“A única coisa que Tião faz sozinho é o ‘click’”, diz a capixaba de voz rouca Lélia Wanick Salgado referindo-se ao trabalho de um dos mais reconhecidos fotógrafos do mundo, Sebastião Salgado. Ela completa o raciocínio sem perder a simpatia: “ele é muito talentoso, mas o antes e o depois da foto envolvem muita gente”. A forma carinhosa de abreviar o nome do artista e o conhecimento sobre o seu processo de produção em fotografia tem razão: Lélia é casada com Sebastião Salgado há 44 anos. A edição das imagens é feita por ela, assim como a organização de livros e exposições. Ou seja, é Lélia quem costura as narrativas imanentes às fotografias, fazendo parte do antes e do depois do momento do “click”.
Participando do 5º Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, Lélia discorreu no Fórum Internacional de Livros de Fotografia de Autor sobre o trabalho de procurar os fios condutores das histórias contadas pelas imagens de Sebastião Salgado. Ela deixa claro que “um livro não é só uma foto depois da outra”, pois envolve uma percepção estética e narrativa na montagem. Após a fala, Lélia concedeu uma entrevista para o Nonada. Segundo ela, depois de encontrar os ditos fios condutores, o desafio é persuadir o fotógrafo quanto à exclusão de uma ou outra imagem nos conjuntos das séries, afinal, cada imagem deve ter uma razão de estar em determinada sequência.
Experiência é o que não falta a Lélia para cumprir tal tarefa. A mulher que já trabalhou com Henri Cartier Bresson, editando uma série sobre a Índia, além de ter dirigido a galeria de fotografia da Agência Magnum Photos na década de 1980, é hoje a diretora da Amazonas Images, agência fotográfica de imprensa criada em 1994 que administra o trabalho de Sebastião Salgado. Ela relembra as dicas de Bresson sobre como classificar uma fotografia enquanto boa ou ruim: “Se você virar a foto de cabeça para baixo e a composição não for boa, então não é uma boa imagem”. Este recurso é utilizado por ela até hoje.
Se é também fotógrafa? Lélia responde negativamente com um bom humor invejável. Apesar de ter sido dela a câmera que Sebastião Salgado “roubou” quando descobriu o gosto pela fotografia, sua preferência está em “organizar livrinhos”, como ela denomina seu complexo trabalho. É o que Lélia gosta de fazer desde criança: contar as histórias através de imagens. Chegou a fazer fotografias de cobertura jornalística na década de 1970, mas não tem vergonha de dizer que se cansava de carregar a aparelhagem de fotógrafa. “Além do mais, não ia dar certo eu ser fotógrafa: como eu iria fazer concorrência para o Tião?”, completa entre risos sobre a sua escolha pela editoração e direção.
Sempre apaixonada pela cultura francesa, Lélia mudou-se para a França com Sebastião, então um economista, assim que se casou em 1967. Ela estudava Arquitetura em Paris quando comprou a câmera referida anteriormente, e utilizava-a para seus trabalhos, fotografando prédios e apartamentos. Quase por acaso, Sebastião apoderou-se deste instrumento que viria a consagrá-lo no mundo artístico. A participação em exposições fotográficas e a convivência com pessoas do meio da fotografia artística compuseram o início do que seria uma grande incursão do casal pelo mundo do registro fotográfico em preto e branco.
Um ponto notável desta história é que o comprometimento do casal não é só o de produzir belas fotos: o engajamento com certas causas sociais veio antes mesmo do trabalho com as imagens. O próprio Sebastião Salgado define sua atividade dentro do que chama de “fotografia militante”, e a frase de Lélia não deixa dúvidas quanto a essa opção: “a fotografia documental tem que ser engajada”. Na medida em que documenta situações carregadas de significados simbólicos para a sociedade, este tipo de fotografia compromete os fotógrafos com certos pontos de vista, ainda mais quando as imagens são organizadas em séries. “Com a fotografia a gente pode sim passar o que a gente pensa sobre as situações do mundo”, completa ela.
