Um Clube Cheio de Espelhos

Por Edgar Aristimunho*

Clube de Suicídio é uma lição para os que buscam sutileza (Crédito: Cosac Naify).

O desconhecido em alguns autores nem sempre está no lugar onde mais imaginamos. Muitas vezes, a surpresa não está diante dos nossos olhos, mas nos mistérios escondidos nas entrelinhas. A leitura hoje do conjunto de contos novelas do escritor escocês Robert Louis Stevenson agrupados pela Cosac Naify em O clube do suicídio (2011, 448 pg.), é uma lição para os que buscam sutilezas. Também um aprendizado para aqueles que buscam o requinte de uma escrita envolvente em sua tessitura e arte. Os contos e novelas de Stevenson, ora reunidos, nos impõem esse desafio ao nos apresentarem um tipo de literatura cheia de estranhezas, de espelhos e de armadilhas.

O clube do suicídio e outras histórias reúne seis narrativas escritas pelo escritor escocês no final do século XIX. Em rápida leitura, os títulos já nos deixam intrigados; o enredo dessas histórias nos deixarão, numa linha crescente, ainda mais instigados. Na primeira narrativa, O clube…, que batiza a coletânea, narra-se a história de um clube muito estranho, não tanto pelo que propõe e executa, mas pelo que repercute entre os envolvidos. A segunda história é um clássico conhecido: O caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde é uma história de estranheza, de loucura, de duplicidade e de preconceito. Conhecida de nós como “O médico e o monstro”, no texto ela vai além das experiências científica que nos acostumamos a ver nas telas, para mergulhar nos preconceitos de uma sociedade em transformação. Em Markheim, a ideia do duplo surge e se espelha a partir de uma história que envolve crime e castigo, na qual a obstinação por riqueza conduz um indivíduo para o “lado escuro da vida”, despertando nele violência e terror. São os atos do protagonista que criarão toda a tensão desse magnífico conto. O demônio da garrafa é terror puro, contado a partir de uma história em que um indivíduo busca a glória a partir pela fantasia de ser outro pela pura transformação. Novamente temos aqui a ideia de duplos e de espelhos, uma vez que o protagonista faz um misterioso pacto sinistro para conseguir fama, glória e dinheiro. Nem tudo dá certo, e tal como na história do médio e do monstro (Dr. Jekyll), o rumo dos fatos foge ao protagonista. Algo semelhante acontece em O ladrão de cadáveres, em que o fantástico invade a narrativa para apontar os castigos de uma vida dupla. O último conto, O vestíbulo, apenas fecha a coletânea e nada acrescenta. Em todos os contos, porém, temos a ideia de que os indivíduos vivem em máscaras para fugir de algum tipo de deformidade, insuficiência ou aspiração, como se estivessem todos eles fugindo dos olhos repressores da sociedade. Isto. Stevenson foi um retratista do horror de viver sob certas máscaras sociais, onde a fuga em direção a outra condição parecia ser a única forma de escapar desse controle social de uma sociedade em transformação (fins do século XIX). Como bem acentuou o crítico Alcir Pécora, “há uma cidade inteira de pesadelo sob cada bom homem. Esta é a didática do horror magistralmente aplicada por Stevenson”.

Stevenson em retrato (Crédito: Arquivo).

Pela diversidade de formas de abordar a temática do duplo/do outro, Robert Louis Stevenson construiu em sua escrita uma linha evolutiva única dentro da literatura universal. Admirado por escritores como Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, Stevenson produziu sua obra numa época em que o mundo estava em grandes transformações sociais, políticas e econômica, contexto em que a aceitação do diferente (do outro) era ainda extremamente delicada – basta vermos o caso da obra de Oscar Wilde O retrato de Dorian Gray, anos mais tarde. De qualquer forma, Stevenson esteve lado a lado de nomes como Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Fiódor Dostoievski, Émile Zola e Henry James, além do nosso sempre lembrado Machado de Assis, figuras importantes na construção e definição da ideia de romance realista-naturalista em fins daquele século. Sua obra, contudo, situa-se numa linha evolutiva bastante particular, na medida em que aproxima o retrato social de uma época ao mesmo tempo em que impõe o horror do homem diante do outro, diante da sociedade, diante do diferente. Daí toda a maestria de seus contos e novelas: o médico quer ser outro; Markheim quer roubar não só um espelho como uma vida; já outro personagem faz pacto para viver aquilo que não pode e que não tem; e o ladrão de cadáveres, este por si só é um delinquente social inserido no mundo médico e acadêmico. Também ele vive seus espelhos.

Os espelhos e duplos criados por Roberto Louis Stevenson estão postos de maneira significativa nesta coletânea – e estão a nos desafiar. Tudo e quase que simplesmente porque o desejo de ser outro, de ser mais, de ter mais e de alcançar a glória além das nossas forças é uma característica universal que atravessa os séculos. Porque é humana essa aspiração; e porque ela é própria de nossos tempos, onde anseios mais primitivos de sermos outros nos impele e pode estar agora diante de nós, nas páginas Stevenson ou diante de algum espelho.

* É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela Editora Dom Quixote o livro de contos “O homem perplexo” (2008) e participou da antologia “Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com).

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