O longo e sinuoso caminho até McCartney

Após quase 20 anos sem tocar no Brasil, Paul fez em Porto Alegre o primeiro show de uma série de três no País (Crédito: Rafael Pavin)

*Algumas fotos foram generosamente cedidas pelo Rafael Pavin (http://www.flickr.com/photos/pavin/)

Eu poderia começar esse texto tentando ser objetivo como manda o jornalismo, aquela prática tão discutida de procurar sempre a imparcialidade – apesar de, obviamente, ela nunca ser alcançada.

Eu também poderia começar esse texto tomado completamente pela emoção, dizendo que não teria palavras para descrever e acabaria enchendo essa resenha (será que é, realmente uma resenha?) com adjetivos, adjetivos e adjetivos simplesmente.

Mas não.

Resolvi começar o texto pelo (adivinhem) começo. E quando será que realmente começa um show? Certamente não é na hora em que o artista sobe no palco e se apresenta por algum punhado de horas. Há muito mais em um show do que a performance do músico. Há também o espectador e, com certeza, sua participação é crucial na qualidade total da apresentação.

A história de Paul McCartney tocar no Brasil deixou uma penca de gente desconfiada, afinal, a última vez que ele havia passado pelo País foi em 1993, quando tocou em São Paulo e em Curitiba. Em 1990 também havia tocado no Rio de Janeiro, no Maracanã, onde 184 mil pessoas assistiram ao espetáculo, batendo o recorde para apresentação de artista solo ao vivo em um show único. Logo, há quase 20 anos o ex-beatles não aparecia por essas bandas.

E foi essa mesma desconfiança que uniu várias pessoas em Porto Alegre, e que levou milhares de fãs a filas de espera para a compra de ingresso e depois para filas de espera para o show. Tudo isso para garantir um lugar no estádio do Sport Club Internacional, local escolhido pela produção para o acontecimento.

Mas, então, depois da desconfiança, veio a espera. A gente espera tanta coisa na vida, não é verdade? É quase metafórico, mas esperamos nove meses para uma vida começar. Esperamos para ser chamado para aquela vaga de emprego, esperamos uma pessoa querida voltar de viagem. Diria que uma das coisas mais importante da vida é esperar. Por isso é tão importante o que você faz durante isso. Afinal, esperar também é um caminho. E, nesse caso, a chegada era o show do Paul.

Os fãs se viravam como podiam na fila de espera (Crédito: Rafael Gloria)

Muitas das pessoas que estavam naquela fila antes do show sabiam disso – mesmo que inconscientemente. O show começava ali e passava também pelo sol de 40 graus da primavera, o sol a pico das 13h do horário de verão. Os mais preparados chegavam com uma cadeira de praia, óculos escuros, camiseta leve branca, algumas com estampas dos Beatles, outras só do Paul. Levavam garrafas de água e o protetor solar. Os menos preparados vestiam calça jeans, ou camiseta preta (ainda com a estampa dos Beatles), e sem óculos escuros. Muitos com guarda chuvas – para se proteger do forte sol – vendidos a 20 reais, mas comprados a 10 se bem pechinchado. Um jeito encontrado também foi improvisar armando barracas com as camisetas, e amarrando as suas pontas nas grades metálicas. Algumas pessoas chegaram a passar mal por causa de desidratação e a ambulância foi acionada. Pessoas molhavam toalhas, tentando amansar o calor.

Na fila também surgiu o problema básico da desordem, muitos fãs não sabiam qual era o final dela e acabam se confundindo. A orientação foi rasa e demorou a chegar para as pessoas. Um pouco antes da abertura dos portões um pequeno tumulto começou porque a fila estava com dois “nós”. Apesar dos ânimos exaltados, todo mundo conseguiu entrar.

Se lembra da desconfiança sobre o Paul realmente tocar em Porto Alegre? Ela acabou totalmente quando o campo foi invadido pela legião de pessoas que se aglomeravam na espera. A visão do enorme palco deixava as pessoas ainda mais tensas, enquanto a ficha caia devagar, lentamente.

Aí foi que aconteceu, por volta das sete horas e pouco começou a tocar uma música e três pessoas subiram no palco. Da distância da área da pista de gramado livre não dava para ver muito bem. Os dois telões em vertical medindo muitos metros de altura também não estavam ligados. Era o show de abertura. Vale lembrar que antes estava programado que a dupla Kleyton & Kledir abriria o show para o Macca, o que não ocorreu por “problemas técnicos”, segundo informações da organização do evento. Lamentável. O show de abertura para Paul McCartney realmente merecia melhor atenção. Não que o trio formado pelo DJ Pic Schmmitz, o saxofonista Vinicius Neto e o guitarrista Fred Mentz não tenha se saído bem; mas o momento não pedia aquele tipo de música remixada, onde a guitarra e o sax passeavam ou fraseavam por músicas já conhecidas. A produção praticamente os tocou na fogueira ao colocá-los de frente a um público esperando uma música universal, como a de Paul. Acabaram levando algumas vaias de um público sedento pelo espetáculo principal, entraram mudos e saíram mudos do palco.

A abertura durou apenas meia hora. Agora faltava pouco para Paul aparecer, aquele baixista dos Beatles, aquele que sonhou com a melodia de Yesterday (música mais regravada de todos os tempos), o cara que compôs algumas das canções mais populares do século XX. As luzes apagaram. O caminho para o show enfim, terminava. O caminho mais longo e sinuoso de todos. Mais do que um inglês, um cidadão do mundo Paul subiu ao palco um pouco depois das 21h vestindo um blazer roxo com o clássico baixo hofner na mão. Ao mesmo tempo, mãos de vários anônimos unidos pela paixão a música iam à cabeça, não crendo que ali estava um dos caras. Adultos realmente gritando como se fossem crianças, como se tivessem seis anos vendo mágica pela primeira vez.

