Poucas pessoas se destacaram tanto na reivindicação pelo ensino da arte nas universidades e nas escolas brasileiras quanto a educadora Ana Mae Barbosa. A educadora, atual homenageada pela Ocupação Itaú Cultural em São Paulo, se desdobrou em determinação e fé naquilo em que acreditava e traçou, a partir do que perseguiu como um ideal de formação dos sujeitos, uma trajetória para a arte-educação no Brasil. “Precisamos de arte dentro da escola, inclusive para ampliar as possibilidades de percepção visual e de processo criativo. Há uma importância muito grande da arte para o desenvolvimento cognitivo da pessoa”, diz a educadora em entrevista ao Nonada.
Ana Mae foi responsável pela sistematização da Abordagem Triangular da arte-educação, tida como base no ensino das artes no currículo educacional do país. Essa abordagem consiste em três pilares integrados e indissociáveis: o fazer artístico, a leitura e interpretação de imagens e a contextualização da arte a partir de fatores socioculturais e históricos. A abordagem estimula maior autonomia na relação dos sujeitos com as proposições artísticas. Hoje, a educadora é reconhecida como pioneira nos estudos em arte-educação na pós-graduação.
Nascida no Rio de Janeiro, criada em Recife (PE) pela avó e formada pela Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco, Ana Mae enfrentou as dificuldades que marcaram o período em que a educação artística não era exigida nas escolas brasileiras. Apesar de sua formação, a educadora percebeu muito antes da diplomação que o seu caminho era na educação.
Em 1954, ao ingressar no curso preparatório para o concurso de professores da Secretaria de Educação de Pernambuco, depois de ter cursado o Magistério Primário no Instituto de Educação do estado seguindo o conselho da avó, Ana Mae se tornou aluna de Paulo Freire. O educador, através de suas ideias libertárias para a educação, foi o responsável pela sua decisão em se tornar professora. Foi Paulo Freire e a arte-educadora Noemia Varela quem geraram em Ana Mae a pergunta “Quem educa os educadores?”.
A educadora estabeleceu uma relação contínua com o contexto da arte-educação nos Estados Unidos como consequência da ausência de estudos no campo no Brasil, bem como pela pouca importância dada ao ensino das artes pelas instituições de pesquisa. “Eu precisava convencer meu marido a ir para tomar carona na bolsa dele. Porque eu não conseguia bolsa. Eu pedia bolsa à CAPES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] para Arte-Educação, mas eles não viam Arte-Educação como uma pesquisa, mas como uma atividade. Fiz o mestrado e o doutorado sem bolsa”, comenta. Ana Mae fez mestrado em Arte-Educação na Universidade Estadual do Sul de Connecticut, e, mais tarde, doutorado em Educação Humanista na Universidade de Boston.
Atualmente, ela é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. Ela foi a primeira doutora em Arte-Educação do Brasil e a primeira arte-educadora da USP. A trajetória de 70 anos de atuação da educadora é tema da 67ª Ocupação Itaú Cultural, que está em exposição até o dia 13 de julho através de documentos, fotos, vídeos e objetos pessoais, perpassando por momentos como a sua participação nas Escolinhas de Arte no Brasil e sua passagem pela direção do MAC-USP.
“Eu nunca pensei que eu teria tanto sucesso como diretora do MAC. Na exposição, eles botaram um índice de visitação em todos os anos do museu. Quando eu entro, o índice sobe. Quando eu saio, baixa. Eu nunca tinha me visto nessa posição. Eu fui muito maltratada pelo sistema de artes. Nossa, como eu sofri! É porque eu era teimosa, sempre fui teimosa”, recorda. A teimosia e persistência de Ana Mae a transformou em referência de arte-educação em todas as regiões do país.
Ao final da conversa, a pesquisadora quis saber mais sobre a equipe que a estava entrevistando. “Me conte mais sobre vocês, são escritores?” Os repórteres então se apresentaram à educadora. “Ambos são artistas”, concluiu Ana Mae.
Confira a entrevista completa:
Nonada — Gostaríamos de te escutar sobre a sua trajetória e como ela se relaciona à luta pela inclusão da arte e da cultura no currículo escolar.
Ana Mae Barbosa — Eu batalhei muito. Quando saiu a primeira BNCC [Base Nacional Comum Curricular] em 2015, eu resolvi batalhar fazendo um abaixo-assinado. Conseguimos 15 mil assinaturas. Nessa BNCC, a arte estava associada a um termo que dava a ideia de algo de “segunda importância”. O MEC [Ministério da Educação] viu que circulou muito o abaixo-assinado e retirou o termo. Mantiveram a arte, mas não estão fazendo nada a favor dela, absolutamente nada.
