Entrevista: Mestre Telmo, griô e compositor da banda Kalunga Quilombola

Texto e Fotos Douglas Freitas

“Eu não sou artista, cara, sou militante”. É o que diz Telmo Flores, dando pistas do caráter de luta da banda Kalunga Quilombola, da qual é o vocalista e o principal compositor. Apesar de não se ver como artista, “Mestre Telmo”, como é chamado pelos outros integrantes do coletivo, se preocupa com a evolução técnica da banda e com o como vai ser recebida a próxima “intervenção cultural”, que acontece no próximo sábado, dia 8, no Afrosul Odomodê. É o lançamento do primeiro CD da Kalunga. Na noite, shows de abertura com a banda La Digna Rabia e com a rapper Negra Jaque estão previstos.

O álbum, chamado Na trilha e no ritmo do negro, foi gravado através do Edital Estúdio Geraldo Flach, da Prefeitura de Porto Alegre, e prensado e distribuído com o dinheiro arrecadado em um financiamento coletivo. São dez músicas de peso, com letras que falam sobre a afirmação da negritude, sobre a luta quilombola, sobre a repressão policial, sobre o dia-a-dia de quem vive em situação de rua. “Não somos entretenimento. Se for, é um entretenimento com mensagem. Se não for com mensagem, nem faço”. Além de Telmo, na composição atual da banda, quatro mulheres puxam os microfones. Duas guitarras, violão, bateria e três percussionistas. Composição que garante um som cheio, que preenche o corpo, com muitas quebradas e balanço.

Na trajetória da Kalunga, são diversas apresentações em quilombos (como o de Casca, o do Silva, dos Machado, Morro Alto) e em outros territórios de luta, como a Escola Porto Alegre – mantida devido à batalha dos seus estudantes, a maioria pessoas em situação de rua -, a Ocupação Lanceiros Negros e a Ocupação do Demhab. Em outro espaço de luta, no Moinho Negro, mais especificamente no “Estúdio Caverna”, rodeado por caixas de som e tambores, por mais de 1h30min, Telmo falou sobre sua trajetória com a música, sobre a formação da Kalunga, sobre o que é ser negro e sobre questões como a atuação da polícia, a influência do sistema político na vida do negro e o trabalho de base da direita.

Nonada – Como é a tua trajetória com a música e como é que surgiu a Kalunga nessa história?

Telmo – Desde a minha adolescência eu sempre tentei expressar o que eu sinto através de versos e prosa, de música. Sempre quis escrever, fazer, tentar. Depois, meu amigo Claudinho que estudava na OSPA, que era muito meu amigo, hoje tá morando na Bahia, me disse: “Ô, meu, tu tá comprando uma motinho e tu não tem um violão, porra”. Bah, não tenho mesmo, mas nós fazia samba lá em casa, nas batucadas e ele também como compositor fazia uns lances. Um cara bom de cello para caralho. E aí começamos. Comecei mais com o violão, mais com a viola, cantando junto com os caras que tocavam as minhas músicas. “Ah, faz aí então”. Em seguida eu comecei a curtir as escolas de samba, principalmente a Imperadores. Lá a gente tinha uma ala chamada Jorge Luis, que é uma baita memória que eu tenho daquilo lá. Bah, cara, dentro de uma escola de samba que só tem nego que toca violão, cavaquinho, surdo, pandeiro, fazer samba foi fácil. Fácil não, né? Então a gente começou. Fiz um samba para a ala Jorge Luis que eu tive a felicidade de ver a bateria da escola tocando. Os caras cantando lá, sabe? E eu não canto.

Tô cantando agora na Kalunga, mas eu era todo introvertido. O João Sete Cordas foi um cara que me entusiasmou bastante, me deu bastante incentivo. Quando eu entrei na ala Jorge Luis, onde começa esse ciclo de músicas, eu era militante partidário, ex-petista, de esquerda, acreditava nessa história. Hoje eu não sou mais. Então a gente começou a organizar essa ala, a militar. Então eu fiz um samba para a ala. A gente participou até das eleições para querer assumir o troço lá. Um coletivo maravilhoso, forte, 50 negão. Homens, mulheres, crianças. Lá na nossa ala ia o Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Neguinho da Beija-Flor. Quando começou esse embate perene dentro da escola, a gente fez uma música e gravamos em um estúdio para fazer as chamadas. Acabou que todo mundo na quadra já sabia da música. “Que onda é essa meu irmão, de razão, força e raiz”. Eu tenho até uma jaqueta que eu uso até hoje. “De razão, força e raiz. O bicho tá solto, pode crer, na ala Jorge Luis. Toma cuidado seu moço…”.

