Como rezas, ervas e saberes tradicionais fortalecem a saúde mental em quilombos e aldeias

Práticas culturais são fundamentais para o bem-estar e o cuidado mental das comunidades tradicionais
Quilombo Bitiua, em Bacuri (MA) (Foto: Lucas Veloso)

Entre indígenas e quilombolas, a saúde mental não é vista apenas como uma dimensão individual. Ela é compreendida como parte de um cuidado comunitário e espiritual. Práticas ancestrais — como rezas, rodas de escuta, rituais de passagem e benzimentos — seguem sendo estratégias de enfrentamento diante do adoecimento psíquico.

No caso dos povos Guarani, a casa de reza faz parte até mesmo do calendário escolar. Cânticos e rezas semanais são considerados tão importantes quanto as aulas formais. Além disso, práticas como o xondaro, uma dança e luta comunitária, fortalecem simultaneamente corpo e espírito.

Nos quilombos, benzedeiras, parteiras e puxadores de ervas continuam atuando no cuidado à saúde. São elas que transmitem saberes de cura e acolhimento, preparados com chás, ervas e rezas. Como resume o quilombola Raimundo Magno Cardoso Nascimento, liderança do quilombo África, no Pará: “O que de fato é fundamental é o trabalho das parteiras, das benzedeiras, dos puxadores, das ervas, daquele que bebe, que cura, que faz o chá.”

Para Otto Payayá, indígena do povo Payayá e coletor de ervas medicinais e sementes da Chapada Diamantina (BA), a saúde mental está profundamente ligada aos saberes herdados dos ancestrais. “Quando alguém adoece, a gente não olha só para o sintoma. Primeiro vem a escuta, o diálogo, entender de onde começou aquele sofrimento. Depois vem o banho, o chá, a reza, até um abraço, um afago. É assim que se vai acalmando a mente e fortalecendo o espírito.”

Otto Payayá (Foto: acervo pessoal)

Esses conhecimentos, transmitidos de geração em geração, orientam tanto o cuidado com o corpo quanto com a mente. “É histórico, secular. Vai do avô, bisavô, tataravô. Hoje a gente prepara os mais jovens para assumir essa responsabilidade, porque o cuidado exige zelo, espiritualidade, ligação com a terra, com as águas, com a floresta.” Otto destaca a prevenção como princípio, que inclui rituais de limpeza do corpo e do espírito com ervas como caçaú, quina, taraxaco, cúrcuma e carqueja, além de banhos, rezas e vomitórios. “Não é uma cura mágica. É um processo de paciência, cuidado e acompanhamento coletivo.”

Ele lembra que ataques históricos aos territórios indígenas — invasões, desmatamento e mudanças climáticas — também são fatores de adoecimento. “É como se alguém entrasse na sua casa e dissesse: isso não é mais seu. Essa pressão turva o sangue e afeta o pensamento, o comportamento perante a vida.” Ainda assim, Otto defende o diálogo entre saberes: “Quando a medicina acadêmica desce um pouco do seu patamar e procura conhecer as práticas indígenas, todo mundo ganha. A gente respeita os limites de cada lado, mas quer manter nossa forma de cuidar, porque ela dá resultado.”

O peso das violências e do racismo

Esse tecido comunitário, no entanto, sofre pressões permanentes. Em 2023 e 2024, duas mortes por suicídio — de uma adolescente de 15 anos e de um jovem — abalaram aldeias Guarani no Rio de Janeiro. O fenômeno, até então incomum, levou pajés e lideranças a promoverem encontros, buscando estratégias de prevenção junto a crianças e jovens.

No Pará, comunidades quilombolas também sentiram os efeitos dessa crise. No território Tijarapeiro Preto, formado por 14 comunidades, casos levaram  à criação de um projeto de apoio psicossocial. A iniciativa mobilizou psicólogos, enfermeiros, advogados e comunicadores durante um ano inteiro. “A equipe acabou fazendo um trabalho muito denso, muito sólido, para identificar essas questões de adoecimento e trabalhar o processo de formação em comunicação da juventude e de quem quisesse participar”, explica Raimundo Magno.