Precisamos de arte dentro da escola, inclusive para ampliar as possibilidades de percepção visual e de processo criador na escola. É importantíssimo para mim a arte na fase da adolescência, por exemplo. É a fase das grandes mudanças, de corpo, de hormônios. Há uma luta dentro dos nossos corpos durante a adolescência que a gente tem que trazer para o positivo, para a ampliação de perspectivas, de maneiras de ver o mundo. Ninguém discute mais isso.
Nos Estados Unidos, por exemplo, se discutia muito a importância da arte. Até que em 2012, foi publicada uma pesquisa longitudinal que durou mais de doze anos. Essa pesquisa acompanhou as crianças desde que elas entraram para serem alfabetizadas, até a saída da High School. E foi muito interessante porque foi só com crianças de um grupo de risco (em situação de vulnerabilidade), e dividiram essas crianças em dois grupos. Um grupo teve a arte normalmente, como os americanos têm: uma hora por semana, duas horas por semana, uma coisa assim, nesse sentido. E o outro grupo teve uma carga muito forte de arte. Todas as artes, não só as visuais. Chegando ao fim do curso, essas crianças foram analisadas, principalmente, por suas escolhas. Quem teve uma carga baixa de arte, só 48% seguiu a universidade. Enquanto que os outros que tiveram a carga pesada de arte, 79% foram para a universidade.
Nós trabalhamos muito com o conceito de emoção, afeto, que é importantíssimo. Mas, a política não quer saber disso, não. Mas espero que queiram saber pelo menos da ação cognitiva. Então, há uma importância muito grande da arte para o desenvolvimento cognitivo.
Nonada — Você defende muito a importância da arte-educação desde a infância. E na nossa sociedade, a gente costuma reconhecer mais a importância das artes para as crianças. Mas o que você pensa sobre a importância da arte no ensino médio para adolescentes?
Ana Mae Barbosa — É importantíssimo. Porque é uma época de mudanças muito fortes, não só orgânicas, mas mudanças de comportamento, mudanças de papel na sociedade. O adolescente é tratado por uns como criança, por outros como adulto. E fica essa dificuldade de autodefinição. As artes ajudam muito nisso. Por exemplo, o problema do corpo: O corpo muda, o adolescente não sabe lidar bem com essa mudança. O teatro é absolutamente fundamental nisso. Para mim, eu tenho dois defeitos de educação: o fato de que eu nunca fiz teatro e nunca estudei filosofia. Eu acho que são as duas áreas básicas para você ter mais facilidade de interpretar o mundo. De dar respostas positivas a problemas.

Nonada — Sim, o teatro não serve apenas para formar artistas, não é?
Ana Mae Barbosa— O teatro é fundamental em quase todas as profissões do mundo.Outro dia eu estava no hospital e fiquei pensando como os médicos precisariam ter tido teatro na formação para se comunicar melhor com os pacientes. A comunicação deles é péssima com o paciente. Eu perguntei ao médico, enquanto eu estava na cama do hospital por conta de uma Covid horrível, qual o procedimento que ele estava realizando. Ele disse que ia fazer uma transfusão de sangue, mas que eu não tinha que entender nada. Só obedecer’. É terrível. Era como se ele tivesse exigido que eu desistisse do meu corpo. Por isso eu acho que a arte é absolutamente fundamental em todas as áreas.
Nonada — Na sociedade brasileira, nós temos um histórico de destratar a arte por meio da redução de sua importância. Como você percebe esse tratamento?
Ana Mae Barbosa — A arte é rechaçada no Brasil, e pra entender isso é só pensar na própria linguagem cotidiana da gente. Você fez uma prova horrorosa de matemática. Você chega em casa dizendo: “dancei em matemática”. Como é que dança? Uma coisa que te solta, que mexe com o teu corpo inteiro e tal. Como uma coisa tão positiva quanto a dança pode ser usada como sinônimo de fracasso? A mesma coisa acontece com o teatro. Se você está chorando porque acabou um namoro, outra pessoa fala: “Deixa de drama”. Agora, para mim, a pior de todas mesmo é relacionada ao desenho, quando dizem: “Entendeu ou quer que eu desenhe?”. Essa frase reproduz a ideia de que desenho é coisa para gente idiota e burra. A desvalorização das artes está na linguagem popular do Brasil. A criança, quando começa a misturar café com, sei lá, cebola, está “fazendo arte”. Todas as coisas rechaçadas pela sociedade são associadas à arte. A luta pela arte não é fácil. Tanto que é longa.