A direção da escola, que era o presidente, que é meu amigo, já faleceu, que é o Roberto Barros, o Betinho da Imperadores. “Toma cuidado seu moço, que é para não se machucar. Porque o bicho tá solto e ele pode te pegar. Somos todos irmãos no direito e na razão. Vamos abrir essa panela, se não vira tradição. Por que a massa tá cansada de tanta enrolação”. Então isso foi uma coisa assim que a bateria [imitando o som da bateria], pô, pegou cara, e eu ali vibrando. E tem um termo que eu uso nessa música que é “se não vira tradição”. Essa filosofia que tá sendo implantada, esse método não é o nosso. Aí depois o João Sete gravou para cantar. Começa aí.

Nonada – Que ano foi isso?

Telmo – Isso foi 84, 85, por aí. Isso de uma maneira quase que oficiosa. Eu tinha uns sambas antes disso. Então, bicho, dali foi muito legal, me deu um plus. Em seguida eu tive uma dádiva de ter um convívio, meio que breve, com o Bedeu. Grande Bedeu, meu amigo. E o Bedeu me deus uns toques. Fui trabalhar com ele em uma escola de samba que ele foi contratado. Ele me levou junto, porque a gente tava bem parceiro, né? E eu conheci essa sumidade que é o Jorge Moacir, o Bedeu, sabe? Que me ensinou quebradinhas, tu tá entendendo? Para eu aprender a compor, cara. Que ele era um mestre do caralho, o Bedeu, pô. E ele disse “Negão, pensa em uma história, tenta embelezar, tentar contar ela, tenta fazer versos e prosas. A história da tua vida, como é que foi? Aí tu vai botando…”. Pô, dali foi um “pein”, né, cara, para eu conseguir deslanchar um pouco mais. Dentro das minhas limitações, né? Porque compositores afudê mesmo eram eles. Eu comecei a meter a cara no mundo. A fazer essas coisas. O “Xô Homofobia”. Hoje é o “Oxumaré”, que tá gravado [música presente no CD da Kalunga], foi lá na Imperadores, cara. Eu tenho dois períodos na minha vida. O primeiro de um menino pobre, mas que tinha acesso a algumas coisas. O meu pai era um negro muito trabalhador, né? Um negão que falava francês e alemão razoavelmente bem. E a minha mãe, analfabeta, uma índia muito bonita. E o meu pai negão. Igual a eu assim. Que eu sou o mais preto da família. Tem mais dois irmãos que são claros.

Mestre Telmo, com 65 anos, começou na música na Escola Imperadores do Samba, na década de 80 (Foto Douglas Freitas)
Mestre Telmo, com 65 anos, começou na música na Escola Imperadores do Samba, na década de 80 (Foto Douglas Freitas)

Nonada – Tu é daqui?   

Telmo – Sou daqui. Nascido e criado em Porto Alegre. Aí, cara, de uma dissidência da Imperadores fizemos o Areal da Baronesa, que se tornou a Academia de Samba e Integração do Areal da Baronesa. Que hoje é o Quilombo do Areal, entendeu? E lá ainda tem trabalhos desse grupo que se formou, que eu fazia parte. Eu, Celso e o Juarez que formamos o Areal da Baronesa, a escola de samba que ficou um bom tempo, oito anos, não sei quanto. Eu fui presidente durante três anos e depois a gente passa, porque cansa para caramba, né? Logo em seguida vem a Frente Quilombola para fazer isso aí. Eu sempre fui um cara que teve dentro da luta, com uma pequena compreensão das lutas, mas as pessoas que eu me aproximava eram pessoas que sabiam. E aí a gente começa. A Frente Quilombola foi um manancial para eu conseguir escrever. Aquela luta tão bonita. Antes eu tinha outros valores, era um negro pobre, minha mãe pobre, meu pai negão, líder sindical, preso político, sindicato do comércio ambulante, com base territorial em todo o Rio Grande do Sul. Eu trabalhava com ele. Mas eu sempre tive acesso, tinha um carrinho para andar, uma motinho, morava razoavelmente.