As mãos foram ao alto quando Paul apareceu. (Crédito Rafael Pavin)

Era verdade, eu vi e comprovei. Você sabe esses DVD’s com apresentação do Paul onde as pessoas estão sempre sorrindo, ou dançando? É clichê, mas é exatamente essa a sensação de vê-lo tocar. O set list todo mundo já conhecia, decorado em anos de audição por boa parte do público, fora que ele não varia muito durante essa turnê intitulada Up and Coming Tour. Abriu com Venus and Mars uma música curta, e leve que fala da experiência de um fã que espera o show começar, em uma espécie de metalinguagem do acontecimento. Logo depois emendou Rock Show que seria o espetáculo propriamente dito. Jet foi a próxima também na ordem, todas as três composições da época do Wings, banda que formou após sair dos Beatles.

A plateia, entretanto, que já pulava até então, pirou com o que a próxima canção. All my Loving escrita no início de sua carreira nos Beatles e um dos primeiros compactos de sucesso levou o estádio a cantar toda a música. Fascinante como isso aconteceu com freqüência durante a apresentação. Um show de um ex-beatles, um show de Paul é um show em que o público canta. É claro que cantavam, principalmente, suas canções da época dos Beatles, foi assim como Drive My Car, Ob-La-Di, Ob-La-Da, Back in the USSR, Let it Be, Hey Jude…Enfim, show do Paul, show de um ex-beatles também é um show em que além de o público cantar, ele escuta. Escuta realmente, emudece quando começa as primeiras notas de Blackbird, a melodia de Yesterday

É claro que Paul exerce certo magnetismo que lhe concede o poder de comandar todo esse espetáculo, todas essas pessoas. Magnetismo maturado após anos de sucesso, anos vivendo com o fardo de carregar essa herança de ser um ex-beatle, de poder levantar uma massa de pessoas. E ele sabe disso. Verdadeiro maestro, ele conversava com o público arriscando palavras em português. Muito bem assessorado, utilizou gírias gaúchas como “tri legal, tchê”, repetiu o refrão “ah, eu sou gaúcho” e, como se fosse possível, cresceu ainda mais no ibope – uma vez que o bairrismo no Rio Grande do Sul é demasiadamente forte…

Homenagem aos ex companheiros de banda George Harrison e John Lennon emocionou o público (Crédito Rafael Pavin)

As partes mais emocionantes ficaram a cargo das homenagens aos amigos e ex-companheiros de banda John Lennon e George Harrison, ambos mortos. Here Today, composição do álbum Tug of War de 1982 homenageou o cantor John, uma canção que poderia estar em qualquer álbum dos Beatles – dos depois de 1966. De arrepiar o silêncio de 60 mil pessoas assistindo a um artista cantando e tocando violão. Apenas isso. Às vezes, o silêncio vale mais do que mil gritos. Something, balada clássica dos Beatles e composta por George Harrison também deixou o publico inebriado, principalmente pela entrada no ukelele que Paul criou para a composição. Os acordes clássicos levaram os casais apaixonados, ou qualquer outra pessoa que já gostou de alguém alguma vez na vida a plena contemplação.

O rock também marcou presença no show com o riff forte de Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band, Let me Roll It e, é claro, Helter Skelter. O público cantava e pulava sem parar, principalmente nessa última canção, como se fosse a última vez, para, você sabe, nunca mais esquecer. Live and Let Die foi um show a parte, o piano frenético, quase caótico da canção e a explosão de inúmeros fogos de artifício no ápice do caos derrubaram aqueles fãs que ainda estavam calados. A sensação era de que o céu poderia cair a qualquer momento. A banda de apoio que vem acompanhando Paul há quase uma década é composta por ótimos instrumentistas, mas o que mais se destaca é o baterista, um dos que mais interagiu com o público. Dançando, fazendo gesto com as mãos e tocando muito bem ele, com certeza, roubou alguns segundos de atenção – principalmente na hora do solo de bateria em The End.

Falando nisso, Paul fechou o show de quase três horas com essa composição do álbum Abbey Road. O que só justifica o papel de Paul como um dos maiores criadores de conceito da música pop do século XX. Foi ele que pensou toda a história do disco Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band, ele que deu margem para um dos maiores mitos da história do rock “Paul está morto” e então começar o show com uma música destinada aos fás que estão vindo ver um show (Venus and Mars) e terminar a sua apresentação com a música “final” é fácil.

Eu poderia terminar esse texto falando que horas o concerto acabou, quantas pessoas em número exato compareceram, como requer a objetividade do jornalismo.

Eu também poderia terminar esse texto falando que é o melhor show de todos os tempos, e que você tinha que ter ido, porque nunca verá um espetáculo igual.

Mas não.

Resolvi terminar o texto (obviamente) pelo fim. Dizendo simplesmente que após a despedida de Paul McCartney houve o lançamento de milhares de pedacinhos de papel das cores amarela e verde. E que elas tomaram conta do estádio Beira-Rio. Havia uma sensação de satisfação completa no ar. Esse caminho, o caminho para o show do Macca finalmente havia terminado. E com um grande final. “And in the end/ The love you take/ Is equal/ The love you make.” Mas e agora? Quais são os próximos caminhos? As quase 60 mil pessoas ainda um pouco abobadas agora teriam que se virar e voltar para as suas velhas rotinas. Para velhos e novos caminhos. Quanto ao Paul? O caminho dele todo mundo sabe, após o show ele foi de carro direto ao aeroporto Salgado Filho e embarcou para Buenos Aires, para o mundo onde fará mais shows e onde será o melhor final para vários caminhos diferentes.

Compartilhe
Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *