muito concreta também. Não se pode comprar um instrumento que está debaixo d’água, uma caneta que está debaixo d’água. Se o preço do caderno subir, se a criança perder todos os materiais escolares, ela não vai conseguir escrever. A arte é subjetiva só no palco.”, comenta.
Através de sua arte, Dimel reflete sobre o contexto social de deslocamento climático que vive. “É legal a gente falar sobre empoderamento. É importante. Mas também é importante a gente falar sobre o que a gente sente, sobre as faltas que estamos sentindo, sobre o nosso lugar, né?”, diz. As memórias do tempo em que morava na Pintada protagonizam suas composições mais recentes.
“Comecei a questionar o porquê de a gente não ver tanto pássaro quando a gente sai da Ilha da Pintada, e porquê as pessoas são tão impacientes. Pra quem mora na Ilha da Pintada e sai, assim, depois da vida adulta, é tudo muito estranho, é tudo muito corrido. Todo mundo é muito mal educado. É tudo muito pra ontem. Quem mora na Ilha da Pintada funciona num outro tempo”, reflete Dimel.
Assegurar que a memória da ilha permaneça viva é um dos objetivos principais do Colaí com a realização do festival. “A gente não quer nunca que a nossa história se perca, que o nosso modo de vida se perca. E nem que a gente seja esquecido. Porque enchente todo ano a gente passa, não é uma novidade. Mas a nossa história continua existindo. Mesmo que em algum dia a ilha só tenha meia dúzia de pessoas, vamos continuar fazendo o nosso trabalho”, afirma.
Esta reportagem foi produzida com apoio do Laboratório de Comunicação contra as Desigualdades Climáticas da OXFAM Brasil.