Nonada — Quais são as principais dificuldades para aplicar uma política de ensino com presença maior das artes nas escolas? Você acha que o cenário que temos hoje na arte-educação é diferente daquele que se tinha quando você começou a lecionar, lá nos anos 60, 70?
Ana Mae — Mudou bastante. Antes, no Brasil, nós não tínhamos arte [nas escolas], nós tínhamos desenho. Porque a nossa cultura se deve muito aos positivistas. E para os positivistas, a geometria é a máxima das ciências. Então a ideia deles era essa: ensinar o desenho geométrico. Vocês [jornalistas do Nonada] já não tiveram mais isso na escola, mas eu tive aulas de desenho geométrico. Era um horror para mim.
[Uma vez] a freira mandou a gente copiar uma borboleta que ela desenhou no quadro. Eu fiz a minha borboleta e entreguei a ela. Cada um que entregava, ela mostrava. Chegou na minha vez, ela não mostrou para a classe. Ela disse ‘que coisa horrorosa’, rasgou e botou no lixo. Eu fiquei para sempre com dificuldade para desenho.
Anos e anos depois, na USP, eu chamei Paulo Freire para dar um curso logo depois que ele voltou do exílio. [Um dia ele foi viajar], e eu dei uma aula sobre uma artista que eu gosto muito: a americana Judy Chicago, uma feminista de ponta. Eu vi o trabalho dela em 1978, o The Dinner Party, essa instalação que ela fez no Museu de Arte Moderna de São Francisco.
Era um negócio absolutamente tocante. Virou uma espécie de ritual passar naquela mesa, que era um triângulo. Os pratos de cerâmica sobre a mesa eram bem vaginais, em cima de um jogo americano bordado. Para cada um desses pratos, a artista escolheu como patronas mulheres de várias áreas do conhecimento, da literatura, da música, da medicina, da engenharia, etc. Em todas essas áreas ela mostrou que houve mulheres importantíssimas desde os tempos antigos. Eram 33 mulheres representando as diferentes áreas de conhecimento.
A Judy Chicago afirma em um dos livros que todo trabalhou começou a partir de pratos de cerâmica que ela fez em formato de borboleta. Eu disse isso para turma em sala de aula. Até então, eu não tinha ligado tudo aquilo com a minha borboleta [desenhada na época da escola].
Só conectei os fatos depois que saiu no jornal a Folha de São Paulo uma crítica dizendo: “Vejam o absurdo. Ana Mae Barbosa num curso de pós-graduação na ECA diz que os pratos da Judy Chicago são borboletas. Ela não olha para a dela, não?”. Era a pergunta. Aí, foi quando eu juntei tudo. Primeiro, existia uma reação contra mim porque Paulo Freire estava entrando na USP para dar o curso de pós-graduação. Queriam anular o curso. Só então que eu me lembrei da minha borboleta. Provavelmente, a freira rasgou a minha borboleta porque ela, inconscientemente vaginal, como a da Judy Chicago.
Nonada — No seu trabalho, qual foi o impacto de ter ido estudar arte-educação em outro país, já que no Brasil você não teve esse incentivo?
Ana Mae — Eu tive uma certa dificuldade nos Estados Unidos. É curioso porque há poucas coisas que eu lembro da minha mãe. Uma delas era ela dizendo, “quando você crescer eu quero que você estude nos Estados Unidos. Porque nos Estados Unidos eles valorizam as mulheres”. Mas não valorizavam. Ela achava que sim, mas não valorizavam naquela época. A luta ainda não tinha começado.
Eu peguei o auge do feminismo. Primeiro, essa obra da Judy Chicago e, depois, o debate feminista. Nos anos 1970, eu fiz mestrado. Depois voltei para o Brasil e, em seguida, voltei para os Estados Unidos para o doutorado. Sempre com pouco tempo. Porque tinha filho, marido. Aliás, eu tomava carona. Eu precisava convencer meu marido a ir para tomar carona na bolsa dele. Porque eu não conseguia bolsa. Eu pedia bolsa à CAPES para Arte-Educação, mas eles não viam Arte-Educação como uma pesquisa, mas como uma atividade. Fiz o mestrado e o doutorado sem bolsa.

