*Por Aline Duvoisin
Com razão o sábado passado, dia 30 de abril de 2011, amanheceu cinzento e chuvoso, e assim permaneceu de luto até a manhã de segunda-feira, quando o sol voltou a nascer. Afinal, a Argentina perdeu um dos principais expoentes de sua literatura. Ernesto Sábato faleceu pouco menos de dois meses antes de completar um século de vida em sua casa no distrito de Santos Lugares, pertencente ao partido de Tres de Febrero, localizado na Grande Buenos Aires, onde vivia desde 1945.
O escritor já permanecia recluso, completamente afastado da vida pública, há quase uma década devido a problemas de saúde, mas não resistiu ao ser acometido por um quadro de bronquite. A dimensão desse acontecimento, que completou praticamente toda a grade de programação dos canais de televisão argentinos, pode ser compreendida através da declaração de seu filho Mario Sábato, ao reconhecer publicamente sua morte: “Sei que todos vocês compartilham a tristeza que sentimos na família porque meu pai não pertencia somente a nós. Com orgulho, com alegria, sabemos que o dividimos com muita gente, que o quis e o necessitou tanto quanto nós”. A grande quantidade de cartas, flores e lembranças dispostas em frente a sua casa corroboram o carinho que a população tinha pelo escritor.
O início
A importância de Sábato vai além da literatura, começa bem longe dela e exatamente nesta distância é que encontra seu dom. Ele entrou na universidade para estudar física porque, como revelou anos depois, “toda a ordem, toda a pureza, todo o rigor que faltava ao seu mundo de adolescente e almejava desesperadamente, se revelava nessa ordem transparente das formas geométricas”. No meio universitário, acabou se envolvendo com militância política, primeiramente anarquista e, depois, comunista. Na década de 1930, Sábato era secretário-geral da Juventude Comunista de La Plata, o que o obrigou a usar nomes falsos e viver meio às escuras. Porém, ainda na mesma década, viajou a Bruxelas e começou a ter um pé atrás com Josef Stalin. Terminou, assim, rompendo com o partido comunista. Sua formação em física o levou a trabalhar como investigador científico em Paris, onde conheceu alguns representantes do movimento surrealista, que influenciaria profundamente sua obra. Quando voltou para a Argentina na década de 1940, deu aula na Universidade Nacional de La Plata, mas logo teve que deixar o cargo devido a suas manifestações contra o peronismo, o que marcaria também suas desavenças com Jorge Luis Borges. Em seguida, decidiu abandonar de vez a ciência porque a considerava amoral e acreditava que levaria o mundo ao desastre.
As circunstâncias, unidas a sua vocação, fizeram-no abandonar a vida acadêmica e o transformaram num grande escritor, consagrado por livros como “O túnel” (1948), “Sobre heróis e tumbas” (1961) e “Abaddón, o exterminador” (1974). Sábato também se tornou um exemplo de luta pelos direitos humanos, principalmente depois de presidir a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, entre 1983 e 1984, a pedido do então presidente Raúl Alfonsín, o que proporcionou o julgamento das juntas militares argentinas. Esta experiência foi publicada no livro “Nunca Mais” (1985).
A inspiração
Grande parte da sua obra está atrelada fortemente do grande amor de sua vida, Matilde Kusminsky Richter, sem quem Ernesto seguramente não teria sido quem foi. Passional, ele muitas vezes ateava fogo ao que havia escrito. Seu último editor, Alberto Díaz, lembrou que, não fosse Matilde a resgatar seus textos, muita coisa teria se perdido.
Sua escrita se caracterizava principalmente pela presença de temas ligados ao psicologismo, filosofia, política, humanismo, introspecção, existencialismo, solidão, morte, esperança, buscas de identidade, existência de Deus. A audácia com que os utilizava lhe rendeu, entre outros, o Prêmio Cervantes, um dos mais importantes da literatura espanhola, que lhe foi concedido pela Espanha em 1984. Seus últimos escritos se constituíam basicamente de memórias e crônicas sobre a velhice, com os quais foi se despedindo aos poucos da literatura. Quando sua visão começou a falhar, deixou de vez as letras e resolveu se dedicar à pintura.
As controvérsias
Apesar da crítica a sua sagacidade como escritor ser praticamente nula, não deixava de ser uma pessoa polêmica. Uma das situações mais controversas da trajetória de Ernesto Sábato foi o famoso almoço com o ditador Jorge Rafael Videla, ocorrido em maio de 1976, a poucas semanas do golpe militar. No entanto, a questão foi aclarada anos depois, quando se revelou que o encontro serviu para fazer uma reclamação formal a Videla sobre a caça às bruxas, principalmente para indagar-lo sobre a prisão dos escritores Haroldo Conti e Antonio Di Benedetto. Por outro lado, a própria personalidade de Sábato era alvo de controvérsias, sobretudo devido a suas contradições enquanto ser humano – o que se refletia em sua obra.
Suas incoerências e seus dilemas diante da vida não surgiram do nada. Começaram desde seu nascimento. Sábato carregava o peso de ter recebido o nome do irmão que havia morrido três dias antes de ele nascer. Além disso, sua mãe torcia para que fosse uma menina. Tudo isso colaborou muito com seu jeitão taciturno, tristonho, melancólico. A biografia escrita por Carlos Catania revela que alguns dos problemas relacionados a seu pessimismo e sua preocupação com respeito à vida e ao mundo já se manifestavam na adolescência através de insônia, sonambulismo, alucinações, pesadelos.
Por outro lado, não eram ausentes seus momentos alegres e divertidos, especialmente em família. Seus netos o recordam como uma pessoa risonha e brincalhona. Seus vizinhos comentavam muito sua postura tão amável, e o carinho era recíproco. Seu filho Mario lembrou que ele dizia: “Quando morrer, quero que me velem aqui, para que as pessoas do bairro possam me acompanhar nesta viagem final… E quero que me recordem como um vizinho, às vezes carrancudo, mas no fundo um bom tipo… É tudo o que aspiro”. Afinal, foi ali que encontrou a paz. “Meu pai necessitava um lugar tranquilo para escrever. Santos Lugares foi seu lugar no mundo. Ele soube se amigo dos vizinhos”, contou Mario.
Durante uma das homenagens que lhe foram prestadas durante a Feira do Livro, Mario afirmou que essas contradições estavam entre as principais características do pai, destacando que, apesar de ter uma visão profundamente trágica da vida, ele jamais perdeu as esperanças. Isso se evidencia ainda mais na sua profunda vontade de viver. “Ele aceitava a morte, mas dizia que preferiria viver um número razoável de anos, 1000 ou 2000”, revelou Mario. Ernesto Fernández Núñez, secretário-geral da Sociedade Argentina de Escritores (Sade) lembrou que Sábato dizia que “a morte vai ter que vir me buscar pela força pública”. Como veio exatamente é difícil saber, mas o momento chegou. Sábato foi enterrado na tarde do último domingo no Cemitério de Pilar, nos arrabaldes de Buenos Aires.
*Aline Duvoisin é jornalista e faz mestrado em Teatro e Cinema Latino-Americano na Universidade de Buenos Aires. (alineduvoisin@hotmail.com)