O patrimônio chamado Roth

Por Edgar Aristimunho*

Philip Roth é considerado um dos maiores escritores norte-americanos da segunda metade do século XX (Crédito: Divulgação)

O autor sendo seu próprio patrimônio. Assim poderíamos definir o conjunto da obra do escritor americano Philip Roth. Dispensável apresentá-lo ao público que conhece este obcecado pelo temas que aprofunda (os rituais políticos, a sexualidade, o judaísmo, o homem e sua decadência…) Philip Roth é um incansável que a cada ano tem nos trazido uma nova obra – a última, Nêmesis, ainda faz eco entre os seus fãs. Mas bem antes de ter o sucesso e o prestígio que desfruta hoje, Roth foi um carpinteiro das letras, um observador dos comportamentos compulsivos e um narrador cruel que começou longe, com Adeus, Columbus (1959) e Complexo de Portnoy (1969). Quem, afinal, poderia narrar a decadência do próprio pai senão ele? Phiph Roth conseguiu isso em Patrimônio, relançado agora em nova tradução pela Companhia das Letras.

Patrimônio foi lançado originalmente em 1991 e é composto pelo relato pormenorizado da decadência física e da morte de um pai. Em princípio, o tom quase jornalístico, extremamente seco e direto nos impressiona, principalmente por se tratar de alguém que escreve sobre o próprio pai. O tom do relato, contudo, é emotivo na dose certa – na tensão de quem reconhece a morte. O livro tem lá os seus toque de tensão, de embaraço com situações inesperadas, de fina ironia, mas não há contrapontos, não há debates e muito menos estamos diante de arrependimentos; não há a dramatização excessiva, tão comuns em romances caça-níqueis.

Desse modo, Patrimônio forma-se como um livro essencial sobre a condição humana, ao retratar a decadência do corpo com um brilho próprio, a tal ponto que essa narrativa consegue nos fazer rir de situações que para muitos, inclusive, seria constrangedor de se falar: os cuidados com o corpo de um doente. Nesse particular, o autor fala de uma “história real”, que nos está contada de forma direta: é o pai que morre, e o patrimônio não são os bens materiais legados ou o volume de dinheiro deixado, mas a decadência, o trabalho com o enfermo, o insólito da morte.

O processo de degradação alcançado pelo pai, vivido e testemunhado pelo filho – dois adultos em contato direto – rompe na obra de Philip Roth como as portas de uma redenção e de seu reconhecimento com o um autor humanista, ainda que muitos vejam seus livros como relatos pervertidos de um professor depravado (o eterno personagem), que depois se apresenta, também ele, doente e decadente, para ao fim e ao cabo se deparar com esta circunstância definitiva: a morte. Se nos livros seguintes do escritor vemos todo o processo descrito a partir de um único personagem e seu mundo exterior, em Patrimônio o acerto de contas é feito dentro de casa. A iminente morte do pai não se transforma em fonte de queixa ou dramatização, nem há explosões de fúria, escândalos ou reclamações; há apenas constatação. De que a morte dá trabalho e tem que ser encarada de frente.

Já se escreveu que Patrimônio é um divisor de águas dentro da obra de Philip Roth. Se pensarmos o viés temática voltando do coletivo para o individual, sim; mas a análise do conjunto de sua obra demonstra como o autor persegue seus fantasma, os traz a público e até nos faz rir de temas como sexualidade e judaísmo, ou sobre o apogeu e decadência de um garanhão.

Sobre Philip Roth, aliás, costuma-se destacar que sua produção literária conseguiu reanimar o gênero da ficção, principalmente nos EUA. Tendo começado sua trajetória em alto nível, nunca deixou de melhorar seus livros com os passar dos anos. E enquanto a maioria dos escritores alcança a maturidade com 50, 60 anos, e a partir daí começam a declinar, o escritor americano, ao contrário, escreveu uma série de romances da máxima qualidade. É o que se observa nos livros lançados a partir de O homem comum (2006), série iniciada anos antes com a narrativa da decrepitude em O animal agonizante (2001), que tem em O fantasma sai de cena (2007), Indignação (2008) e A humilhação (2009), uma continuação que acompanha o mesmo personagem, do apogeu à agonia.

Eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, o escritor americano Philip Roth é dono de uma respeitável obra literária, reconhecida hoje pelo mundo inteiro. Autor de extensa obra, seus últimos títulos lançados (após 2000) continuam a repisar os velhos temas que lhe consagraram: o judaísmo, o homem diante das descobertas do sexo, do corpo e do amor. Segundo a crítica, Roth é hoje o autor mais prolífico, celebrado e controverso da literatura americana contemporânea. Alguém que não tem medo de escrever, nem que seja escrever sobre o homem diante da decadência e da morte, como fez na série iniciada a partir da ruptura temática iniciada em Patrimônio.

Reconhecido hoje como um dos escritores mais importantes da atualidade, prosador que conseguiu abarcar de forma única a condição judaica do homem urbano contemporâneo, autor de uma obra que aglutina a essência das grandes questões americanas do pós Segunda Guerra e dono de uma escrita carregada de refinado humor, Philip Roth inscreve-se hoje como uma referência, um patrimônio. Literatura que sabe o que dizer e como dizer. De forma simples, sem rebuscamentos barrocos. Direta. Literatura para quem gosta de boa literatura, ou seja, daquela que consegue nos corroer por dentro ao mesmo tempo em que nos fazer rir de nossa própria condição. E ao final, vejam só, nos deixa Patrimônio, um relato definitivo.

*É escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela editoria Dom Quixote o livro de contos O Homem perplexo (2008) e participou da antologia Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com)

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