Meu pai era um negão muito trabalhador. Mandou eu estudar a vida toda. Morreu dizendo “cara, vai estudar, cara vai estudar, eu banco!”. E como aquele momento era outro eu queria era desfilar com meu autinho, queria as namoradas, queria a vida legal na Imperadores, aquela ilusão, aquela coisa nada consciente. De repente me instala isso, de uma hora para a outra, e eu vim mudando. Hoje eu sou outra pessoa, cara. Hoje com esse lance eu sou outra pessoa. Eu não quero perder o elo com a base. Então eu começo a fazer essas músicas. Olhando documentários… “Quilombola”, cara, foi lindo para caralho. Eu vi um documentário e “vou começar por aqui”. E aí fui feliz na dissertação. Digo que fui feliz porque eu também gosto da música. Eu amo a música, me emociono para caramba.

Nonada – Que documentário é, tu lembra?

Telmo – Não tô bem lembrando o nome, mas é a respeito de Itamatatiua, quilombo que tem no Maranhão. Puta que pariu, eu vi aquilo e… o Claudinho me ensinou a fazer um Lá, um Dó… eu comecei a me encarnar, fazer um acorde aqui, e comecei a fazer minhas músicas por aí.

Nonada – Que Claudinho?

Telmo – O Cláudio Moraes, cara sensacional, meu amigo. Mora na Bahia. Então eu começo a fazer ali. Da “Quilombola” veio “Na rua”, que é para o pessoal de rua. A luta dos quilombolas é emocionante para caralho. E comecei “ô, Maranhão, onde eu fui imperador”. Imperador… eu não sei se tu tá ligado no que é um imperador. É o cara que faz a Festa do Divino. Então esse ano é tu o imperador. Ano que vem é o fulano. E eu canto como se eu tivesse sido um imperador. “Ô, Maranhão, onde eu fui Imperador, nessa Festa do Divino, nego mino ancestral”. Há anos que existe isso lá, é tradicional. Aí veio uma série de músicas, que nem tá no disco, mas a gente já tá preparando o próximo, com outras coisas. Botando a religiosidade, o batuque. Aí eu encontro no Bar da Carla o Onir [Araújo, advogado e integrante da Frente Quilombola]. A gente fez uma música junto, “vem cara, vamos fazer juntos”.

Nonada – Qual música?

Telmo – A música com o Onir é “Samba, mostra o teu valor. O teu gingado, o teu balançado tem outro sabor. O samba que desce do morro e vem para o asfalto é de partido alto ou um samba de raíz. Reflete na alma da nega ou nos seus quadris. Dá a volta na terra e acaba com a guerra. O samba faz esse mundo feliz. Que bom seria se não precissasse cantar nossa dor. Não cantasse a tristeza, só cantasse o amor. Esse canto é um canto de guerra, é um grito de luta. Na lei ou na marra nós vamos encarar…”, e aí chega o Onir: “esses filhos da puta”. Entendeu? Cara, eu tenho vídeo dele cantando com o pessoal na Sete [Comunidade Sete de Setembro]. Mas que porra, cara, ficou bom.

Aí eu começo com “Kalunga”. Vi um documentário sobre os Kalungas, Vão das Almas, lindo, cara. Aí peguei e “Eu sou Kalunga, quilombola e negão. Eu sou!” Aí consegui fazer mais uma música. Cantava lá no Bar da Carla de brincadeira, porque ali só tava o pessoal da luta. Pô, e as pessoas começaram a gostar. “Na rua”. “Seu Sete”: “Ele canta, ele toca, ele briga, no seu território ninguém se mete”. Lá eu encontro quem, o Jeferson, que é percussionista. O Jeferson sentou do lado e “vamos tocar, vamos cantar isso”. Aí saiu outras músicas, falando da luta do negro, fundamentalmente na luta dos quilombos, precários para caralho. E o agronegócio, quando o quilombo é rural, os caras querem. Quando é dentro da cidade, a especulação imobiliária, pummm, como nos Silva [Quilombo do Silva, primeiro títulado em Porto Alegre]. E eu falo no Silva nas músicas também. A coisa foi fluindo. Encontro o David [Cunha, violinista da Kalunga] um dia em um bar tocando violão. Eu não o conhecia, mas o Onir conhecia alguns amigos que tavam com ele. O Onir foi lá, meteu uma pilha: “faz uma, faz o ‘Quilombola’”. Aí comecei a tocar “Quilombola”. O David parou de tomar a cerveja e foi lá comigo. “Ô, meu, posso fazer para ti”. Porque ele toca muito, ele toca legal, né? “É contigo, leva”. Foi melhor companheiro para tocar isso. Saímos por aí, né. Começou na frente do Bar da Carla, na Frente Quilombola, e a gente já foi para o Quilombo de Casca, para o Quilombo de Morro Alto, e fizemos vários quilombos que tinham pela frente, junto com a Frente tinha esse plus da música.

E a coisa começou a tomar uma dimensão e a crescer e virou “Kalunga”. E aí eu tenho que te falar da Kalunga, né? Essa era a banda Quilombola, e é por isso que tem esse lance da Kalunga Quilombola, que nos identifica também, né? Todo o coletivo tem que saber levar as pessoas junto contigo, porque as pessoas são boas. Eu sou privilegiado com essa meninada. Daí a gente montou a banda Quilombola, acompanhando a Frente Quilombola. Começou a pintar por parte de outras pessoas o lance do protagonismo. Protagonismo é cilada, velho. O ego é cilada, tu vai dançar na esquina. Aí demos um tempo. Em um determinado momento, me aparece o Rafael [Ferreira] , o baterista, que também foi um outro achado. “Meu, eu vi e ouvi vocês. Negro, tu lá com uns baita de uns caras engajados”. O Rafael falou para mim: “Ô, cara, vamos tentar fazer um troço com isso aí. Vocês, negão, cantando lá, sou mulher, sou homem, sou o que eu quiser”. Isso aí me volta lá o tempo da Imperadores, que tem bicha também para caralho, tem homossexuais lá dentro, um monte. Tem meninas também, tudo homo. Isso faz parte da formação. E acaba que eu fiz a música. Aí voltei, só para tu saber a história do “Xô Homofobia” [que hoje é Oxumaré, presente no CD da Kalunga], que o João Sete me chamava de “machorro”. Tu vê a cabeça dos caras na época, isso aí há 30 anos. A música tem 30 anos, cara.

Aí chegou o Margarina [Bailarina, artista de rua], que tava morando aqui. Ligou os troço para nós. “Eu tenho um baixo lá em cima”, ele disse. Pô, cara, dali nasce a Kalunga, nesse estudiozinho Caverna, como nós chamamos. Fomos lá, buscamos as gurias que já cantavam com a gente, a Helen [Pinheiro], a Sabrina [Schneider], a Cibele [Blanco]. O Jeferson, que tava nesse racha, ficou de fora, mas eu sempre tive a vontade de resgatar. Hoje tenho grande respeito pela luta dele, baita lutador. Como todos os integrantes da Kalunga. O Paulo Flug lá de Viamão gostava da banda, era um admirador, não toca, não canta. Deu tudo certo ali e já começou a adesão daqueles meninos, os moradores [da CEU] que iam na janela ver a gente. Kalunga? Já saia todo mundo dançando. Não era bem para dançar, as nossas músicas não são entretenimento, saca, cara? É um certo entretenimento com mensagem. Se não for com mensagem, eu nem faço, eu nem sei fazer. O Márcio [Prestes, guitarrista] veio, aprendeu mais ainda. Chegou com algumas dificuldades e hoje ele é um cara integradíssimo, tá dentro. Todos são a Kalunga, não sai ninguém para entrar outro. E eu não mando nada. Eu só sei do que represento. 

Apresentação da Kalunga Quilombola no Quilombo dos Silva (Foto: divulgação)
Apresentação da Kalunga Quilombola no Quilombo dos Silva (Foto: Mara Gomes)

Nonada – Vocês tocam na EPA, no Quilombo do Silva, na OcupaDemhab, na Ocupação Lanceiros Negros. Por que é importante tocar nestes lugares? E no Fórum Social Mundial?

Telmo – No Fórum foi muito importante para nós até em termo de afirmação, em termo de se consolidar mesmo enquanto banda. Ali perdi o medo. Eu não sou mestre porra nenhuma, cara. Eu vou ali, mando na cara de pau a minha luta. Eu tô militando ali. Eu me emociono quando falo nisso. O meu cabelo é comprido porque eu quero cada vez mais me ver como negro, entendeu? Quando eu tenho que tomar parte em alguma discussão, eu não tenho aquela de ser meu amigo. Não mesmo, é na dura. Eu não sou o falastrão, aquele que fala mais. Não, não. Eu fico observando. Com a responsabilidade de ser uma referência, o “mestre”, como eles me chamam. O velho da banda sou eu, não só pelo fator cronológico, mas por uma série de coisas. Então eu trato eles com o maior carinho possível, de verdade. Eu exercito isso todos os dias, o não-ego.

Nonada – A gente falou bastante da composição da banda, como está fluindo. Agora eu queria falar sobre a negritude de fato e da banda como militância. Preparei algumas perguntas baseado nas letras e na atuação de vocês. Começo com por que é belo ser negão?

Telmo – “Como é belo ser negão” é uma música que eu fiz pensando na autoestima, saca? Porque historicamente “é um negão, “ah, é negão”. A raça negra sempre foi segregada, cara. A segregação da raça negra, para mim, ela faz parte da formação. “Ih, quem é esse negão?”, “ah, esse negão aí com o sapato rasgado”. Pessoal na rua aí, a gente vê: “Ah, esse negão é mulambento, maloqueiro”. Eu vejo a nossa autoestima nessa música. “Não é mole ser negão, não é mole ser negão, não é mole ser negrona”. Tu só vai aprender como é belo ser negão se tu tiver engajado na luta, procurando as tuas raízes, sabe, cara? A tua história. Que é para que tu tenha uma base, porque eles nos tiraram até a história nossa. A nossa história é do outro lado do oceano, já vem de lá. Aí quando a gente chega aquí a primeira coisa que fazem é tirar a nossa história. Tirando as nossas raízes, tirando a nossa arte. Porque vieram reis e guerreiros nos porões tipo exportação para cá. É para que os negros se empoderem que somos belos sim. E a luta nos mostra cada vez mais. Ela é árdua, forte e linda que nos deixa um negão guerreiro. 

Em meio a caixas de som e tambores, Mestre Telmo no “Estúdio Caverna”, como os integrantes da Kalunga chamam o espaço no Moinho Negro, onde surgiu a banda (Foto Douglas Freitas)
Em meio a caixas de som e tambores, Mestre Telmo no “Estúdio Caverna”, como os integrantes da Kalunga chamam o espaço no Moinho Negro, onde surgiu a banda (Foto Douglas Freitas)

Nonada – Até como contra partida do financiamento coletivo, vocês ofereceram oficinas. Já deram oficinas em vários lugares sobre oralidade. A própria Kalunga é uma afirmação da história negra. Por que que é importante essa dispusta de narrativa? Por que é importante o negro contar a sua própria história?  

Telmo – Porque só tu que sabe onde o calo dói. Só nós que sabemos. Vejo a importância porque ele é o mais autêntico veículo de narrativa da sua história. Só quem sabe da minha história sou eu. Eu vejo essa importância da oralidade, de ser um griô. “Abre a roda, velho griô vai falar. Memória de zumbi, quilombola vem lutar”. Tá entendendo? Mas, agora, no lance mais acadêmico – que sem dúvida é fundamental na formação da gente, eu reconheço isso -, eles me ajudam. Tem uma música que eu fiz que diz bem isso. Eu vi um documentário dos Kalungas, daí eu já tirei outras ideias, outras músicas, tentando fazer outras coisas. Eu comecei: “No grito da senzala, eu aprendi a cantar. A saga do meu povo hoje eu quero cantar. Sou Kalunga, sou rio das almas. Sou Kalunga, sou vão das almas. Caminhei, mas como eu caminhei naquela estrada para chegar até lá…” Os negros fugindo. “Caminhei, caminhei até encontrar um lugar para o meu povo…”.

Nonada – Quem para ti representa a casa grande hoje?