Nonada — É histórico que a arte e a cultura sejam vistas dentro da educação como algo subserviente à educação no geral. Antes você falou sobre a década de 1970, e naquela época estávamos em plena ditadura militar. Nesse período, ocorreu a implementação do ensino das artes no Brasil. Você acha que é possível a gente relacionar momentos políticos com a importância não dada à arte-educação?
Ana Mae — Acho, sim. A arte na escola está muito ligada a posições políticas. Por que a ditadura torna obrigatório a arte? No senso comum, deveria persegui-la. Mas ali tratava-se de mascarar ideologicamente o currículo. Era um currículo super tecnicista. Já começava a pré-profissionalizar a criança na sétima série.
A educação média era toda tecnicista. Não funcionava, porque a escola não tinha dinheiro para ter os laboratórios disponíveis na sociedade. Para fazer análise laboratorial, por exemplo, você tinha que ter laboratórios na escola condizentes com os laboratórios dos hospitais. E não tinha. Então, você formava para nada. Você nem ampliava o seu repertório de vida e nem se preparava profissionalmente, porque não era suficiente aquele ensino para você ter um emprego logo depois.
Para compreender melhor o impacto da política na arte-educação, os liberais, por exemplo, começaram a trabalhar a importância do desenho na educação, como o Rui Barbosa e o André Rebouças. O Dom Pedro II foi com os liberalistas para os Estados Unidos, para uma exposição na Centennial Exhibition, que celebrava o centenário da independência americana, em 1876.
Ficaram fascinados com a escola de Massachusetts, que tinha contratado o professor inglês Walter Smith, da South Kensington School, na Inglaterra. O desenho já estava desenvolvidíssimo na Inglaterra por causa da revolução industrial. Os Estados Unidos mandam buscar, então, um inglês para implantar o Design no país. Eles [brasileiros] ficaram encantados com as coisas que eles conseguiam fazer em nível de High School da exposição.
O Rui Barbosa, ao voltar, encomenda a Dom Pedro II um currículo para a escola primária e secundária. O currículo tem dez páginas traduzidas do Walter Smith. Neste momento, a gente passa a ter uma influência americana liberal na educação. Os pais de vocês devem ter feito esse tipo de desenho, que é ampliação de figura. Isso foi implantado pelo Rui Barbosa. Chamava-se rede estimográfica.
Esses conhecimentos eram ensinados para que o operário recebesse uma demanda de um cliente e soubesse ampliar e pintar a imagem. Várias coisas eram muito práticas no currículo de 1883/1882, criado por Rui Barbosa. Nunca foi aprovado, implementado, mas esse tipo de trabalho dominou a escola até os anos 1950. Quando chega o modernismo, as coisas mudam. Não queriam preparar operários. O modernismo queria expressão, liberdade e inventividade.
Nonada — É nesse período que surgem as escolinhas de arte no Brasil. Qual a importância dessas escolinhas para o desenvolvimento da arte-educação no ensino brasileiro?
Ana Mae — As escolinhas surgem a partir de um homem e uma mulher: Augusto Rodrigues e Noemia Varela. O Rio Grande do Sul, inclusive, era o estado que mais tinha escolinhas de arte. No contexto nacional, Augusto Rodrigues cria a primeira, depois Noemia vai para o Rio de Janeiro trabalhar com ele. É quando as escolinhas se multiplicaram.
Chegamos a ter 140 escolinhas no Brasil. A ideia era evitar a cópia. Aquilo que antes era valorizado, a cópia, agora é totalmente banido. Foi o momento em que a liberdade de expressão passa a ser importante. Depois a gente percebe que a liberdade de expressão por si só não é o suficiente. Você tem que estimular, inclusive, a expressão. O pós-modernismo traz a ideia da leitura da imagem, além de uma maior elaboração e flexibilidade.
O pós-modernismo é introduzido pela abordagem triangular, que é essa ideia aqui no Brasil de fazer arte autônoma. Eu não falo nem de livre expressão, mas de expressão autônoma. Porque não somos livres, estamos bombardeados de informação. A leitura da obra de arte ajuda você a ler outras imagens. Especialmente na época de hoje, em que você pode ser facilmente manipulado pelas imagens.
Você grava no seu cérebro uma imagem inconscientemente, muitas vezes, para resolver um problema. É importante ter consciência do que se aprende através das imagens e da contextualização. Acredito que precisamos estudar mais a contextualização em si, porque o contexto é muito importante, a decodificação do contexto é que vai operar as mudanças sociais que a gente precisa.
Quando eu comecei, eu utilizava a História da Arte como contextualização. Coisa de professor universitário. Hoje acho que vai muito mais além da História da Arte. O contexto é vai desde o contexto político da tua cidade, da tua casa e da tua vida.

