A história do Aguidavi do Jêje, a orquestra percussiva que nasceu em um terreiro de Candomblé

Hoje a orquestra Aguidavi do Jêje é também uma escola de música e artes em Salvador.
Diego Bresani/ Divulgação

Salvador (BA) – No alto da ladeira do Engenho Velho da Federação, um dos bairros mais negros de Salvador – originalmente quilombo, segundo a oralidade – ergue-se o Zoogodo Bogum Malê Rundó, mais conhecido como o Terreiro do Bogum, ou simplesmente o “Jêje”. É deste terreiro, o mais antigo da nação no Brasil, que o mestre Luizinho do Jêje herda o nome e faz nascer a orquestra percussiva afro-brasileira Aguidavi do Jêje, com mais de duas décadas de história.  

Pressionado pela especulação imobiliária, cercado por casas que avançam sobre seus muros, o Bogum tem raízes fundas como matriz do Jeje-mahi no Brasil, preservando o culto aos voduns de origem daomeana, região do antigo Reino do Daomé — atual Benim. Fundado por africanos, segundo o professor Luis Nicolau Parés, mantém funcionamento desde 1860. Nas tradições orais é associado à Revolta dos Malês: “Bogum” remete à caixa onde negros ligados à revolta escondiam seus tesouros. 

A orquestra iniciou em 2004, quando Luís Carlos de Oliveira de Souza, Luizinho, deu início à uma “tradição familiar”, inspirado pelo interesse do filho Kainã do Jêje pela percussão. Ensaiavam e treinavam juntos, o que já se relacionava ao seu cargo de ogã no Bogum – responsável, entre outras funções, pelos atabaques. A prática da família chamou atenção da comunidade ao redor, reunindo mais de 30 jovens de toda a região do Engenho Velho da Federação para criar levadas originais.

O bairro em si reforça a experimentação. É destaque pela elevada concentração de terreiros, e de comunidades antigas e influentes no candomblé brasileiro. Na avenida vizinha à Ladeira do Bogum, a Avenida Vasco da Gama, encontra-se o Ilê Oxumarê e o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká), dois precursores e referências de nação ketu, com os quais o Bogum tem relações históricas muito próximas. O antigo terreiro Pó Zerrém (de culto Jeje-mahi) e o terreiro Tanuri Junsara (de nação Angola), também estão relacionados com a história da casa. 

Inventividade e transformação — como a Serpente

O entorno do bairro, marcadamente afro religioso, reflete-se nas próprias sonoridades produzidas pela orquestra. No início, ainda como um projeto educativo, Luizinho disse ter observado a junção de “três atmosferas” — jeje, nagô, ketu, nagô-angola — obtendo como resultado a criação de novas levadas. Cada nação, de origens étnicas diferentes, imprime no ritmo um modo de condução dos quais os jovens oriundos dos terreiros vizinhos trouxeram consigo. No jeje, usa-se o ‘aguidavi’, uma espécie de baqueta confeccionada a partir de galhos de goiabeira. Na angola, as mãos. E no ketu, um misto dos dois. 

Essa diversidade, frente aos avanços modernos, é uma estratégia cultural aliada à experiência. Pelas bases da tradição, é nas mãos da juventude que acontece o fazer cultural. A junção dos olhares distintos na administração dos atabaques resultou no que é o Aguidavi, uma composição original: “Quando eu decidi fazer o projeto, disse: ‘não quero copiar nada’. Se for fazer, precisa ser original, de levada e de composição”, afirmou Luizinho. 

No Candomblé Jeje, as divindades cultuadas, chamadas de voduns, expressam-se por meio da natureza e da ancestralidade. A serpente sagrada, chamada de vodun Bessém, Dan ou Dangbé, é considerada a ‘rei da nação’ jeje, sendo associada à transformação. Essa é uma ideia pilar do trabalho de Luís, que movido pela inventividade própria das culturas negras e originárias, fez da reciclagem uma aliada da música. 

Foto: Diego Bresani/ Divulação

Tampinhas de garrafa, latas de desodorante e cola de sapateiro viraram instrumentos. “Quando eu faço instrumento, colo alguns panos. E aí, percebi que a lata da cola que eu utilizava para isso, poderia também virar um instrumento. E tudo isso foi passado na escola.” 

Outro exemplo é o violão percussivo, que Luizinho declara ser uma levada autoral. Uma singularidade sonora que ele incorporou à orquestra, e que pela rítmica acelerada, no contratempo, está fora da padronização temporal linear, aproximando o instrumento harmônico da percussão. Como lembra o Obá Aressá do Ilê Axé Opô Afonjá e professor Muniz Sodré, no livro Samba o Dono do Corpo, o ritmo musical implica uma “forma de inteligibilidade do mundo”. Assim, ao ocupar o espaço vazio com o som, unir a diferença e a tradição, Luizinho do Jêje descreve também sua visão subjetiva sobre o mundo. 