Telmo – O sistema, cara. A conjuntura é a grande casa grande. E vejo hoje o não-branco também envolvido nesse tal racismo, nessa tal segregação. Porque o agronegócio tem toda a cobertura da conjuntura, do sistema. A especulação imobiliária, que é o que mais nos afeta, tem esse viés. A matança nos quilombos, a matança nas aldeias. Isso tudo para mim é a casa grande. Fogo neles. Azar, emboca neles. Por isso que eu pego o “Negro Fujão”: “Na noite escura, o negro foge e ninguém vê. Na noite escura, o negro foge, e ninguém vê. Leva com ele, a esperança e a razão. Leva consigo a liberdade no coração. O dia chega, os pés cansados, na exaustão. Nem dá ouvido” para esses caras, cara. Vai! Então eu vejo, assim, o negro fujão como uma tentativa de liberdade, sabe? Fugir para a liberdade. Os tempos são outros. Mas aí a Nega Lua [Luany Barros, vocalista e compositora] entra com o negro de hoje, cara! Tu sacou? Muito afude. Esse rap é dela. Aí ficou o negro fujão da senzala e o negro fujão de hoje que é o negro que dá bote no Estado com a doze na mão. Ela tem uma visão muito política em cima disso, sabe? Vem de tempos, de muito tempo, desde 500 anos, né?

Nonada – Quem é a polícia hoje? Como tu vê o papel da polícia na repressão do negro?  

Telmo – Vejo a polícia como um trabalho de base muito grande da direita, entendeu? No sentido de tornar irmãos opressores. Claro, mesmo em uma sociedade igualitária, em uma sociedade fraterna, tem que ter uma pessoa, um outro polícia, que mantenha. Porque de vez em quando é preciso que tu… tenha alguma segurança, alguma coisa. Se não tu fica extremamente vulnerável. Mas eu vejo isso aí com outra conduta, depois eu te falo. Eu já subi o morro e já tomei três atraques no mesmo dia. Fui em um aniversário de um parente meu na Conceição. Eu sai do beco, tomei um atraque. Fui pegar o carro, tomei outro. E quando tô saindo da vila, tomei mais um. “Peraí um pouquinho, cara”. Aí eu fiz: “eu subo o morro, eu desço o morro. Eu tô lá em cima, tô lá embaixo”. Então, eu vejo assim, os caras subindo o morro e quebrando uma porta, os caras ocupam um papel muito ridículo na sociedade. E esse lugar que a polícia ocupa os torna uns vermes, cara. Vermes, vermes. Cometendo atrocidades, inconsciência do caralho. E eu vejo isso aí como um trabalho de base da direita no sentindo da sustentação dessa podridão que é esse sistema, entendeu? Então eu fui obrigado a dizer “mão na cabeça é um caralho”. Sou muito mordido com isso, cara.

Nonada – Qual a tua opinião sobre as eleições de domingo passado? O processo eleitoral influencia na vida dos negros? Faz diferença?

Telmo – Sem dúvidas. O que rolou domingo, vou ter que te repetir isso daí, foi mais um trabalho de base da direita, bem feito, no inconsciente coletivo grande, no país inteiro. O trabalho de base feito pela direita, no sentindo de pegar as comunidades, o povo trabalhador em si, e passar mel no focinho de cachorro, manteiga no focinho do cão. Tudo mentira, cara. Eles oprimem, toma aqui um troquinho, vai para a esquina fazer um bandeiraço, vota em mim. É um domínio da direita, bancado por lá, que a gente sabe da onde, né? Yankees bancando esse tipo de coisa. A conjuntura do país hoje, um golpe, um golpe dado e avisado, que eu não acredito que o Partido dos Trabalhadores não sabe que Michel Temer, esses caras todos, não são companheiros de ninguém. Era momento de fazer uma ruptura no sistema. E não de acreditar em uma direita podre, sacana, golpista dessas. Eu costumo fazer algumas comparações. Olha só, tu vai colocar o Temer, o Cunha e outros tantos dentro da tua casa? Tu vai compor com esses caras? Tu vai marchar com esses caras ombro a ombro? Com essa filosofia, de roubar, de vender, os vendilhões da pátria como são? Não, cara! Eu como ex-petista acreditava na ruptura. “Governabilidade, ô caralho. É na dura”. É um momento de depuração para que a transformação social aconteça. Porque se não é retrocesso, mano. Me sinto iludido, me sinto traído pelo sistema que eles estavam levando. Eu já fui também CC [Cargo de Confiança] na administração municipal um tempo e eles me exoneraram exatamente por isso. E na minha exoneração eu disse para eles: “Vão perder tudo. Esse tipo de coisa vai fazer com que perca toda…”. Eu sou decepcionado.