O líder quilombola Raimundo Magno (Foto: acervo pessoal)

Ainda que o trabalho tenha gerado frutos, ele reconhece a precariedade do sistema público: “Criamos meios de orientar as famílias a procurar os serviços de saúde. Depois, discutimos com os próprios serviços, mas vimos que infelizmente são cheios de deficiência, de necessidade de ajuste e investimento público.”

Para a pesquisadora Ana Paula da Silva, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e associada ao PROÍNDIO/UERJ, os fatores de violência estrutural são determinantes para a saúde mental. “Essa violência do racismo afeta muito a vida dos indígenas”, observa. O sofrimento psíquico, explica, não pode ser separado das condições de exclusão, precariedade e desrespeito que marcam historicamente esses povos.

Ela também aponta novas pressões que atravessam os territórios, como o impacto das redes sociais e da substituição de alimentos tradicionais por ultraprocessados. “Você fica o tempo todo nas redes, vai se isolando, se individualizando, e são povos extremamente coletivos”, analisa. Para Ana Paula, essa ruptura enfraquece vínculos comunitários que antes funcionavam como proteção simbólica e emocional. Já a mudança alimentar afeta tanto a saúde física quanto a cultural: “Vai comendo essas comidas congeladas, industrializadas, e isso enfraquece o corpo das pessoas.”

Deslocamentos e adoecimentos 

No Quilombo Bitiua, em Bacuri, oeste do Maranhão, a rotina de Ana Cláudia Lisboa Mendes se divide entre o giz e a enxada. Aos 29 anos, formada em pedagogia, ela dá aulas para crianças quilombolas na escola local. Nos intervalos, ajuda a família na lavoura, cultivando os alimentos que garantem a sobrevivência da comunidade.

A história de Ana Cláudia aponta para uma questão central: a saúde mental, para quilombolas e indígenas, é indissociável de identidade, pertencimento e coletividade. O que aprendeu com o pai e a mãe — a soletrar à noite, a quebrar o coco babaçu, a preparar farinha e tapioca — ela chama de herança. “Esse conhecimento de origem a gente nunca perde”, resume. Mas sua trajetória também foi marcada por deslocamentos e episódios de violência simbólica. Em Belém, para onde se mudou em busca de trabalho, viveu experiências que revelam o peso do racismo cotidiano.

Ana Cláudia Lisboa Mendes (Foto: Lucas Veloso)

Foi chamada de “Maria” por patrões que, de forma preconceituosa, insistiam em reduzir todas as empregadas negras a um nome genérico. A resposta foi firme: “Meu nome é Ana Cláudia. Se naminha identidade tivesse Maria, o senhor poderia me chamar de Maria. Mas meu nome é Ana Cláudia, então me chame assim”.

Hoje, de volta ao quilombo, sonha em unir pedagogia e psicologia. “Se me especializar, serei uma profissional dentro da minha sala. Aí consigo conversar melhor, controlar situações, apoiar meus alunos e a comunidade em situações traumáticas.” 

Saberes tradicionais e acadêmicos

Em Alagoas, os saberes tradicionais quilombolas foram incorporados em um projeto da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau). O Mate Masie, termo da cultura de Gana que significa “eu guardo aquilo que eu ouço”, nasceu em 2023 a partir de uma demanda direta de comunidades quilombolas, que recusaram atendimentos médicos convencionais e pediram ações voltadas à saúde mental. “A gente parte do conceito ampliado de saúde mental. Terra é um determinante, o trabalho, a questão cultural, é da etnia”, explica Tereza Cristina, supervisora de atenção psicossocial da Secretaria.

Um dos pilares do programa é a valorização dos saberes tradicionais. “Quando a gente vai fazer esse levantamento inicial, já avaliamos o que eles têm de processos de cura no território: benzedeira, rezadeira, comunidades que produzem chás e rituais”, relata Wilzacler Rosa, psicóloga e coordenadora do Mate Masie. Esses agentes locais são convidados a compartilhar práticas de cuidado junto aos profissionais, construindo um atendimento compartilhado.

Em pouco mais de um ano, o programa visitou 12 comunidades quilombolas em 7 municípios, alcançando 1.968 famílias por meio de 96 visitas domiciliares e realizando mais de 1.400 atendimentos diretos. Mobilizou especialmente as mulheres — 2.159 participaram de rodas de conversa e oficinas de geração de renda — e fortaleceu a rede de atenção psicossocial com a capacitação de centenas de profissionais em prevenção ao suicídio, redução de danos, rastreio de autismo e notificações. Também promoveu emissão de documentos, oficinas de tranças, culinária e artesanato sustentável, reforçando a geração de renda e o resgate cultural.

Entre os impactos, o Mate Masie contribuiu para a criação de um comitê específico para pautas quilombolas em um território e inspirou mudanças em formulários de notificação do Ministério da Saúde. “Nunca fomos a uma comunidade e mantivemos a programação que levamos. Sempre mudamos dentro do território. A gente não chega impondo, mas construindo junto”, resume Tereza.

Para a psiquiatra e ativista Laura Eiko Uyeno, os saberes tradicionais exercem papel fundamental no cuidado em saúde mental. “Grande parte das soluções de transtornos mentais mais leves que acontecem no dia a dia das aldeias, os aconselhamentos e os saberes tradicionais já ajudam muito.” Mesmo quando tratamentos biomédicos são sugeridos, muitos jovens continuam recorrendo aos pajés para orientação espiritual e emocional.

Quilombo Bitiua, em Bacuri (MA) (Foto: Ana Cláudia Lisboa Mendes/acervo pessoal)

Ela destaca o uso de ervas e essências naturais como parte central desse cuidado. “Eles usam muito as próprias ervas e essências, como alecrim e lavanda, que ajudam em crises de ansiedade.” Nos encontros nacionais como o Acampamento Terra Livre, Laura observa a coexistência entre equipes médicas e setores de práticas tradicionais: “A gente só é chamado quando são situações muito urgentes, porque o tratamento menos invasivo já consegue resolver muito.”

Segundo Laura, esses saberes fazem parte de uma cosmologia que articula corpo, espírito, comunidade e território. “O bem-viver é uma relação do corpo com o próprio território. Se a comunidade não está saudável, não está em paz, cada indivíduo adoece também. É um adoecimento coletivo.”

Ela ressalta que o diálogo entre medicinas só acontece quando há reconhecimento dessa lógica. “Eles têm os próprios conhecimentos e nos trazem conhecimentos. Estamos trocando formas de cura e saberes. Antes de entrar no território, o branco precisa primeiro ser acolhido como igual. Só assim o tratamento é aceito.”

Por fim, Laura aponta que o fortalecimento das práticas tradicionais depende da ocupação de espaços acadêmicos e de saúde pelos próprios indígenas. “Acredito cada vez mais na criação de universidades indígenas, com saberes tradicionais em várias áreas. Isso será muito mais assertivo do que quando chegamos com uma caixinha de medicação impondo uma cura.”

Para enfrentar a crise de saúde mental em territórios indígenas e quilombolas, especialistas apontam que é preciso articular políticas públicas à valorização dos saberes tradicionais, reconhecendo que a cura não está apenas em medicamentos ou atendimentos clínicos, mas também em práticas coletivas, espirituais e no vínculo com a terra.

Como resume Ana Paula da Silva: “São conhecimentos diferentes, mas não são superiores ou inferiores. Eles são só diversos. Para muitos povos, riqueza é ter um território saudável, uma água limpa, animais e parentes ao redor. Isso é vida boa. A nossa visão capitalista não compreende, porque valoriza o dinheiro, mas para eles o sentido de bem-viver é outro”.

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