Nonada — Como você analisa a abordagem triangular nos tempos de hoje. Ela se modifica ou se transforma com a intensa utilização da tecnologia digital e do celular?
Ana Mae — Eu acho que [a tecnologia] vai facilitar muito. Uma palavra que evitei usar quando lancei a Abordagem Triangular é “releitura”. Eu não usei a palavra releitura em nenhum contexto. Usei apenas nas imagens, dizendo “releitura de fulano de tal, releitura de fulano, de ciclano”. Passei exatamente 10 anos entre essas pesquisas, uma no MAC, em Porto Alegre, e a outra com Paulo Freire na prefeitura de São Paulo.
Hoje em dia, as pessoas entenderam a releitura e vão entender mais ainda com a Inteligência Artificial, porque ela não vai ser usada para copiar. Não adianta nada. Tem outras coisas, outros meios de copiar facílimos e mais baratos. Acredito que a Inteligência Artificial será usada para outra coisa.
Eu acho até que, talvez, a IA traga para a Abordagem Triangular uma coisa que ficou de fora, e que eu acho muito importante. Analisando, por exemplo, a arte-educação em Portugal e no Brasil. A do Brasil é muito mais avançada sem comparação. Só que eles tem uma coisa que nós não temos: associar a arte-educação com a literatura. A gente não associa tanto com a literatura, e seria riquíssima associar literatura com as Artes Visuais. Eu estou falando das Artes Visuais porque é com o que trabalho. Então acredito que coisas muito boas podem surgir dessas relações.
Nonada — Que mundos possíveis você vislumbra num Brasil onde o ensino e a experiência das artes e da cultura popular são oferecidos de maneira sólida e contínua nas escolas?
Ana Mae — É preciso arte não só na escola primária e secundária, mas na universidade também. Por que não estimular que os alunos da universidade de qualquer área façam cursos de arte? Isso para mim é um sonho, sobre o qual eu conversei muito com o reitor ao qual eu servi [Roberto Lobo, Gestor da USP de 1986 até 1993]. Ele é físico, mas ele tem paixão pelas artes e conversávamos muito sobre isso na época.
Quando eu dirigi o MAC, cheguei a fazer um programa aberto para toda a universidade. Eu tinha um curso de teatro associado à coleção do MAC para toda a universidade. Teve fila para para a inscrição do projeto. O que me interessava era essa leitura da coleção do MAC e associar a outras artes, como literatura, música e a teatro. Conhecer e ler por si só não basta. Fazer é importante. Acho interessante permitir que os alunos tenham a possibilidade de fazer uma área de arte no ensino superior.
Nonada — É convocar o corpo, não é? Entendemos que teu trabalho enfatiza a dimensão corporal, a participação, e não só uma visão passiva do aprendizado, seja de artes ou de outros temas.
Ana Mae — Na arte é importantíssimo porque não tem outra área que mexa com o corpo através de proposições tão inventivas. O esporte é importante, mas o esporte é normativo. A arte não é normativa.
Nonada — Para a encerrar a nossa conversa, gostaríamos de saber da Ocupação Itaú Cultural em sua homenagem, contando a sua vida. O que mais te marcou quando você entrou lá?
Ana Mae — Olha, a primeira coisa que mais me marcou foi algo vulgar e simples. Eu nunca pensei que eu teria tanto sucesso como diretora do MAC. Na exposição do Itaú, eles colocaram um índice de visitação relacionado a todos os anos do MAC. Quando eu entro o índice sobe, quando eu saio a visitação baixa. Eu nunca tinha me visto nessa posição, porque eu fui muito maltratada pelo sistema das artes. Nossa, como eu sofri! É porque eu era teimosa, sempre fui teimosa. Eu não estou fazendo aquele trabalho por brincadeira e nem achismo.
Eu vinha dos Estados Unidos muito bem informada. Nos anos 1970, a multiculturalidade dos Estados Unidos era o que dominava o debate. Eu vi os alunos da universidade deitados nas ruas da universidade como protesto contra a guerra do Vietnã. O antirracismo era algo básico. Eu nunca entrei numa sala de aula nos Estados Unidos que não me perguntassem sobre racismo no Brasil, e no sentido de que achavam que no Brasil não existia racismo. Era um drama para mim ter que denunciar o meu país, porque eles diziam “você vem de um país que não tem racismo” e eu dizia: “o quê? vamos lá, vamos começar”.