Nonada – Neste trabalho de base da direita que tu fala, como é que tu vê o papel da mídia?

Telmo – Papel da mídia serve de sustentação para isso. A mídia é um poder. Faz parte desse sistema de manutenção das dificuldades. A mídia é preponderante. Se tu não tiver uma mídia tu não faz isso. A mídia faz parte disso, a Globo faz parte disso. A que não faz parte desse sistema é a nossa mídia, de combate, que vem aqui escutar isso que eu vou dizer. Eles não querem que eu diga isso. A mídia tá cumprindo o papel da direita, do imperialismo. Tá a serviço da burguesia, a mídia tá a serviço do americano, de vender a pátria, de fuder, de colonizar a América do Sul. A Globo é foda, velho. A Globo não existe mesmo, uma coisa tão difícil que eu não sei como é que não foi um dos primeiros atos do governo que assumiu há 16 anos atrás e que ficou se papagaiando junto com eles. Eu vejo isso, cara.

A Kalunga é puxada pelo vocal das mulheres e do Mestre Telmo. Na foto, Luany, Fabiana e Letícia, no Galpão do Ibge, lançamento do CD do La Digna Rabia. (Foto Douglas Freitas)
A Kalunga é puxada pelo vocal das mulheres e do Mestre Telmo. Na foto, Luany, Fabiana e Letícia, no Galpão do Ibge, lançamento do CD do La Digna Rabia. (Foto Douglas Freitas)

Nonada – Se tu quiser falar mais alguma coisa que eu não perguntei.  

Telmo – O lado cultural é uma das ferramentas para a transformação. O trabalho da mídia alternativa é fundamental, saber que lá em Viamão, que lá em Guaíba os caras vão olhar, e que sirva de incentivo para que eles também façam, né? A mídia alternativa tem um trabalho fundamental, preponderante para a transformação social que vem ao encontro do trabalho da Kalunga. Por isso que eu falei para ti que eu sou meio arredio a entrevistas, mas para vocês eu tô sempre à disposição. Não só eu, falo em nome do coletivo. O grande lance é não se dobrar para a chibata. O que é não se dobrar para a chibata? É, como na campanha passada, os caras queriam que eu fosse nos quilombos. “Tenho 20 conto aqui, vamos nos quilombos, tenho uma van, tu pega um grupinho dos teus. Quem quer vai”. E eu digo: “Mas, vai te fuder, cara, o meu problema não é 20 mil reais”. Eu faço do ínfimo o suficiente para a minha vida, cara. Não são os 20 mil reais que vai comprar a minha moral.

Quando a gente encontra uma negrada bem doida a gente fica muito feliz. Eu preciso falar com sinceridade. Eu tô muito feliz com esse momento que tá pintando na minha vida. Não só pelo reconhecimento, porque eu sempre fui de bastidores. Fui lá no Odomodê e tem pessoas que falam comigo… cara, não sou mestre coisa nenhuma. Eu sou um griô, trocando ideia aí com os guris, nada mais do que isso. Sem frescura. Eu sou completamente contra chinfra, balaca, marra. Lá na Nazaré, quando a gente começou a tocar, “Como é belo ser negão”, começou a surgir gente dos becos, com cadeiras. E eu pensei: “É aqui que a gente tem que estar”. Jamais eu abandono a base. Eu não faço isso para ganhar grana. Eu nunca ganhei um cachê disso. A Kalunga já ganhou um cachê do Fórum Social Mundial que serviu para dar colocar no Catarse para nos comprar nossas coisas, fazer o disco. A gente faz isso na garra. Mas se uma grana pintar para fazer uma viagem, ó, vai ter um cachezinho, mesmo que amanhã a gente tiver condições, mas, se pintar, nunca, o foco não vai mudar, velho.

Sinceramente, eu agradeço muito a um ser maior por estar vivendo esse momento de poder estar falando sobre isso. Enquanto que para outras pessoas só se for na Zero Hora, com a caminhonete aí na frente. Isso eu não faço! Só se eles me pegarem de bobeira na rua, mas mesmo assim eu mando eles se fuderem. Eu não tenho nenhum medo de romper, cara, com essas pintas. Nenhum medo. E isso que me dá a força nesse coletivo. E os guris tem me dado vida para levar essa porra juntos. Eu sou feliz para caralho com isso, tu nem imagina. 

 

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