Uma das séries que rendeu mais fama a Sebastião Salgado foi sobre uma questão para lá de espinhosa, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Optando por fotografar e contar esta história, a série “Terra” é clara em explicitar o lado que Sebastião escolheu mostrar para o mundo: o dos que ficaram à margem do processo de mecanização e do latifúndio. Ele quis colocar em imagens as razões da luta pela terra. O diálogo com o movimento começou quando Salgado fotografou o Massacre de Eldorado dos Carajás, episódio em que a polícia abriu fogo contra uma manifestação dos sem terra no entorno da cidade paraense, matando 19 pessoas em abril de 1996. Lélia editou o livro, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, que tem introdução de José Saramago e conta também com uma composição especial de Chico Buarque.
Mas palavra “Terra” possui também outro significado para o casal, carregado de um comprometimento social ligado ao da série: a preocupação com o meio-ambiente. Terra é o nome do instituto dirigido por Lélia que realizou um projeto de recuperação de áreas de Mata Atlântica degradadas sem precedentes. A ideia começou com visitas do casal à propriedade dos pais de Sebastião Salgado em Bulcão, interior de Minas Gerais. Eles viam que a chuva fazia precipitar boa parte da mata, devido à degradação. Após comprarem esta propriedade no início da década de 1990, eles investiram em uma ampla recuperação que envolveu inclusive a comunidade da cidade. Hoje o projeto que já completa oficialmente 13 anos se estende para regiões do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. Além domais, o Instituto oferece cursos de desenvolvimento sustentável para os produtores rurais do Vale do Rio Doce.
Relacionando a fotografia a este tipo de projeto, Lélia Salgado não faz rodeios quando questionada sobre uma questão um tanto complexa: o novo trabalho de Sebastião Salgado, “Genesis”, a ser lançado em março de 2013, é patrocinado pela mineradora Vale. “Uma empresa suja”, denomina Lélia Salgado, demonstrando a sua opinião sobre a apoiadora, o que pode parecer uma contradição para o casal tão consciente ambientalmente. “Mas se uma empresa como esta direciona recursos para os nossos projetos da Amazonas Images, ajudando indiretamente no trabalho da ONG Instituto Terra, já está fazendo uma contribuição importante para o meio-ambiente que nós não podemos negar”. “Gênesis” começou em 2004 da vontade de Sebastião Salgado de realizar fotografias belas da natureza em seu estado original, ou o menos possível alterada pelo homem.
Nessa busca pelo intocado, a tecnologia vem a calhar. Lélia comenta que Sebastião não é um defensor ferrenho dos modos tradicionais de fotografar, e aproveita sim os novos recursos do digital. Para ela, a maior vantagem é bem prática: “a vida melhorou tanto com o digital! Hoje o Tião pode passar pelos aeroportos bem mais tranquilamente com a sua aparelhagem”, comenta referindo-se ao volume de equipamentos que ele carrega nas viagens. Lélia o acompanha na sua grande maioria, e se conta algumas peculiaridades da personalidade dele nestes momentos: o fato de se comunicar fácil e ter carisma com as pessoas facilita o trabalho de Sebastião. O que ajuda também é o que ela chama de “vaidade natural do ser humano”: quase sempre as pessoas querem posar para as fotos.
Referindo-se aos trabalhos da Amazonas Images sempre na primeira pessoa do plural, Lélia confirma a sua importância na história da fotografia brasileira. Costurando fotos e experiências junto com Sebastião Salgado, ela cumpre seu papel na difusão de importantes imagens – ainda que não seja fotógrafa, oficialmente falando.
Caros amigos. Parabéns pela matéria, mas peço que conste junto à foto do Sebastião e da Lelia o crédito de Ricardo Beliel. Embora a foto tenha sido cedida pelo Instituto Terra para sua divulgação, a mesma foi enviada com a autoria do fotógrafo com menção de crédito obrigatório. Assim como as demais fotos publicadas. Um grande abraço.