As referências de Luizinho

Sua vida, inserida na música e na religião desde a infância, revelou uma missão para o percussionista. Enquanto menino, sua ancestralidade – especialmente sua mãe Zildeth de Odé, a Odéssi – o conectou de maneira íntima aos fundamentos do Bogum, que são africanos, e à formação espiritual e musical que o permitiram lecionar.

Zildeth Oliveira de Sousa tornou-se vodunsi de Agangatolu no Bogum (iniciada para a religião) quando ele tinha um ano de idade. “Se não fosse ela [minha mãe], não sei o que seria eu.” Ainda na infância, Luizinho foi confirmado Ogã de Oxum, apadrinhado por Celestino, ogã e carpinteiro da casa, e por Doné Nicinha, Evangelista dos Anjos Costa, a Lokossi – consagrada ao vodun Loko –, uma sacerdote essencial para a linhagem do terreiro e a terceira a liderar desde a fundação (dos anos 70 aos 90).

Luizinho aprendeu tudo sobre música com o Huntó Amâncio Melo, um ogã responsável pelos atabaques e cantigas. “A partir do candomblé que veio a rítmica”, diz Luizinho. Amâncio era filho de santo de Doné Runhó, Maria Valentina dos Anjos, grande liderança dos tempos modernos do Bogum, consagrada a Sogbo Adan, e mãe de santo de Odessi. Ela contribuiu para tornar a casa uma referência marcante no bairro. A praça próximo à Ladeira do Bogum, no topo do morro, foi batizada com seu nome, e recebeu uma estátua em sua homenagem, por iniciativa do governo. 

Amâncio também é pai carnal da atual líder da comunidade, Zaildes Iracema de Mello, a Naadoji Índia. Líder do terreiro desde 2003, Luizinho atribui à ela grande importância para a continuidade da orquestra durante a pandemia. 

Em 2020, o Aguidavi do Jêje foi contemplado com o edital Natura Musical para um projeto destinado a Escola Aguidavi, mas carecia de um espaço. Nadoji Índia foi quem concedeu no terreiro o abrigo para a iniciativa, em uma postura de apoio a este e outros projetos culturais. 

Foto: João Acácia/ Divulgação

Terreiro que é escola

Foram quatro meses de aula. “Descobri vários talentos da comunidade, meninas e meninos, que futuramente podem entrar para o Aguidavi. Foi um momento que eu aprendi com eles, e com a cabeça já assim: Por que não fazer uma escola? E chegou o momento.”

Depois da pandemia, apoiado pelo grupo, Luís tomou uma decisão: “O projeto nasceu dentro do terreiro, quero gravar dentro do terreiro.” Os músicos acolheram a ideia, e em paralelo às aulas, trabalharam em seu álbum de estreia. “Quando os caras viram o equipamento chegando, falaram: ‘Ih, agora o negócio é sério’.” 

Lançado pelo selo Rocinante em formato digital e vinil, pouco tempo depois foi indicado ao Grammy Latino 2024. A indicação foi vista com olhos de vitória, por se tratar de uma musicalidade historicamente reprimida: “A gente cantando puramente macumba. Só o fato de ser indicado, é uma vitória. É só macumba.”

As festas populares, os ritmos e a religiosidade marcam a vida neste bairro cultural e da música. Luís, não diferente, cresceu participando dos festejos de samba duro, afoxés e “blocos de índio”. Apesar disso, a comunidade nunca contou com uma escola de música, o que o motivou diretamente a lutar por isso: “Sempre vivi música. Minha maneira de retribuir é reviver isso para a comunidade. Para os meninos terem um futuro, uma direção.” 

No mês de agosto deste ano, o projeto concretizou o sonho de um espaço próprio para o trabalho educativo, em frente ao Bogum: a Escola Aguidavi do Jêje. Não há uma pretensão de saída total do espaço antigo dentro do terreiro, mas sim de interligar, aproveitando a nova aquisição para outras atividades: “Essa ligação não pode parar, né. A escola e o terreiro.” Já são 60 alunos inscritos e a ideia é acolher mais, com as aulas começando em outubro. “Vi alguns meninos que antes não tinham noção do ritmo aprenderem a tocar, e seguirem seus caminhos, isso despertou a noção da possibilidade de lecionar em mim.”

A dualidade do tambor

Há algumas décadas atrás, no Bogum, existia um pé antigo de jaqueira, a matéria prima de um instrumento como o atabaque. Ele era consagrado ao vodun Azonodô (pertence a família de Dan), e recebia em seu pé cultos e oferendas. Essa árvore centenária tombou em 1979, e com a parte do pé, “os caras cortaram, começaram a cavar, e fizeram os atabaques, junto com meu padrinho [Celestino].” A madeira foi cavada – processo onde o tronco, inteiro, é cavado por dentro, até vazar do outro lado – e transformada nos atabaques utilizados no culto, sacralizados. 

O som é um elemento central nas culturas negras e africanas, dinamizador das relações de axé e força. O atabaque, pilar de tudo que Luizinho construiu musicalmente, também é “uma coisa muito sagrada, um instrumento que tem um poder.” Sobre os instrumentos utilizados no projeto em comparação aos que operam exclusivamente para o culto, instaura-se uma dualidade que, mesmo pela diferença, não se anula. 

Foto: Diego Bresani/Divulgação

Os atabaques que estão na escola não são considerados “do fundamento” mas tem “um som profundo”. Eles são feitos de madeira reciclada, em tiras chanfradas, coladas umas nas outras, e carregam “o poder de tambor”, feitos com o couro de bode: “Ele é um atabaque que já pega essa energia, dá coisa de ser um atabaque. Um atabaque que tem uma ligação forte com a natureza, para o tipo de música que a gente faz.”

O caráter sofisticador seria o fundamento, um processo sob o qual os atabaques de dentro do terreiro são submetidos, e que tem como base a alimentação energética desses instrumentos: “O atabaque, principalmente os daqui, passam por processos de fundamento. Fazemos ‘obrigação’ nele, damos de comer, porque começa tudo nele”, diz Luizinho.

O som precisa ser feito, é um resultado, como esse dos jovens que operam os aguidavis, em contato com o couro, em afinações diferentes do run, do e do (nome dos atabaques). Em sons mais agudos, ou mais médios, os atabaques são administrados por mãos de sacerdotes, dentro do terreiro, o que para Luizinho faz com que eles “entrem na onda de um fundamento” e que “sejam mas não sejam” sagrados. Os conteúdos das aulas da Escola e sua maneira de ensinar acontecem de acordo com os aprendizados das culturas afro religiosas e afro-brasileiras. 

Com a benção de Gilberto Gil

Em um modelo de formação para os ogãs, objetivando a permanência de noções caras à tradição da casa, ele ensina sobre a liturgia, como o comportamento de um ogã no pagodô (espaço onde ficam os atabaques), por exemplo. “É importante aprender como se ‘sentar no atabaque’, na hora do xirê, porque ali não tem brincadeira. Quando começa a festa, tem que prestar atenção nos voduns, no orixá que está ali na frente, no nkise, porque ele vai fazer um movimento que você tem que acompanhar no atabaque, principalmente no run.”

As aulas de música expandiram o alcance, e alguns ogãs passaram a trabalhar em shows, com artistas da música brasileira. Luizinho identificou a necessidade, então, de ensinar aos meninos a “como se comportar” fora dos muros do Bogum. “Você não pode tocar como se toca numa festa religiosa, num palco”, e vice versa, mesmo que os ritmos afros sejam populares nessa área, como o ijexá, o agueré, o ilú, o alujá. 

Essa sabedoria se dá graças a uma longa estrada percorrida pelo percussionista, um dia também um menino, que começou a tocar profissionalmente no Olodum em 1992. Trabalhava, jovem, e mantinha outras atuações profissionais como autônomo. Um dia pediu que alguns amigos mais velhos, músicos do Olodum, o levassem para conhecer o grupo. Considera ter dado “uma sorte” de criar amizade espontânea com Neguinho do Samba, figura que revolucionou o Olodum e a música nacional, na questão rítmica com o samba-reggae. 

Foto: João Acácia/Divulgação

Em um episódio, houve uma reunião do Olodum para decidir quem iria tocar com o Paul Simon, em sua vinda para Salvador. Luizinho foi escolhido para essa oportunidade, e a partir daí, deslanchou a tocar com vários artistas e a conhecer vários países. “Acho que eu tinha meus 18, 19 anos. Foi uma escola, para eu crescer, e toda viagem eu fui comprando um instrumento.”

Elpidio Bastos, diretor musical e baixista do Olodum por algum tempo, viu a dedicação de Luiz e o chamou para trabalhar na percussão com ele. “Foi aí que despertei, quando o Neguinho do Samba saiu do Olodum, depois eu saí também.”

Caminhar entre os mundos da percussão, religião e arte, proporcionou contato com grandes figuras, como Gilberto Gil, que participou do álbum de estréia do Aguidavi do Jêje. Uma parceria feliz, um apadrinhamento ao projeto. A partir de uma conversa com Gil, Luizinho o convidou para gravar, e ele prontamente aceitou. “O disco já estava pronto, esperando a participação do cantor. Foi um padrinho, topou, tocou muito.”

Agora, com a primeira escola de música do bairro estruturada, Luiz diz ser sua preocupação iniciar as aulas conforme o previsto, e o apoio para os planos que pretende realizar: “Vai ter tudo, professores diferentes de harmonia, canto, artes plásticas e dança. Aulas de guitarra, baixo e piano.” 

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